Capítulo 18 A escolha que vem

A rotina foi se ajustando como um velho relógio de ponteiros — lento, mas constante.

Mamã acordava cada vez mais confusa, mas ainda havia nela momentos de brilho. Como quando lembrava antigas canções e as cantava baixinho, enquanto eu penteava seu cabelo.

— Lembras disso? — ela perguntava, e às vezes eu não lembrava. Mas dizia que sim. Porque o que importava não era a memória exata, mas a ponte entre nós.

Miguel passou a vir mais vezes. Comprava flores para Teresa. Contava histórias do trabalho como se quisesse trazer o mundo até ela. Clara, mais silenciosa, assumiu tarefas práticas: consultas, pagamentos, listas.

E eu… bem, eu fiquei com o invisível. O olhar atento. O tom de voz que não assusta. O colo quando o dia pesa.

Foi numa terça cinzenta que o e-mail chegou.

A editora do segundo livro queria levar “Enquanto Ela Lembra” para uma feira literária em Lisboa. Pediram minha presença. Seria uma oportunidade rara — de exposição, de entrevistas, de novos leitores.

Mostrei o convite para Jonas, coração acelerado.

— Vais, não vais? — ele perguntou, quase óbvio.

Mas eu hesitei.

— E a mamã?

— Tem Clara. Tem Miguel. E tu não vais embora para sempre, Isabel. Vais por ti. E por ela também. Este livro é dela.

A ideia de sair por alguns dias me assustava. Nunca estive tão presente na vida de Teresa como agora. Nunca fui tão necessária.

Mas talvez... talvez fosse esse o momento de provar que minha vida também continuava.

Contei para Clara na cozinha.

— Vais mesmo? — ela perguntou, cortando cebolas.

— Estou a pensar.

Ela parou. Olhou para mim com firmeza.

— Isabel, nós damos conta. Vai. Por ti. Pela mamã. Ela sempre quis que o mundo te visse como nós vemos agora.

Sorri. E aceitei.

Na semana antes da viagem, ajudei Teresa a organizar suas fotografias. Fizemos um álbum novo, com legendas grandes, claras. Em cada foto, ela sorria, como se visse tudo pela primeira vez.

— Tu eras tão bonita aqui — ela disse, apontando para uma imagem minha aos vinte anos.

— E agora?

Ela sorriu, meio malandra.

— Agora és inteira. E isso é muito mais bonito.

Chegou o dia da partida.

Deixei um bilhete ao lado do travesseiro dela:

“Mamã, volto logo. Com mais histórias. E todas têm um pedaço teu.”

Ela leu com atenção. Depois me abraçou com força. Não como uma despedida, mas como um voto de confiança.

E eu fui.

Fui com medo, com culpa, com saudade.

Mas fui.

Em Lisboa, as luzes me pareceram grandes demais. A feira era barulhenta, cheia de vozes apressadas e cheiros de papel novo. Mas no meio de tudo isso, uma leitora se aproximou.

— Você é a Isabel? A autora?

— Sim — respondi, quase tímida.

Ela segurou meu livro contra o peito.

— Obrigada por escrever o que eu nunca consegui dizer em voz alta.

Abracei-a. E foi ali, entre estranhos que se sentiam íntimos da minha dor, que compreendi: a minha história já não era só minha. Era de quem precisava dela.

Na volta para casa, uma surpresa me esperava: um pequeno caderno com a letra da minha mãe.

Jonas me entregou.

— Ela quis escrever algo enquanto estavas fora.

Abri com cuidado.

Na primeira página, lia-se:

“Minha filha favorita. Sim, porque foste a que ficou. E a que foi. E a que sempre volta.”

Chorei.

Não de dor.

Mas de confirmação.

Ali estava tudo o que eu precisava saber.

Mesmo com a memória a fugir, o amor dela permanecia.

Forte. Inabalável. Meu.