Capítulo 39 O amor que ainda não sabemos nomear

Era um sábado de manhã quando notei que Lara andava diferente. Ela chegava mais cedo ao centro cultural, mas falava menos. Sorria em momentos que antes não sorriria. E às vezes, parecia distante mesmo quando estava sentada ao meu lado.

— Tens andado quieta — comentei, servindo-lhe um chá.

Ela olhou para mim e deu um sorriso breve.

— É que… acho que estou a sentir coisas que não sei explicar.

— Coisas… boas?

— Confusas.

Sentei-me com ela na sala de leitura. O centro estava vazio, só nós duas e os livros escutando.

— Fala, Lara.

Ela hesitou. Depois respirou fundo.

— É o Daniel.

Daniel era um dos novos colaboradores da reforma da biblioteca. Tímido, de voz baixa, sempre de óculos pendurados no pescoço. Lara e ele haviam trocado algumas conversas, mas eu nunca imaginaria que algo estava se formando ali.

— Aconteceu alguma coisa?

— Ele me convidou para tomar um café. Fomos. Falamos por horas. E… ele me ouviu. De verdade. Sem tentar consertar nada.

— E isso te assustou?

— Muito.

Fiquei em silêncio por um instante. Depois sorri.

— Às vezes o medo não vem porque algo está errado. Vem porque, pela primeira vez, algo tem chance de dar certo.

Ela riu com nervosismo.

— Não sei se estou pronta.

— Ninguém está. Mas se esperares estar, talvez percas a chance de viver.

Na semana seguinte, recebi um convite oficial para ser palestrante numa conferência sobre liderança feminina. O evento seria transmitido nacionalmente. Meu nome estava na programação ao lado de escritoras e ativistas de renome.

Jonas ficou feliz, mas notei uma tensão em seu rosto.

— Estás preocupado?

— Um pouco. Quanto mais visível ficas, mais exposta também.

— Já estou exposta. E escolhi não viver me escondendo.

— Só… cuida de ti.

Aquela frase me acompanhou durante dias. Porque eu sabia o que ele queria dizer. Eu não era mais só Isabel. Era um símbolo. E símbolos, às vezes, viram alvo.

Dias antes da palestra, uma nova notícia se espalhou: um blog publicou uma “reportagem investigativa” sobre o passado da ONG Raízes, mencionando Jonas. Não havia provas novas, apenas especulações antigas embaladas em palavras sensacionalistas.

Recebi dezenas de mensagens. Algumas de apoio. Outras… nem tanto.

“Como pode defender um homem assim?”

“Decepção.”

“Agora entendo por que foste tão dura com Bianca — estavam protegendo-se.”

A raiva veio, mas passou rápido. O que ficou foi o peso.

Naquela noite, sentei ao lado de Jonas na varanda.

— Sabes que isso ia acontecer — disse ele.

— Sim. Mas não pensei que ainda doesse tanto.

— Vamos embora, se quiseres. Mudamos de cidade. Recomeçamos.

— Não. Eu não fujo. Nem de mim, nem de ti. Vamos enfrentar isso. Juntos.

Ele me olhou com algo mais forte do que amor. Era confiança. Lealdade. Um tipo de ternura que só nasce em campos de batalha.

No dia da palestra, a sala estava lotada. Quando chamaram meu nome, senti as pernas tremerem. Mas caminhei. Com passos firmes. Porque agora eu era inteira.

Peguei o microfone. Respirei.

— Hoje quero falar não sobre perfeição. Mas sobre falhas. Sobre as dores que nos moldam. E os recomeços que não precisam de autorização alheia para existirem.

Falei de mim. De Jonas. De Lara. Da minha mãe. Das rachaduras familiares que, um dia, pareciam irreparáveis.

A plateia ficou em silêncio. Mas não era indiferença. Era escuta profunda.

Ao terminar, fui ovacionada de pé.

Mas o que mais me marcou veio depois. Uma jovem se aproximou. Estava emocionada.

— Obrigada, Isabel. Hoje, pela primeira vez, senti que minha história… também pode continuar.

Na semana seguinte, Lara apareceu no centro com olhos diferentes. Brilhavam.

— Aconteceu?

— Ele me beijou — disse, rindo. — E depois pediu desculpas… e depois me beijou de novo.

— E tu?

— Beijei de volta. Mas ainda não sei o que somos.

— Nem precisam saber agora. O amor nem sempre chega com nome. Às vezes, ele só chega.

Ela suspirou.

— Ele disse que me admira. Que vê força em mim. Nunca ouvi isso antes… de um homem.

— Porque tu foste criada para achar que tua força afasta. Mas ela só afasta quem não sabe ficar.

Ela me abraçou. E naquele abraço, senti que ambas estávamos a crescer. Em direções novas. Mas paralelas.

Na varanda, naquela noite, Jonas colocou uma música. Baixa. Suave.

— Tu mudaste — ele disse.

— Para pior?

— Para ti. E isso é tudo o que importa.

Dançamos lentamente. No escuro. Sem plateia. Sem rede social. Só nós. E o som da reconstrução.

Talvez o amor não seja uma história com final feliz. Talvez ele seja só isso: o ato de ficar, mesmo quando tudo parece ruir. E reconstruir. Com mãos firmes e corações vulneráveis.

E, finalmente, com verdade.