Os dias começaram a se repetir como capítulos de um pesadelo mal escrito. Paola acordava todos os dias ao som do alarme às 6h, mesmo que tivesse dormido mal — ou quase nada. Descia as escadas lentamente, sentindo as pernas mais pesadas do que no dia anterior. Sentava-se à mesa com Felipe, que mal a olhava. Tomava um café raso, sem fome, mas forçava-se a ingerir alguma coisa para aguentar o dia.
Na empresa, seu corpo seguia automático: responder ligações, anotar recados, lidar com planilhas, marcar reuniões. Não reclamava, não falava, apenas obedecia.
À noite, voltava para casa e se arrastava para limpar os cômodos. Cozinha, sala, corredor, banheiro. Passava pano no chão, tirava o pó dos móveis, lavava a louça que Felipe deixava suja, mesmo tendo empregados. Ele queria que fosse ela. Só ela. Como punição. Como domínio.
Com o tempo, Paola começou a emagrecer. As roupas elegantes que ele mandava preparar já não moldavam o corpo como antes. Seus olhos estavam fundos, escurecidos pelas olheiras profundas. O rosto, antes vibrante, agora tinha a palidez de quem estava sumindo aos poucos.
Naquela manhã de sexta-feira, a casa estava silenciosa. O céu nublado espelhava o peso do corpo dela. Paola desceu as escadas devagar, uma das mãos apoiada no corrimão. Sentia uma fraqueza nas pernas, mas ignorou. Seguiu até a cozinha, arrastando os chinelos nos pés.
Colocou água para ferver, pensando em fazer um chá fraco. Os olhos mal conseguiam focar os objetos. O estômago revirava, e as mãos tremiam levemente.
Felipe estava na sala, sentado em seu sofá com o jornal aberto sobre os joelhos. Uma música suave tocava no ambiente. O som de vidro quebrando o fez franzir o cenho.
— Paola? — chamou alto.
Nenhuma resposta.
Ele se levantou devagar, incomodado, e seguiu até a cozinha. Ao virar no batente da porta, o tempo pareceu desacelerar diante da cena.
Paola estava caída no chão. Um copo de vidro estilhaçado espalhado ao redor. A mão direita sangrava, e seus olhos estavam fechados, a pele pálida demais. O corpo frágil dobrado sobre o chão gelado.
— Paola! — a voz de Felipe ecoou pela casa, num tom que ele mesmo não reconheceu.
Ele correu até ela, ajoelhando-se no chão. Tocou o rosto dela com as mãos, desesperado.
— Ei! Acorda! O que aconteceu com você? — sua voz agora era rouca, trêmula.
Ela não respondeu.
O sangue escorria lentamente pelos dedos dela, manchando o piso branco.
— Maldição! — murmurou, puxando o celular do bolso e ligando imediatamente para o médico da família. — Doutor Henrique! Venha agora. Ela desmaiou... Está sangrando! Tô te mandando o endereço. Vem rápido!
Desligou o telefone e ficou ali, ajoelhado ao lado do corpo dela, pressionando a mão dela com um pano de prato.
— Você não pode fazer isso comigo agora... — murmurava, olhando para ela com algo estranho nos olhos. Não era só preocupação. Era culpa. Medo. Insegurança.
Pela primeira vez, ele não tinha o controle da situação.
Trinta minutos depois, o médico chegou com a maleta em mãos. Um senhor de uns cinquenta e poucos anos, calvo, com óculos pequenos sobre o nariz.
— O que aconteceu? — perguntou ao entrar e ver Felipe ajoelhado ao lado do corpo de Paola, agora deitada sobre o sofá.
— Ela desmaiou... Estava na cozinha, com um copo... sangrou — ele falava rápido, nervoso. — Ela não tá comendo direito... Eu achei que era frescura, mas...
O médico o cortou com um olhar grave.
— Ela está fraca demais. Exausta. Isso aqui é exaustão severa. Você quer matar a menina?
Felipe se calou. Pela primeira vez, abaixou os olhos.
Henrique examinou Paola com cuidado, limpou o corte da mão, aferiu os batimentos, a pressão.
— Ela precisa descansar. Dormir. Comer. Você entende o que está fazendo? Isso é crueldade, Felipe. Ela vai colapsar de novo se continuar nesse ritmo.
— Eu... Eu só estava tentando... — ele começou, mas não soube como terminar.
Henrique se levantou, fechando a maleta.
— Ou você muda, ou vai enterrar alguém. Estou falando sério. E agora, me dê privacidade. Ela precisa acordar com calma, sem barulho.
Felipe assentiu, ainda em choque. Saiu da sala sem dizer nada, subindo lentamente as escadas. No quarto, sentou-se na beirada da cama, olhando para as mãos. Pela primeira vez, a imagem que tinha de si mesmo começou a rachar.
Enquanto isso, no andar de baixo, Paola começava a recobrar os sentidos, com a testa suada, os olhos pesados e uma dor profunda no peito — física e emocional.
E, mesmo sem forças para se levantar, sabia no fundo da alma:
Algo dentro dela havia mudado. Para sempre.