Quando a primeira carta anônima chegou ao centro cultural, achei que fosse mais uma provocação de Bianca. Mas havia algo diferente nela.
Sem insultos.
Sem acusações.
Apenas uma frase:
"Você não conhece tudo o que Jonas escondeu. E ele também não sabe tudo sobre você."
Guardei o papel na gaveta sem comentar com ninguém. Nem com Jonas.
Mas dentro de mim, algo se remexeu. Não era dúvida. Era o peso do que ainda não foi dito.
Lara, por outro lado, vivia dias doces com Daniel. Almoços rápidos no jardim dos fundos do centro, trocas de olhares, e livros compartilhados como bilhetes secretos. Mas a leveza durou pouco.
— Ele recusou o cargo de coordenador do projeto de literatura infantojuvenil — disse ela, num fim de tarde.
— Por quê?
— Disse que não quer trabalhar diretamente comigo. Que poderia atrapalhar… o que temos.
— E isso te magoou?
— Um pouco. Mas mais do que isso… me confundiu.
Ficamos em silêncio.
— Talvez ele só esteja assustado — sugeri.
— Ou talvez eu tenha me iludido, de novo.
— Lara, não tenhas medo de sentir. Medo demais engessa o coração.
Ela me olhou. Havia raiva, mas também tristeza.
— Tu e o Jonas também têm medo?
— Todos os dias. A diferença é que não fugimos mais dele. A gente convida o medo pra sentar à mesa… e seguimos a conversa.
Dois dias depois, recebi um convite inesperado. Uma fundação internacional queria me entrevistar para um documentário sobre mulheres que superaram crises públicas.
— Terás visibilidade internacional — disse a produtora. — Mas precisamos incluir todas as camadas da tua história. Inclusive a relação com Jonas… e o que aconteceu na ONG Raízes.
Hesitei.
— Vais falar com ele?
— Já falamos. Mas ele sugeriu que só falássemos contigo se estivesses confortável.
Jonas. Sempre tentando me proteger... mesmo quando a exposição era inevitável.
Naquela noite, mostrei o convite a ele. A expressão dele era calma, mas o olhar dizia tudo.
— Vais aceitar?
— Não sei.
— Se aceitares, estarei ao teu lado. E se não… também.
— Obrigada.
Mas dentro de mim, a resposta já borbulhava.
Eu aceitaria. Não por orgulho. Mas porque a verdade só tem poder se for partilhada.
Foi no dia seguinte que o passado finalmente bateu à porta. Literalmente.
— Isabel Guarda? — disse o homem. — Sou Tomás.
Meu estômago virou. Tomás. Meu ex. O nome que ficou enterrado entre os escombros da minha antiga vida.
— O que estás a fazer aqui?
Ele sorriu, sem graça.
— Vi tua entrevista na rádio. Depois li sobre o documentário. Achei que… era hora de consertar coisas.
— Agora?
— Demorei. Eu sei.
Ele pediu para conversar. E como quem já sabia que a história precisava ser fechada, aceitei.
Nos sentamos num café discreto, longe do centro cultural.
— Fui covarde — ele começou. — Quando tu mais precisavas, eu desapareci. Te culpei por ser intensa, por te doer demais… quando na verdade eu é que era pequeno.
— Eu segui, Tomás.
— Eu sei. Vi tuas fotos com o Jonas. Leste aquelas cartas na rádio. E vi o jeito como falavas. É uma mulher que eu nunca conheci.
— Porque não estavas disposto a me ver inteira.
Ele ficou em silêncio. Depois suspirou.
— Mesmo assim… posso pedir desculpas?
— Podes. E eu aceito. Mas o perdão não traz de volta o que fomos. E, sinceramente… ainda bem.
Nos despedimos com um abraço. Sem tensão. Sem desejo. Apenas um fechamento. E isso… era liberdade.
À noite, Jonas me esperava com o olhar curioso.
— Adivinha quem apareceu hoje?
— Não faço ideia.
— Tomás.
Ele franziu a testa. Mas não houve ciúmes. Apenas um cuidado silencioso.
— Está tudo bem? — perguntou.
— Está. Melhor do que pensei.
— E agora?
— Agora… estou pronta para contar nossa história ao mundo.
Ele sorriu. E pela primeira vez, vi paz nos olhos dele.
A gravação do documentário foi feita numa casa de campo, rodeada por árvores. O cenário era de paz. Mas o tema… cheio de espinhos.
— Como foi amar alguém com um passado público conturbado? — perguntou a entrevistadora.
— Foi como andar descalça em chão de vidro. Mas também foi… necessário. Porque eu também carregava cacos. E só quem sabe o que é quebrar… entende o valor de reconstruir.
— E tuas cicatrizes?
— São mapa. Não vergonha.
— Ainda amas o Jonas?
— Mais do que nunca. Porque agora o amo sabendo tudo o que ele não é. E mesmo assim… ele fica.
A gravação terminou com aplausos da equipe. Mas a maior conquista foi outra: eu me senti leve. Inteira. Sem esconderijo.
Dois dias depois, Daniel procurou Lara.
— Fugi porque me apaixonei — confessou. — E tive medo de que o trabalho destruísse o que estava nascendo entre nós.
— E agora?
— Agora entendo que só se destrói o que não tem raízes. E eu… quero criar raízes contigo.
Ela chorou. Depois o beijou. E finalmente, se permitiu viver o amor que não sabia nomear.
Na varanda, Jonas e eu vimos o pôr do sol.
— O que vem depois disso? — ele perguntou.
— Mais vida. Mais verdade. E, claro… mais capítulos.
Ele me apertou contra o peito.
E ali, debaixo do céu que já testemunhara tanta dor, recomeçamos mais uma vez.
Dessa vez, prontos para tudo.
Até mesmo para ser felizes.