Paris era linda, mas Lisboa era lar. Mesmo que agora só me chamasse em sonhos.
Desde que me mudei para o novo cargo na UNESCO, passei os dias cercada por idiomas diferentes, decisões globais e elogios educados. Mas à noite, quando o silêncio tomava conta do meu pequeno apartamento parisiense, sentia a ausência da minha filha como uma segunda pele.
Lara era forte, crescida, dona de si. Mas ainda era minha. E não havia oceano que diminuísse a dor de estar longe dela.
O e-mail chegou numa manhã nublada, curto e direto.
Isabel, precisamos de ti em Lisboa. Há uma jovem aqui no centro cultural que diz te conhecer. Não deu sobrenome. Só disse que te viu numa palestra, anos atrás. E que estás ligada ao passado dela.
Era Lara quem escrevia.
Larguei tudo. Liguei para Jonas.
— Há algo que preciso resolver.
— Quer que eu vá contigo?
— Não. Preciso encarar isso sozinha.
— Então vai. Mas volta. Estou à tua espera.
Cheguei a Lisboa numa sexta-feira, fim da tarde. O cheiro da cidade me abraçou: pastelarias, livros antigos, e saudade.
Fui direto ao centro cultural. Lara me esperava no portão, os olhos marejados.
— Mãe…
— Minha menina…
Nos abraçamos por longos minutos. Havia alívio em sentir sua pele, seu perfume, a familiaridade do toque.
— O centro está igual — comentei, olhando em volta.
— Mas tu não estás.
— E nem tu.
Ela me levou até uma sala dos fundos. Lá dentro, uma jovem esperava. Cabelos escuros, olhar inquieto. Tinha uns 19 ou 20 anos. Levantou-se ao me ver.
— Isabel?
Assenti.
— Eu sou Júlia.
Fiquei imóvel.
— Minha mãe… era Letícia.
Sentei-me antes que o mundo girasse demais.
— Como me encontraste?
— Quando criança, minha mãe falava de ti. Disse que a ouvias. Que não a julgavas. E que foste a primeira mulher que ela admirou. Depois… ela nunca mais falou. Mas eu ouvi uma palestra tua, há três anos. E reconheci o nome. Desde então… comecei a procurar.
— Letícia…
— Ela morreu. Há um ano. Depressão. O meu avô tentou me criar, mas agora está doente. Então... sobrou só eu. E perguntas.
Fiquei em silêncio. Sentia a presença do passado como um peso sobre o peito.
— E o que queres de mim?
— Quero saber quem era o homem que ela amou. O Jonas.
Fechei os olhos.
— Júlia… isso é complicado.
— Eu não vim por escândalos. Vim por identidade.
Abri os olhos. Vi nela a fragilidade que Letícia carregava. Mas também… uma força nova. Algo que talvez viesse da ausência — ou da esperança.
Contei a verdade a Jonas naquela noite.
— Ela está aqui, Jonas. A filha da Letícia. Júlia.
Ele ficou em silêncio.
— Ela sabe?
— Sabe do nome. Mas não de tudo. Não da dor. Nem da culpa.
— E tu? Como te sentes?
— Dividida. Entre o que devo a ela… e o que preciso proteger em ti.
— Não me protejas — ele disse. — Protege a verdade.
Nos dias que se seguiram, conversei mais com Júlia. Ela contou sobre os diários da mãe, sobre frases soltas que guardava na memória, e sobre a raiva de ter crescido com ausências e silêncios.
— Às vezes, sinto que minha mãe tentou me amar… mas estava quebrada demais.
— Ela tentou, Júlia. De verdade. E por isso, tu existes.
Ela chorou. Eu também.
— Posso conhecer o Jonas?
— Queres mesmo?
— Preciso.
O encontro foi marcado num domingo, ao entardecer.
Jonas chegou antes. Esperava em silêncio, sentado sob a árvore do jardim do centro.
Júlia se aproximou. Os dois se olharam.
— Olá — disse ele.
— Tu és o Jonas?
— Sou.
— E foste o homem que a minha mãe amou?
— Fui. Mas também fui o homem que a decepcionou. E é por isso que estou aqui. Para não fugir mais.
Ela sentou-se. Ficaram calados por longos minutos.
Depois, Júlia falou:
— Quero que me digas quem ela foi. Mas também quero saber quem tu eras.
E ali começou algo inesperado. Um tipo de perdão que não se declara. Mas que se constrói em cada olhar, em cada silêncio partilhado.
Na varanda de casa, naquela noite, Lara sentou ao meu lado.
— Tu voltas para Paris?
— Sim. Mas com parte de mim aqui.
— Eu vou contigo.
Virei o rosto, surpresa.
— O quê?
— Consegui uma bolsa de estudos. E Daniel… vem depois.
— E o centro cultural?
— Já tem vida própria. Agora é hora de viver a minha.
Sorri. Em silêncio.
E senti, pela primeira vez, que a distância… não era mais ruptura.
Era continuidade.