A rotina foi se ajustando como um velho relógio de ponteiros — lento, mas constante.
Mamã acordava cada vez mais confusa, mas ainda havia nela momentos de brilho. Como quando lembrava antigas canções e as cantava baixinho, enquanto eu penteava seu cabelo.
— Lembras disso? — ela perguntava, e às vezes eu não lembrava. Mas dizia que sim. Porque o que importava não era a memória exata, mas a ponte entre nós.
Miguel passou a vir mais vezes. Comprava flores para Teresa. Contava histórias do trabalho como se quisesse trazer o mundo até ela. Clara, mais silenciosa, assumiu tarefas práticas: consultas, pagamentos, listas.
E eu… bem, eu fiquei com o invisível. O olhar atento. O tom de voz que não assusta. O colo quando o dia pesa.
Foi numa terça cinzenta que o e-mail chegou.
A editora do segundo livro queria levar “Enquanto Ela Lembra” para uma feira literária em Lisboa. Pediram minha presença. Seria uma oportunidade rara — de exposição, de entrevistas, de novos leitores.
Mostrei o convite para Jonas, coração acelerado.
— Vais, não vais? — ele perguntou, quase óbvio.
Mas eu hesitei.
— E a mamã?
— Tem Clara. Tem Miguel. E tu não vais embora para sempre, Isabel. Vais por ti. E por ela também. Este livro é dela.
A ideia de sair por alguns dias me assustava. Nunca estive tão presente na vida de Teresa como agora. Nunca fui tão necessária.
Mas talvez... talvez fosse esse o momento de provar que minha vida também continuava.
Contei para Clara na cozinha.
— Vais mesmo? — ela perguntou, cortando cebolas.
— Estou a pensar.
Ela parou. Olhou para mim com firmeza.
— Isabel, nós damos conta. Vai. Por ti. Pela mamã. Ela sempre quis que o mundo te visse como nós vemos agora.
Sorri. E aceitei.
Na semana antes da viagem, ajudei Teresa a organizar suas fotografias. Fizemos um álbum novo, com legendas grandes, claras. Em cada foto, ela sorria, como se visse tudo pela primeira vez.
— Tu eras tão bonita aqui — ela disse, apontando para uma imagem minha aos vinte anos.
— E agora?
Ela sorriu, meio malandra.
— Agora és inteira. E isso é muito mais bonito.
Chegou o dia da partida.
Deixei um bilhete ao lado do travesseiro dela:
“Mamã, volto logo. Com mais histórias. E todas têm um pedaço teu.”
Ela leu com atenção. Depois me abraçou com força. Não como uma despedida, mas como um voto de confiança.
E eu fui.
Fui com medo, com culpa, com saudade.
Mas fui.
Em Lisboa, as luzes me pareceram grandes demais. A feira era barulhenta, cheia de vozes apressadas e cheiros de papel novo. Mas no meio de tudo isso, uma leitora se aproximou.
— Você é a Isabel? A autora?
— Sim — respondi, quase tímida.
Ela segurou meu livro contra o peito.
— Obrigada por escrever o que eu nunca consegui dizer em voz alta.
Abracei-a. E foi ali, entre estranhos que se sentiam íntimos da minha dor, que compreendi: a minha história já não era só minha. Era de quem precisava dela.
Na volta para casa, uma surpresa me esperava: um pequeno caderno com a letra da minha mãe.
Jonas me entregou.
— Ela quis escrever algo enquanto estavas fora.
Abri com cuidado.
Na primeira página, lia-se:
“Minha filha favorita. Sim, porque foste a que ficou. E a que foi. E a que sempre volta.”
Chorei.
Não de dor.
Mas de confirmação.
Ali estava tudo o que eu precisava saber.
Mesmo com a memória a fugir, o amor dela permanecia.
Forte. Inabalável. Meu.