Orochi se ergue do chão com raiva estampada no rosto, os músculos contraídos e o corpo coberto por arranhões. Ele estala o pescoço e encara Sophia com irritação.
— Vocês adoram se meter onde não foram chamados — disse, cuspindo no chão. — Ficam se achando superiores por interromperem lutas justas.
Sophia o encara com desprezo. Seus olhos não demonstram receio algum.
— Você estava batendo em um simples estudante — respondeu sem rodeios. — Que tal tentar lutar contra alguém da 5ª Divisão do Exército do Reino?
Orochi grunhe, irritado com a resposta. Sua mana elétrica cresce ao redor do corpo como uma tempestade controlada. Ele flexiona os braços e avança:
— Magia de Relâmpago: Crazy Ciclone!
Ele começa uma sequência intensa de socos e ataques com reforço de mana elétrica, os golpes rápidos e pesados o suficiente para quebrar o chão e rachar paredes.
Sophia ergue a mão.
— Encantamento Restritivo Avançado: Prisão Sagrada.
O corpo de Orochi desacelera bruscamente. A força continua ali, mas os movimentos perdem velocidade, como se ele estivesse tentando correr dentro da água.
Sophia abre a mão esquerda, liberando sua magia de mercúrio. Uma esfera cinzenta líquida se forma, e com um simples movimento dos dedos, ela lança o mercúrio como uma lança contra Orochi.
O impacto atinge o queixo dele com força e o lança para cima, batendo no teto. Antes que ele caia, o mercúrio o envolve no ar, formando correntes que o puxam para o chão com força. Ele colide com o solo rachando o piso.
Em seguida, o mercúrio se divide e começa a jogá-lo para os lados, prendendo braços e pernas, arremessando-o contra as paredes, o teto e o chão repetidamente. Sophia movimenta os dedos, controlando cada ataque com precisão.
— Cima... chão... parede... — diz em tom seco. — Vamos ver se você aguenta isso por muito tempo.
Ferme observa, ainda machucado, vendo Orochi sendo controlado sem dificuldade. Sophia mantinha a situação nas mãos.
Enquanto isso
Lys fechava a porta do quarto destruído com força, sua respiração acelerada e as mãos firmes na espada ainda brilhando com restos do encantamento anterior. Mabel se aproximava enquanto massageava o pulso, que ainda doía por ter sido preso nos corais.
— Que inferno foi isso? — perguntou Mabel, sem humor. — Esse cara... Housenka, certo? Que tipo de nome é esse?
Lys guardou a espada com um estalo e se apoiou contra a parede.
— Um maluco doido que surgiu do nada e me acordou com um corte no travesseiro. O cara parecia um cadáver andando.
— Ele... tava sozinho?
— Acho que sim. A não ser que ele tenha se multiplicado em pedaços pelo andar de baixo — respondeu, cruzando os braços. — Você tá bem?
Mabel limpava a poeira do uniforme e confirmava com a cabeça, mas o olhar dela era sério.
— Eu dormi a noite inteira como uma pedra. Se você não tivesse resolvido, eu estaria fodida.
Lys arqueou uma sobrancelha, fazendo graça:
— Então é isso? Vai admitir que me deve uma?
Mabel revirou os olhos.
— Não exagera também. Mas... obrigada, vai. Só um pouco.
— Anota aí — disse Lys, dando um sorrisinho de canto.
Elas se aproximaram do buraco na parede e espiaram o andar inferior. Havia um rastro de poeira, mas nenhum sinal imediato de Housenka. Mabel franziu a testa.
— Se ele conseguir subir por aí de novo, eu mesma taco ele pela janela.
— Ele tava estranho. Não parecia alguém que veio pra matar... mais como se estivesse... observando.
— Ótimo. A gente atrai lunático agora — comentou Mabel, irritada.
Lys olhou a espada, limpando a lâmina com um pano rasgado.
— Esse tipo de gente... aparece quando você começa a se meter com coisa grande.
Mabel olhou para o céu pela janela.
— E a gente tá no meio de algo muito grande. Crimson Reign, o ataque em Umbralis... e agora esses caras surgindo do nada.
Lys respirou fundo, mas seu tom mudou.
— Então... princesa — disse com leve sarcasmo. — O que a realeza manda a gente fazer agora?
Mabel olhou de volta para Lys, séria.
— Primeiro a gente vê se tá todo mundo bem... depois, a gente se prepara. Essa mansão tá virando campo de batalha, e eu tô cansada de ser pega desprevenida.
— Agora sim falou como realeza.
Mabel deu um leve soco no ombro de Lys.
— Cala a boca e vem. Vamos achar os outros.
Mabel girou a maçaneta com força, seguida por Lys que já empunhava a espada novamente, pronta pra outro embate. Mas antes que pudessem dar dois passos no corredor, uma presença cortou o ar.
Housenka flutuava a poucos metros de distância, como se o chão fosse algo opcional. Seu corpo magro estava com a roupa rasgada em diversos pontos, deixando à mostra a pele pálida e marcada. O rosto mantinha a mesma expressão vazia, mas a voz cortava o silêncio com precisão cirúrgica.
— Você rasgou minha roupa — disse, os olhos verdes sem vida fixos em Lys. — Parabéns.
Mabel avançou um passo, os olhos cerrados.
— Ainda tá de pé? Quer tentar de novo, é isso?
— Não precisam se preocupar. Não estou aqui para continuar o combate.
Lys, ainda em postura de batalha, não baixou a guarda.
— Vai fugir com o rabinho entre as pernas, então?
Housenka ignorou o comentário, como se não tivesse ouvido.
— Com esse nível de poder... vocês não eram páreo para ninguém da Crimson Reign.
Mabel franziu o cenho.
— Crimson Reign...
— Vocês chamam de "grupo criminoso". Terroristas. Rebeldes. Os nomes são irrelevantes. Nós já conseguimos o que queríamos aqui.
Mabel cerrou os punhos.
— O que vocês queriam?
— Isso não importa pra você — respondeu, sem alterar o tom. — Mas… — ele virou o rosto lentamente para ela — a presença da princesa de Axoland aqui foi uma agradável surpresa.
Lys estreitou os olhos.
— Vai continuar falando em código ou vai dizer logo o que quer?
Housenka inclinou a cabeça, como se analisasse Mabel.
— Você é um bônus valioso. E quando algo valioso aparece... sempre há alguém disposto a pagar muito por isso.
Mabel deu um passo à frente.
— Se veio me sequestrar, vai sair daqui em pedaços.
— Eu não vim sequestrar ninguém. Apenas cumprir meu papel.
Sem aviso, Housenka começou a se desfazer em partículas cinzentas, seu corpo se desfragmentando lentamente no ar como névoa esfarelando, e no local apareceria uma espécie de roupa no local de Housenka, era uma das roupas das empregadas de Fushi.
— Nos veremos em breve, princesa.
E então… ele desapareceu. Simples assim.
Lys olhou para Mabel.
— Esse desgraçado vai voltar.
— Que tente — respondeu Mabel, rangendo os dentes. — Mas da próxima vez, é ele quem vai sair sem roupa e sem dentes.
— Boa. Agora vamo correr. Vai que ele deixou presente.
E juntas, elas saíram pelo corredor, já pensando em encontrar os outros.
O corpo de Orochi ainda era lançado de um lado para o outro como um saco de treino, arremessado violentamente pelos chicotes líquidos e implacáveis do mercúrio sob controle absoluto de Sophia. Cada movimento dos dedos dela criava uma nova rajada de impacto, prendendo Orochi em um ciclo de tortura contínua até que, de repente, o barulho cessou.
O mercúrio escorreu suavemente até o chão, e no lugar de Orochi… havia outro corpo.
Um silêncio estranho caiu no ar.
Sophia estreitou os olhos, confusa.
— Hã? Cadê aquele grandão?
Ferme, com respiração pesada, levantou devagar. Suas roupas estavam rasgadas e o corpo coberto por hematomas e cortes, mas ele caminhou com firmeza até o corpo largado no chão. O que viu ali fez sua expressão mudar.
Era uma mulher.
Uma das empregadas da mansão.
Estava sem suas vestes usuais, o corpo nu coberto apenas parcialmente por uma manta fina de pano sujo. Seu pescoço tinha marcas roxas e sua pele já estava começando a esfriar.
Ferme se agachou ao lado dela, encostando dois dedos em seu pescoço.
Nada. Nenhum sinal de pulso. Nenhum sinal de vida.
— Isso não foi um disfarce… — murmurou.
Sophia se aproximou lentamente, observando a cena com uma mistura de incredulidade e desconforto.
— O que… o que tá acontecendo aqui? Quem era aquele cara? Quem é essa mulher?
Ferme manteve o olhar no corpo.
— Não foi substituição comum. Alguém usou ela. Provavelmente uma magia de troca, de teleporte com sacrifício… ou algo do tipo. Uma oferenda.
— Ele trocou de lugar com ela?
— É o que parece.
Sophia apertou os punhos.
— Ferme… você pode me explicar o que exatamente tá rolando aqui? Porque do nada eu me meti numa luta de morte contra um maluco, e agora tem uma funcionária morta no meio do salão.
Ferme se ergueu lentamente.
— Eu também queria saber. Mas seja lá o que for… acabou de ficar ainda pior.
Sophia olhou para os corredores da mansão destruída, os pedaços de parede e teto caídos, os quadros rasgados, e o cheiro de fumaça que começava a se espalhar.
— É… talvez seja melhor a gente se reunir com os outros. Agora.
Mabel chegaria primeiro, a capa branca esvoaçando levemente atrás dos passos firmes. Lys vinha logo ao lado, com uma expressão confusa e a mão no cabo da espada por precaução. Nidaime e o velho carroceiro os seguiam a poucos metros, ainda tentando entender a dimensão da confusão. Quando dobraram o corredor parcialmente destruído da mansão, todos pararam abruptamente ao ver a cena.
— Ferme?! — Mabel exclamou ao vê-lo de pé, ferido e com o rosto fechado. Ela correu até ele, mas foi interrompida ao ver outra figura conhecida.
Uma garota de cabelo ruivo, vestindo roupas da guarda real modificadas com detalhes metálicos, fitava-os com calma no meio dos escombros. O mercúrio ao redor dela lentamente voltava ao estado sólido, dissolvendo-se em partículas prateadas. Sophia.
— Sophia?! — Mabel arregalou os olhos, surpresa.
Ferme apenas desviou o olhar para Mabel e os outros, acenando com a cabeça brevemente.
Lys olhou de Mabel para Sophia com desconfiança.
— Quem é a ruiva? — sussurrou, só o bastante para Mabel ouvir.
O velho olhou a cena, depois para o corpo da empregada morta no chão.
— ...Esse jantar saiu mais caro que o previsto.
Nidaime foi o único que se adiantou de imediato.
— SOPHIA?!
A ruiva virou-se com um sorrisinho debochado.
— Até que enfim apareceu, gênio de laboratório. Vai me dizer que deixou o interior só pra me fazer limpar sua bagunça aqui?
Nidaime cruzou os braços e suspirou.
— Eu podia perguntar o mesmo. O que você tá fazendo aqui?
— Férias — respondeu Sophia, seca. Depois, apontou com o queixo para o corpo no chão. — Ou pelo menos tava de férias até um brutamontes usar o Ferme de saco de pancada.
Nidaime deu uma leve risada, apesar da tensão.
— Continua uma péssima mentirosa. Mas obrigado por ajudar o Ferme.
Ferme limpava a lateral do rosto ensanguentado com o dorso da mão e não dizia nada. Mabel, por outro lado, avançou, os braços cruzados e a expressão intrigada.
— Você veio sozinha, Sophia?
— Sim. Eu tava de folga em Asherea e senti a movimentação de mana. Quando percebi, o Ferme já tava quase virando purê.
Lys franzia o cenho, tentando entender tudo.
— Ok, alguém me explica quem é essa moça. E por que vocês tão falando como se ela fosse de casa?
— Essa — respondeu Nidaime, apontando com o polegar — é a Sophia. Sargento da Quinta Divisão do Exército do Reino, ela se formou no ano passado junto comigo.
— Ah, claro — murmurou Lys, revirando os olhos. — Todo mundo aqui tem um título, menos eu.
— E eu! — completou o velho com a mão erguida.
Mabel observava Sophia com atenção, agora menos surpresa e mais calculista.
— Isso foi bom. Ter você aqui. E vamos precisar de você também, porque isso tudo está saindo do controle.
Sophia olhou novamente para o corpo da funcionária caída.
— Já saiu. E se esse cara era só um dos inimigos, teremos problemas.
Todos se entreolharam. A mansão parcialmente destruída, os rastros de batalha, o corpo no chão... Nenhuma outra palavra foi dita por um tempo.
Sophia ainda observava os arredores, analisando os rastros deixados pela luta, quando se virou de volta para o grupo e disse com firmeza:
— Já mandei sinal pra Yonji e o Piper... Mas os dois estão bem longe. Yonji deve levar uns três dias se usar portais secundários, talvez menos se não for parado por ninguém. Mas o Piper... tá atolado no Tribunal Real, na Capital. Não espero ele tão cedo.
Nidaime se aproximou com o cenho franzido, limpando os óculos quebrados pela luta anterior. Sua voz era seca:
— Ótimo... porque a situação aqui tá pior do que parecia. Fushi sumiu. A secretária elfa dele também.
Sophia arqueou uma sobrancelha.
— Sumiu? Como assim?
— O quarto dele tá cercado de sangue. Mas não tem sinal de corpos... nem dele, nem da elfa.
Então, Nidaime se ajoelhou e posicionou as mãos no chão de mármore quebrado do corredor. Uma aura acinzentada cobriu seus braços e olhos, e ele murmurou com frieza:
— Magia da Alma: Silhueta Espiritual.
Uma onda de energia espiritual se espalhou em todas as direções, varrendo o espaço como um radar invisível. Após alguns segundos, ele abriu os olhos lentamente.
— Os empregados 40 por cento deles... desapareceram também. Nenhuma presença espiritual detectada. Nem mesmo resquícios de alma.
Sophia arregalou os olhos e deu dois passos para trás.
— Isso é impossível. Isso... é magia de altíssimo nível, ou pior.
— É exatamente isso — respondeu Mabel com os braços cruzados. O tom de voz dela mudou, ela estava mais séria
Sophia virou-se para a princesa.
— Mabel... você sabe o que está acontecendo?
— Sei. E você também precisa saber.
Ela deu um passo à frente, parando ao lado de Sophia.
— Existe um grupo, ou melhor, uma organização. Eles se chamam Crimson Reign. São uma das maiores ameaças que Axoland já enfrentou, e até poucos dias atrás, ninguém fazia ideia da extensão do poder deles.
Sophia franziu a testa.
— ...Crimson Reign?
— Liderados por um homem chamado Fubuki. O mesmo que mandou dois dos seus membros Sekai e True invadirem Umbralis. Eles roubaram um artefato da família Netherheart, um artefato que não deveria cair em mãos erradas.
Mabel se calou por um instante. Olhou para todos à sua volta, então voltou os olhos para Sophia.
— E agora, pelo visto, Fushi também desapareceu. Ele era um dos únicos nobres sobreviventes da tragédia da família Ashbor. E sumiu na mesma noite em que dois membros da Crimson Reign estavam por aqui.
Sophia olhou para o corpo da empregada caída.
— Então vocês acham que o Fushi...
— Foi capturado. — completou Nidaime, sombrio.
O silêncio que se instalou era pesado. Sophia passou a mão no cabelo ruivo, engolindo em seco.
— Entendi... Então é esse o inimigo. E vocês já estão no meio da guerra, é isso?
Mabel assentiu com seriedade.
— Já não há como voltar. Eles fizeram o primeiro movimento. Agora é a nossa vez.
Mabel virou-se para o grupo com um olhar firme. O tom agora era de comando direto. A noite havia dado lugar ao início de um novo passo. Ela endireitou a postura, os olhos violetas brilhando sob a luz fraca do corredor parcialmente destruído da mansão.
— Chega de esperar. Todos, preparem suas coisas agora.
Ferme ergueu o olhar para ela, sem questionar. Nidaime cruzou os braços, o semblante sereno, mas atento. Sophia encarava Mabel com uma sobrancelha arqueada, reconhecendo, pela primeira vez, a figura de liderança que ela carregava sem esforço.
— Vamos partir imediatamente para o Castelo do Antigo Reino de Axo. — Mabel continuou — Não temos garantia de que o Fushi foi levado para lá, mas se a movimentação estranha que ele comentou realmente tem ligação com a Crimson Reign, não podemos perder mais tempo.
O velho coçou a barba, um pouco desconfortável.
— Essa estrada não é das boas, vossa alteza...
— Eu sei — ela cortou com firmeza. — Mas não temos mais escolha. Os inimigos já deram dois passos à frente. Se continuarmos hesitando, o próximo corpo vai ser de alguém que conhecemos.
Ela virou-se para Ferme.
— Certifique-se de que os suprimentos estão prontos. Quero que a carroça esteja preparada em no máximo vinte minutos.
Depois, olhou para Nidaime:
— Quero que você trace a rota mais curta e segura possível. Não vamos parar até estarmos pelo menos perto da entrada do antigo domínio.
Por fim, ela cruzou os braços, olhando para Lys, que por instinto deu um passo para trás.
— E você... vai com a gente, claro.
Lys bufou.
— Eu sei. Já entendi, Alteza. Mas alguém aqui vai me explicar o que tem nesse castelo, ou vão continuar só jogando pistas no ar?
— Você vai entender quando chegarmos. Por enquanto, só se mexa.
Sophia deu um sorriso discreto ao ver Mabel em ação.
— Certeza que não é você quem comanda o exército do reino?
— Ainda não. — Mabel respondeu com um leve sorriso. — Mas pode apostar que, se continuar assim, não vai demorar.
Todos começaram a se mover.
O sol mal havia subido no horizonte quando o grupo finalizou os preparativos. A frente da mansão de Asherea, já meio destruída pelos acontecimentos da noite anterior, agora abrigava uma nova estrutura: uma carroça moderna, robusta, com rodas largas reforçadas por um aro metálico dourado, suspensão aprimorada e até mesmo um toldo ajustável, feito de um tecido resistente ao frio e à umidade. Não era uma carruagem de luxo, mas deixava evidente que não foi feita para plebeus comuns.
Sophia, com as mãos na cintura e um sorriso orgulhoso no rosto, observava o resultado.
— Não é uma relíquia da capital, mas dá conta do recado — comentou, enquanto o velho dava voltas ao redor do veículo, passando a mão pelas madeiras bem polidas e tentando conter as lágrimas.
— Eu... eu nunca dirigi algo assim. Isso aqui é uma benção dos deuses! — disse o velho, com a voz embargada.
— Relaxa, só é mais pesada. E se cair uma roda, a culpa vai ser toda sua — completou Sophia, rindo.
Mabel, já sentada com uma perna cruzada no banco interno da nova carroça, observava o grupo se reunir. Ferme estava de pé ao lado dela, ajustando uma alça de couro na lateral. Nidaime revisava mapas dobrados ao lado do banco do condutor, enquanto Lys, de braços cruzados e expressando tédio, bufava ao ver quantas pessoas seriam transportadas juntas.
— Vai caber todo mundo aí? — questionou Lys.
— Cabe sim. E com folga. A magia de expansão do interior foi aplicada ontem à noite — respondeu Sophia, estalando os dedos.
Mabel ergueu uma sobrancelha, surpresa.
— Quando você fez isso?
— Enquanto vocês dormiam. Eu também descanso, sabia? Só que acordada.
— Nerd — comentou Ferme, passando por ela.
— Obrigado.
O velho já estava em seu posto com as rédeas nas mãos, examinando cada mecanismo da nova carroça com o brilho de uma criança diante de um brinquedo novo.
— Pode deixar comigo, majestade. Essa belezura aqui vai voar.
Mabel respondeu com um simples aceno de cabeça. Assim que todos estavam a bordo, a carroça começou a se mover, mais estável e rápida do que a antiga jamais seria. O caminho rumo ao Castelo do Antigo Reino de Axo se abria diante deles.
Cidade de Alveanor, Axoland
Na beira de uma piscina retangular esculpida com mármore branco, sob o sol frio e brando do inverno de Axoland, estava Yonji. O roupão preto bordado com detalhes dourados contrastava com sua pele clara, enquanto seus cabelos loiros ondulados estavam jogados para trás, levemente úmidos. Um livro antigo descansava em sua mão esquerda, enquanto na outra ele segurava uma taça de vinho vermelho escuro. Ele lia em silêncio, os olhos azuis intensos fixos nas páginas.
As águas refletiam o céu limpo e as torres da mansão de arquitetura barroca que se erguia atrás dele. Um cenário tão sereno que mal combinava com a energia latente do rapaz que ali estava.
De repente, uma esfera translúcida, brilhante e mágica flutuou até ele. Yonji ergueu os olhos apenas o suficiente para encará-la. A voz conhecida de Sophia ecoou da esfera:
— Yonji... aqui é Sophia. Algo aconteceu. A princesa foi atacada. Um grupo desconhecido tentou capturá-la. Ela está viva, mas a situação é instável. Preciso da sua ajuda e também do Piper. Você é a pessoa mais rápida que conheço. Me encontre o quanto antes.
Yonji fechou o livro sem marcar a página e girou a taça uma vez antes de beber o restante do vinho de um só gole. Ele soltou um suspiro longo, quase entediado.
— A princesa foi atacada, huh...? — murmurou, jogando a taça para o lado sem se importar com o som de vidro se estilhaçando no chão.
Levantou-se calmamente, os músculos bem definidos à mostra conforme seu roupão se abria com o movimento. Uma empregada correu até ele para entregar sua roupa de combate, mas ele só pegou os braceletes e o colar.
— Eu nem sei quem é esse grupo. E nem me importa. Se alguém forte estiver envolvido... — ele sorriu, mas seu olhar transbordava o mesmo vazio e sede de luta que só se via em lunáticos.
— ...então talvez essa viagem valha o tempo.
Sem trocar mais uma palavra, Yonji começou a caminhar para dentro da mansão, indo em direção à sua armaria.
Se a princesa havia sido atacada, então alguém estava se achando forte demais.
E isso era o tipo de coisa que ele simplesmente não conseguia ignorar.
— Sophia, Piper, Princesa e provavelmente Nidaime... Parece que algo grande está vindo.
Salão Judiciário de Axoland, Capital Axus
Salão Judiciário da Capital de Axoland —
O ambiente era imponente, com colunas de mármore dourado e vitrais com brasões antigos da realeza. As fileiras estavam ocupadas por nobres, comerciantes e cidadãos aguardando julgamento. Ao centro, sobre um degrau elevado e atrás de uma tribuna cercada por pergaminhos e livros de leis, estava Piper.
Seu cabelo negro caía suavemente sobre os olhos, e sua expressão era severa. Apesar da juventude evidente — não parecia ter mais que 18 anos — a postura era impecável. Terno escuro impecável, gravata perfeitamente alinhada, voz firme e compassada. Tudo nele gritava seriedade, responsabilidade e... justiça.
Piper olhava o réu com os olhos semicerrados.
— A sentença será dada de forma justa e imparcial. Mas antes...
Uma esfera mágica azulada apareceu ao lado de seu rosto, flutuando calmamente. A voz de Sophia ecoou da esfera:
— Piper. A princesa foi atacada. O grupo responsável é desconhecido. Estou com ela agora, mas precisamos de reforços. Preciso de você e do Yonji. Encontro no Castelo de Axo.
O salão ficou em silêncio quando Piper levantou a mão.
— Sessão adiada. Urgência de ordem nacional.
Sem mais palavras, ele desceu os degraus rapidamente e saiu pelas portas de carvalho maciço.
Já no saguão de entrada do tribunal, Piper ajeitava a gravata e pegava seu sobretudo. Porém, antes mesmo de alcançar a saída, uma voz arrastada e provocativa surgiu atrás dele.
— Finalmente. Achei que você ia dar mais um sermão antes de levantar essa bunda. — disse Yonji, encostado casualmente em uma das colunas, com as mãos nos bolsos e seu mesmo roupão de antes, mas já com a armadura leve por baixo. Os olhos semicerrados e o típico sorriso entediado no rosto.
Piper arqueou uma sobrancelha.
— Você veio me buscar?
— Claro. Minha magia é mais eficiente que qualquer carruagem fedida dessa capital. E se você tem senso de prioridade, sabe que essa princesa aí pode estar em apuros. — Yonji virou-se, fazendo sinal com a cabeça. — E chamei o Cristo também.
Piper deu uma pausa ao ouvir aquele nome.
— Você chamou... o Cristo?
— É. Se a situação tá feia a esse ponto, vai ser bom ter alguém como ele no time. — respondeu Yonji, dando de ombros. — Vamos?
Piper suspirou, pegando uma pequena maleta de combate que já estava deixada com um guarda ao lado da entrada.
— Tá certo. Mas se for só mais uma briga idiota sua por diversão, você me deve uma audiência com o Conselho.
Yonji riu.
— Te dou duas.
Ambos desapareceram em um feixe de luz, deixando o imponente tribunal para trás.
Cidade de Umbralis
A luz do final da tarde iluminava as cicatrizes da cidade de Umbralis. A reconstrução ainda estava em andamento, com trabalhadores se movendo pelas ruas quebradas e casas sendo erguidas com o auxílio de magia e ferramentas pesadas. No centro da cidade, próximo ao antigo palácio em ruínas, um homem negro de físico imponente e cabelos loiros em formato de ondas apertadas organizava uma pilha de suprimentos. Seu sorriso era largo e energético, e seu modo de falar... alto demais.
— EI, VOCÊ AÍ! — Cristo apontava para um rapaz que transportava tábuas tortas. — Não leva essa madeira toda torta não, porra! Vai desmontar com o vento!
Vestia um colete reforçado com ombreiras de prata e calças de couro escuro. Sua espada dupla estava fincada no chão ao lado de uma mesa improvisada com mapas da cidade. Cristo era pura energia falava com todos, dava ordens, carregava coisas, e ainda sobrava tempo pra cantarolar rimas sem sentido enquanto trabalhava.
Foi quando, num estalo de luz mágica, Yonji e Piper surgiram atrás dele.
— Hm? — Cristo se virou de imediato, colocando a mão sobre o cabo da espada. — Mas que...
— Relaxa, irmão. — Yonji levantou a mão. — É só eu.
— Princesa tá em perigo. — completou Piper, sério, sem rodeios.
Cristo imediatamente parou. Seu rosto perdeu o tom brincalhão por um momento. Olhou para os dois, depois para o palácio parcialmente destruído.
— A Cleme vai me matar se eu sair de novo... — resmungou, passando a mão na nuca.
— A Clemearl vai entender. — disse Yonji. — A Mabel é da realeza, e a coisa parece séria. Precisamos de você.
Cristo então se aproximou de Clemearl, que discutia algo com dois oficiais perto de um mapa.
— Ô, chefa... posso tirar uma folga relâmpago?
Clemearl o olhou de canto, com olheiras visíveis e um cigarro entre os dedos.
— Cristo, pelo amor do abismo, o que foi dessa vez?
Ele se inclinou e cochichou para ela os detalhes. Clemearl soltou um longo suspiro, esfregando o rosto.
— ...Vai. Mas volta vivo. E se aquela pirralha morrer, eu te mato, entendeu?
Cristo deu uma risada alta, se afastando enquanto girava as espadas nos ombros.
— AOOOOW, pode deixar, chefe! Cristo vai cantar vitória hoje, yeah!
Ele se juntou a Yonji e Piper, e os três o iluminado, o juiz e o guerreiro barulhento partiram.
Em segundos, sumiram como borrões no horizonte, cortando a estrada em direção ao Castelo Abandonado do Antigo Reino de Axo.