Fazer o certo nunca foi sinônimo de paz.
Naquela manhã, Vera me entregou um pen drive com arquivos criptografados. Havíamos combinado de nos encontrar numa praça afastada, como duas mulheres comuns — mas sabíamos que carregávamos nas mãos o tipo de verdade que derruba instituições inteiras.
— Estás pronta para ir até o fim? — perguntou ela, enquanto o vento bagunçava seus cabelos curtos.
— Já cheguei longe demais para voltar — respondi.
O conteúdo do pen drive era devastador: transferências disfarçadas entre ONGs fantasmas, assinaturas forjadas de funcionários mortos, e nomes de políticos europeus recebendo “consultorias” de organizações humanitárias.
Meu nome aparecia em três relatórios. Todos falsificados.
— Precisamos de tempo para cruzar os dados — disse Vera. — Mas uma coisa é certa: tua denúncia foi o fio certo a puxar.
Jonas andava mais calado que o normal. Mas não era o silêncio usual — era outro. Mais pesado. Mais denso.
— Que se passa? — perguntei, certa noite.
— Recebi uma ligação. De um homem chamado Rodrigo Serpa.
— E quem é ele?
— Meu ex-supervisor na ONG Raízes. Foi demitido na mesma época que eu. Nunca entendi por quê. Achava que era só pela minha situação com Letícia.
— E agora?
— Ele quer me encontrar. Disse que tem algo pra me dizer… sobre Letícia. E sobre o motivo real de minha saída.
— Vais?
— Tenho que ir.
Enquanto isso, Lara recebia uma proposta que faria tremer qualquer escritora iniciante: a Feira Literária de Buenos Aires a convidara como uma das jovens autoras em destaque do continente.
— Não entendo — disse ela, passando os dedos no celular. — Eles leram minha crônica traduzida para o espanhol. Querem que eu fale sobre identidade, legado e nome.
— E o que vais dizer?
— Que às vezes, carregar um nome famoso é mais difícil que não ter nome nenhum.
Ela estava dividida.
— Vais aceitar?
— Quero. Mas… o que vão dizer sobre ti? Sobre a nossa família?
— Vão dizer o que quiserem. E tu vais responder com literatura. É assim que se vence.
Jonas encontrou Rodrigo dois dias depois. Voltou com o rosto pálido e os olhos fundos.
— Ele disse que fui usado como bode expiatório. Que a ONG, na época, já estava sendo investigada. Usaram o escândalo com Letícia para encobrir desvios internos.
— E por que agora ele decide falar?
— Está doente. Quer limpar a consciência. E... deixou uma pasta comigo. Com documentos, e-mails. Tudo que compromete os ex-diretores.
— Vais entregar?
— Se isso proteger outras pessoas… sim.
Mas eu via no olhar dele o velho conflito: entre fazer justiça e preservar o pouco de paz que ainda tínhamos.
No dia seguinte, Vera analisou a pasta de Rodrigo.
— Isso liga os diretores da Raízes ao mesmo grupo envolvido nos contratos da UNESCO. Está maior do que imaginávamos.
— E perigoso?
— Extremamente. Vamos precisar escolher aliados com cuidado.
Júlia, que até então observava tudo em silêncio, chamou-me no terraço.
— Eu… não sei se aguento ver vocês enfrentarem tudo isso. Parece grande demais. E eu só queria ter uma vida normal.
— Não tens obrigação de carregar nada, Jú
Fazer o certo nunca foi sinônimo de paz.
Naquela manhã, Vera me entregou um pen drive com arquivos criptografados. Havíamos combinado de nos encontrar numa praça afastada, como duas mulheres comuns — mas sabíamos que carregávamos nas mãos o tipo de verdade que derruba instituições inteiras.
— Estás pronta para ir até o fim? — perguntou ela, enquanto o vento bagunçava seus cabelos curtos.
— Já cheguei longe demais para voltar — respondi.
O conteúdo do pen drive era devastador: transferências disfarçadas entre ONGs fantasmas, assinaturas forjadas de funcionários mortos, e nomes de políticos europeus recebendo “consultorias” de organizações humanitárias.
Meu nome aparecia em três relatórios. Todos falsificados.
— Precisamos de tempo para cruzar os dados — disse Vera. — Mas uma coisa é certa: tua denúncia foi o fio certo a puxar.
Jonas andava mais calado que o normal. Mas não era o silêncio usual — era outro. Mais pesado. Mais denso.
— Que se passa? — perguntei, certa noite.
— Recebi uma ligação. De um homem chamado Rodrigo Serpa.
— E quem é ele?
— Meu ex-supervisor na ONG Raízes. Foi demitido na mesma época que eu. Nunca entendi por quê. Achava que era só pela minha situação com Letícia.
— E agora?
— Ele quer me encontrar. Disse que tem algo pra me dizer… sobre Letícia. E sobre o motivo real de minha saída.
— Vais?
— Tenho que ir.
Enquanto isso, Lara recebia uma proposta que faria tremer qualquer escritora iniciante: a Feira Literária de Buenos Aires a convidara como uma das jovens autoras em destaque do continente.
— Não entendo — disse ela, passando os dedos no celular. — Eles leram minha crônica traduzida para o espanhol. Querem que eu fale sobre identidade, legado e nome.
— E o que vais dizer?
— Que às vezes, carregar um nome famoso é mais difícil que não ter nome nenhum.
Ela estava dividida.
— Vais aceitar?
— Quero. Mas… o que vão dizer sobre ti? Sobre a nossa família?
— Vão dizer o que quiserem. E tu vais responder com literatura. É assim que se vence.
Jonas encontrou Rodrigo dois dias depois. Voltou com o rosto pálido e os olhos fundos.
— Ele disse que fui usado como bode expiatório. Que a ONG, na época, já estava sendo investigada. Usaram o escândalo com Letícia para encobrir desvios internos.
— E por que agora ele decide falar?
— Está doente. Quer limpar a consciência. E... deixou uma pasta comigo. Com documentos, e-mails. Tudo que compromete os ex-diretores.
— Vais entregar?
— Se isso proteger outras pessoas… sim.
Mas eu via no olhar dele o velho conflito: entre fazer justiça e preservar o pouco de paz que ainda tínhamos.
No dia seguinte, Vera analisou a pasta de Rodrigo.
— Isso liga os diretores da Raízes ao mesmo grupo envolvido nos contratos da UNESCO. Está maior do que imaginávamos.
— E perigoso?
— Extremamente. Vamos precisar escolher aliados com cuidado.
Júlia, que até então observava tudo em silêncio, chamou-me no terraço.
— Eu… não sei se aguento ver vocês enfrentarem tudo isso. Parece grande demais. E eu só queria ter uma vida normal.
— Não tens obrigação de carregar nada, Júlia. Mas não estás sozinha. Estamos aqui.
— Eu só queria entender por que tudo que toco parece vir com um peso.
— Porque talvez tenhas nascido num campo de batalha. Mas isso não te impede de escolher ser construtora de paz.
Ela chorou. E eu a abracei.
Na noite anterior à viagem de Lara para Buenos Aires, sentamos as três à mesa: eu, ela e Júlia. Jonas preparou chá, como sempre fazia em momentos importantes.
— E se perguntarem sobre ti? — perguntou Lara.
— Diz a verdade. Mas tua verdade. Não sou um título. Nem um escândalo. Sou tua mãe. Isso basta.
Ela sorriu.
— Então está decidido.
— Vais?
— Vou. Pela escritora que estou me tornando. E pela mulher que me criou com coragem.
No aeroporto, enquanto nos despedíamos, Lara me entregou um envelope.
— Abre só depois que eu decolar.
Assenti. Beijei sua testa.
— Vai, minha filha. E escreve o que o mundo ainda não sabe dizer.
Ela embarcou. O avião partiu.
Abri o envelope.
Era uma carta. Escrito à mão:
*“Mãe,
Se eu aprender a transformar dor em palavras, é porque tu me ensinaste.
Se algum dia eu cair, espero lembrar do que tu fazes: levantar, mesmo com os joelhos em sangue.
Não és perfeita. Mas és verdade. E isso, pra mim, sempre será o suficiente.
— Lara.”*
Chorei.
Chorei como mãe.
E como mulher que sabe que sua história, enfim, está nas mãos certas.