Uma semana depois da saída de Bianca, o centro cultural voltou ao seu ritmo — pelo menos à primeira vista. Mas o silêncio entre as paredes escondia algo mais profundo: uma tensão adormecida. E não demorou para ela acordar.
Naquela manhã, cheguei ao centro e encontrei Lara sentada na minha sala, pálida.
— Há uma mulher lá fora — disse. — Diz que veio falar contigo… sobre Jonas.
— Quem é?
— Não disse o nome. Só que… sabe de ti. E da Letícia.
Meu coração apertou. Respirei fundo. Saí da sala e a vi.
Alta, morena, cabelos bem penteados e um casaco bege alinhado. Tinha o olhar fixo, como quem não se deixa distrair por nada.
— Isabel? — perguntou. — Sou Beatriz. Antiga tutora de Letícia. E também… psicóloga da ONG Raízes, nos últimos anos de funcionamento.
— Pode entrar.
Ela entrou. Com a dignidade de quem carrega algo sério. Sentou-se, cruzou as mãos no colo.
— Não estou aqui para atacar. Estou aqui porque o silêncio virou uma prisão. E a tua história está a ser contada publicamente. Achei que merecias saber o resto.
— O resto do quê?
— Letícia… está viva. Mas vive reclusa, com o pai, no interior. Depois do afastamento do Jonas, ela teve uma crise grave. Mas não foi ele o único responsável. Ela já vinha fragilizada. Tinha tendências destrutivas. Jonas foi imprudente, sim. Mas também foi… humano.
Eu não sabia se aquilo me aliviava ou me atormentava mais.
— Por que estás me dizendo isso agora?
— Porque quero impedir que faças com ele o que Letícia fez: que o transformes num símbolo de tudo que deu errado. Ele errou, Isabel. Mas não é só isso. E se tu o amas… precisas amar com os olhos abertos.
Assenti. Ela se levantou. Mas antes de sair, deixou um envelope.
— Aqui estão cartas. Escritas por ela. Algumas citam o Jonas. Outras… falam de ti.
— De mim?
— Sim. Ela te viu, anos atrás, numa palestra. Disse que invejava tua força. Nunca imaginou que estarias ligada a ele.
E saiu, como se tivesse deixado uma bomba prestes a explodir.
Naquela noite, esperei Jonas chegar. As cartas ainda fechadas, sobre a mesa.
Ele entrou, tirou o casaco, e me beijou de leve.
— Tiveste um dia difícil?
— Recebi visita. Beatriz. Psicóloga da ONG. Ela trouxe isso — apontei para as cartas.
Jonas empalideceu.
— São da Letícia.
— Sabias que ela ainda escrevia?
— Não. Nunca soube se ela queria falar comigo de novo.
— E agora?
Ele olhou para mim. Sério. Vulnerável.
— Agora quero que tu leias. E depois… decides se ainda me queres aqui.
Abri a primeira carta naquela noite.
"Querida Isabel,
Não te conheço, mas já ouvi tua voz. Já vi tua coragem.
Queria ter sido forte assim."
E assim li por horas. Cartas cheias de dor, de admiração, de confusão. Letícia falava do amor por Jonas, mas também da sombra que ela mesma carregava. Em uma carta, mais recente, escreveu:
"Se um dia ele amar alguém como tentou me amar… espero que essa pessoa tenha a coragem de não o abandonar. Ele foi o único que viu minha luz quando eu mesma só via escuridão."
Fechei os olhos. As lágrimas vieram. Não de culpa. Mas de um reconhecimento profundo. Ninguém sai ileso de amar.
Dois dias depois, fui chamada para um programa de rádio local. Tema: mulheres que reconstroem suas histórias após escândalos públicos. Alguém da imprensa soube do caso de Bianca e quis usar minha história como exemplo de superação.
Na sala de espera, Lara me acompanhava, nervosa.
— Estás pronta?
— Ninguém está. Mas vamos.
Fui ao ar com a voz firme. Falei da minha trajetória, da queda e da reconstrução. Não citei nomes, mas deixei claro que verdade dói… mas liberta.
Após o programa, uma mensagem chegou. Era da diretora de uma ONG para vítimas de abuso psicológico. Queria que eu fosse embaixadora do novo projeto.
Sorri.
Era como se o mundo dissesse: “segue, mesmo com as cicatrizes.”
Mas a paz durou pouco. Numa tarde cinzenta, Lara chegou ofegante ao centro cultural.
— Isabel! Tens de vir. A Bianca está lá fora. Com um jornalista.
— O quê?
Corri. E lá estava ela. Postada diante da entrada, com microfone, câmera e um discurso decorado.
— Estou aqui para expor as injustiças! Para mostrar que esta mulher, Isabel, protegeu um homem com histórico de condutas antiéticas. E que expulsou uma funcionária com base em mentiras!
O repórter se virou para mim.
— Algum comentário, Isabel?
Respirei fundo.
— Sim. Comentário simples: minha verdade está registrada, documentada e enfrentada. Quem vive escondido atrás de escândalos falsos é quem tem algo a perder.
A gravação parou. Bianca tentou continuar, mas o jornalista não se interessou.
Ela saiu furiosa. Mas... não perigosa. Pela primeira vez, parecia apenas desesperada. E vencida.
Naquela noite, fui à casa de Clara. Levava comigo um envelope.
— O que é isso?
— Uma carta. De Letícia. Ela te menciona. Disse que dividiu quarto contigo, anos atrás.
Clara a leu em silêncio. Depois, com os olhos cheios.
— Ela era tão frágil. E eu… nunca soube o que fazer por ela.
— Foste presença. E às vezes, é o que mais precisamos.
Nos abraçamos. E por dentro, algo em nós duas se costurava de novo.
Na varanda, Jonas esperava com uma manta no colo.
— Estás bem? — perguntou.
— Estou. Pela primeira vez, sem medo do que fui. Nem do que ainda posso ser.
Ele me estendeu a mão.
— Queres reconstruir comigo?
— Quero. Mas sem apagar o que nos quebrou.
Nos sentamos. E ali, sem promessas exageradas, recomeçamos.
Com tudo.
Com verdade.
Com amor.