Capítulo 43 As palavras que não dissemos

Era outono em Paris, e as folhas que caíam me lembravam as versões de mim que eu vinha deixando para trás desde que pus os pés nessa cidade.

Lara adaptava-se com uma força silenciosa. Tinha feito amizades na universidade, ajudava em um coletivo de mulheres migrantes e, quando sobrava tempo, escrevia crônicas sobre a vida longe de casa.

— Mãe, publiquei hoje meu primeiro texto no blog da faculdade — disse, entregando-me o celular. — Chama-se “Ser filha de Isabel Guarda”.

Li em silêncio. Lá estava tudo. Sem floreios.

“Minha mãe é feita de fragmentos. Uns cortam. Outros curam. Crescer ao lado dela é aprender a amar o que é imperfeito e ainda assim essencial.”

Fechei os olhos. Lara não era mais menina. Estava escrevendo o mundo — e a mim — com palavras que não pediam permissão.

Dias depois, uma ligação de Clara mudou tudo.

— Isabel… desculpa te ligar agora. É sobre o Jonas.

Meu peito travou.

— O que aconteceu?

— Ele sofreu um acidente de moto. Está no hospital. Não é grave, mas... não está sozinho. Júlia estava com ele.

— Júlia?

— Sim. A filha da Letícia.

Sentei.

— Ele não me contou nada.

— Talvez nem soubesse como. Ou talvez… esteja tentando proteger alguém. Como sempre.

Viajei para Lisboa no dia seguinte. Lara insistiu em vir comigo.

— Ele faz parte da minha história também, mãe. Tu sabes.

Encontramos Jonas no hospital, deitado, com um braço enfaixado e o rosto arranhado, mas consciente. Júlia dormia numa cadeira ao lado.

— Vieste — disse ele, com um sorriso cansado.

— Vim.

— Queria te explicar antes… mas foi tudo tão rápido.

— Explica agora.

Ele respirou fundo.

— Júlia estava perdida. Desentendeu-se com o avô, abandonou os estudos, e… foi atrás de mim. Insistiu em andar comigo naquela estrada. A chuva começou de repente. A moto escorregou. Eu devia ter dito não.

Olhei para ele com raiva contida.

— Não é sobre a moto. É sobre ainda achares que és responsável por salvar todos. Até as feridas que não são mais tuas.

— Talvez seja tudo o que sei fazer.

Júlia acordou nesse momento. Ao me ver, sentou-se direita.

— Desculpa. Eu… não queria causar confusão.

— Não causaste confusão — respondi. — Só lembraste a todos nós que ainda temos coisas inacabadas.

Nos dias que se seguiram, ficamos todos em Lisboa. Lara reencontrou amigos antigos, visitou o centro cultural e, à noite, sentava comigo no velho sofá da casa de Clara para conversar sobre tudo — menos sobre Paris.

Jonas estava se recuperando. Mais calado do que o habitual. Até que me chamou para conversar a sós.

— Isabel, depois desse acidente… percebi que o tempo não é garantido. E se eu te perder sem dizer tudo, não me perdoo.

— Então fala.

— Eu quero ficar contigo. Mas não à sombra de quem eu fui. Nem escondido atrás da tua força. Quero caminhar ao teu lado. Em Paris, em Lisboa, onde for. Mas contigo.

Fiquei em silêncio.

— E a Júlia?

— Ela quer estudar fora. Psicologia. Está esperando resposta de uma bolsa. E quer manter contato contigo. Com Lara também.

Assenti.

— Então vamos com calma. Não prometas o que ainda estás aprendendo a ser.

Ele sorriu.

— Mas posso prometer que vou tentar. E não fugir mais.

De volta a Paris, uma nova notificação me esperava.

O coletivo que Lara participava fora indicado a um prêmio europeu de jovens escritores. E a crônica dela — sobre mim — era finalista.

Ela entrou no quarto com os olhos brilhando.

— Estás orgulhosa?

— Orgulho nem começa a descrever.

— E agora?

— Agora tu és quem escreve nossa história. E eu… aprendo a ser só parte dela.

Nos abraçamos. E soube que este capítulo era mesmo diferente.

Não era sobre memórias.

Era sobre o agora.