Ser mãe de uma filha que começa a amar é um terremoto silencioso. Um abalo que começa no estômago, sobe pelo peito e se instala na garganta. Mesmo quando queremos sorrir por ela… parte de nós ainda quer protegê-la do mundo. E do amor.
Especialmente quando o amor atende pelo nome de Daniel.
Desde que começaram a se ver com mais frequência, Lara andava com o rosto iluminado — e o olhar distante. Os passos já não soavam com pressa; ela carregava o corpo como quem atravessa nuvens. Eu conhecia aquele estado. Já estive nele. E sabia o quanto podia ser perigoso.
Naquela manhã, ela preparava café quando decidi falar.
— Estás diferente, Lara.
Ela sorriu.
— Diferente como?
— Como quem vive com alguém dentro da cabeça.
Ela mordeu o lábio.
— É o Daniel. Está a ser... mais do que pensei. Ele é gentil. Cuidadoso. Não me pressiona. E mesmo assim, sinto como se estivesse sempre perto.
Assenti. Mas o silêncio me traiu.
— Mãe… — disse ela, percebendo — Estás contra isso?
— Não estou contra. Só… em alerta. És minha filha. E sei o quanto é fácil confundir atenção com amor, cuidado com dependência.
— Mas não foi assim que tu e o Jonas começaram?
Engoli seco. A pergunta não era provocação. Era reflexo.
— Talvez. E por isso te digo: vai com calma. Não te esqueças de ti dentro desse sentimento.
Ela se aproximou. Me abraçou.
— Mãe… eu nunca me esqueço de ti. Porque estás em tudo o que sou.
Mais tarde, recebi um e-mail que me tirou o ar.
Prezada Isabel Guarda,
Vimos sua participação no documentário "Verdade em Reconstrução". Em nome da UNESCO, gostaríamos de convidá-la a participar como conselheira permanente no Comitê de Educação e Justiça Social, com base em Paris. O cargo exigiria mudança de país. Aguardamos resposta nas próximas duas semanas.
Paris.
Mudança.
Novo papel.
Outro recomeço.
Sentei-me. Olhei para a tela por longos minutos.
Jonas entrou na sala.
— Estás pálida. O que aconteceu?
Mostrei o e-mail. Ele leu em silêncio.
— É… um convite importante.
— É mais do que isso, Jonas. É uma ruptura. Com tudo.
— Comigo?
— Contigo. Com Lara. Com o centro cultural. Com o lugar onde sangrei para criar raízes.
Ele se aproximou.
— É uma chance de expandir o que já és. Não de fugir.
— Mas a Lara…
— Ela já é quase adulta, Isabel.
— Mas ainda é minha filha.
— E filhos… aprendem a voar vendo as mães abrirem as próprias asas.
Fiquei em silêncio. Parte de mim queria aceitar. Parte queria ficar.
Naquela noite, Lara chegou mais tarde. Cabelos bagunçados pelo vento, olhos acesos.
— O Daniel me convidou para conhecer a mãe dele.
Senti o estômago apertar.
— E aceitaste?
— Sim. Quero que ela saiba quem eu sou. Quero que me veja não como “a filha da Isabel”, mas como… alguém inteira.
Sorri, mas meu peito se partiu um pouco.
— Estás a crescer rápido.
— Estás a me perder?
— Nunca. Só… estou aprendendo a te ver como mulher. E isso… dói mais do que imaginei.
Ela segurou minha mão.
— Só quero que estejas orgulhosa de mim.
— Sempre estive. Mesmo quando não soube demonstrar.
Na manhã seguinte, reuni Lara e Jonas para conversar.
— Recebi um convite de Paris.
Eles se entreolharam.
— É grande — continuei. — Mas exige mudança. E não sei se estou pronta para deixar vocês dois.
Lara foi a primeira a falar.
— Mãe… se for para crescer, vai. Eu cresço contigo ou sem ti. Mas não deixes que eu seja a desculpa para tu deixares de viver.
Jonas assentiu.
— Vamos dar um jeito. E se precisares, eu te acompanho.
— Tu irias?
— Iria para qualquer lugar… desde que estejas lá.
Fiquei em silêncio. As palavras eram grandes demais. E o coração, apertado demais.
Na varanda, naquela noite, sentei sozinha. O céu estava limpo. O ar leve. Mas dentro de mim, tudo era peso.
Clara ligou.
— Estás bem?
— Estou confusa.
— Então estás viva.
Rimos. Mas depois fiquei séria.
— Achas que devo ir?
— Acho que deves fazer o que sempre fizeste: decidir com o coração. E depois… com coragem.
— E tu? Como estás?
— A reconstruir. Como sempre.
E desligamos. Mas aquela conversa me deu mais força do que todas as reuniões.
Dois dias depois, sentei com Lara no banco da praça onde costumávamos ir quando ela era criança.
— Vais aceitar, não vais?
— Ainda não sei.
— Queres ir?
— Quero. Mas… e tu?
Ela sorriu.
— Eu fico. E sigo. O Daniel está a aplicar para uma bolsa em Lisboa. Podemos tentar juntos. Mas mesmo que não dure, aprendi contigo: o importante é não desistir de viver por medo de falhar.
Lágrimas vieram. Mas não de tristeza.
— Cresceste, minha filha.
— Porque tu me deixaste errar.
Nos abraçamos. E soube, ali, que o amor de mãe é saber partir… e saber voltar.
Na última página do meu caderno, escrevi:
“O amor verdadeiro não prende. Ele liberta. Mesmo que parta o peito ao meio. Mesmo que só reste um pedaço do que fomos. Porque o que sobra… é sempre mais forte do que o que ficou para trás.”
E naquele dia, soube:
Eu iria.
Mas não sozinha.
Iria com tudo o que vivi.
E com todos que me tornaram quem sou.