Era outono em Paris, e as folhas que caíam me lembravam as versões de mim que eu vinha deixando para trás desde que pus os pés nessa cidade.
Lara adaptava-se com uma força silenciosa. Tinha feito amizades na universidade, ajudava em um coletivo de mulheres migrantes e, quando sobrava tempo, escrevia crônicas sobre a vida longe de casa.
— Mãe, publiquei hoje meu primeiro texto no blog da faculdade — disse, entregando-me o celular. — Chama-se “Ser filha de Isabel Guarda”.
Li em silêncio. Lá estava tudo. Sem floreios.
“Minha mãe é feita de fragmentos. Uns cortam. Outros curam. Crescer ao lado dela é aprender a amar o que é imperfeito e ainda assim essencial.”
Fechei os olhos. Lara não era mais menina. Estava escrevendo o mundo — e a mim — com palavras que não pediam permissão.
Dias depois, uma ligação de Clara mudou tudo.
— Isabel… desculpa te ligar agora. É sobre o Jonas.
Meu peito travou.
— O que aconteceu?
— Ele sofreu um acidente de moto. Está no hospital. Não é grave, mas... não está sozinho. Júlia estava com ele.
— Júlia?
— Sim. A filha da Letícia.
Sentei.
— Ele não me contou nada.
— Talvez nem soubesse como. Ou talvez… esteja tentando proteger alguém. Como sempre.
Viajei para Lisboa no dia seguinte. Lara insistiu em vir comigo.
— Ele faz parte da minha história também, mãe. Tu sabes.
Encontramos Jonas no hospital, deitado, com um braço enfaixado e o rosto arranhado, mas consciente. Júlia dormia numa cadeira ao lado.
— Vieste — disse ele, com um sorriso cansado.
— Vim.
— Queria te explicar antes… mas foi tudo tão rápido.
— Explica agora.
Ele respirou fundo.
— Júlia estava perdida. Desentendeu-se com o avô, abandonou os estudos, e… foi atrás de mim. Insistiu em andar comigo naquela estrada. A chuva começou de repente. A moto escorregou. Eu devia ter dito não.
Olhei para ele com raiva contida.
— Não é sobre a moto. É sobre ainda achares que és responsável por salvar todos. Até as feridas que não são mais tuas.
— Talvez seja tudo o que sei fazer.
Júlia acordou nesse momento. Ao me ver, sentou-se direita.
— Desculpa. Eu… não queria causar confusão.
— Não causaste confusão — respondi. — Só lembraste a todos nós que ainda temos coisas inacabadas.
Nos dias que se seguiram, ficamos todos em Lisboa. Lara reencontrou amigos antigos, visitou o centro cultural e, à noite, sentava comigo no velho sofá da casa de Clara para conversar sobre tudo — menos sobre Paris.
Jonas estava se recuperando. Mais calado do que o habitual. Até que me chamou para conversar a sós.
— Isabel, depois desse acidente… percebi que o tempo não é garantido. E se eu te perder sem dizer tudo, não me perdoo.
— Então fala.
— Eu quero ficar contigo. Mas não à sombra de quem eu fui. Nem escondido atrás da tua força. Quero caminhar ao teu lado. Em Paris, em Lisboa, onde for. Mas contigo.
Fiquei em silêncio.
— E a Júlia?
— Ela quer estudar fora. Psicologia. Está esperando resposta de uma bolsa. E quer manter contato contigo. Com Lara também.
Assenti.
— Então vamos com calma. Não prometas o que ainda estás aprendendo a ser.
Ele sorriu.
— Mas posso prometer que vou tentar. E não fugir mais.
De volta a Paris, uma nova notificação me esperava.
O coletivo que Lara participava fora indicado a um prêmio europeu de jovens escritores. E a crônica dela — sobre mim — era finalista.
Ela entrou no quarto com os olhos brilhando.
— Estás orgulhosa?
— Orgulho nem começa a descrever.
— E agora?
— Agora tu és quem escreve nossa história. E eu… aprendo a ser só parte dela.
Nos abraçamos. E soube que este capítulo era mesmo diferente.
Não era sobre memórias.
Era sobre o agora.