Vera me ligou às seis e dez da manhã. A voz dela, normalmente firme, tremia.
— Alguém entrou no meu apartamento. Não levaram nada. Mas espalharam todos os papéis da investigação pela sala. E deixaram um bilhete.
— O que dizia?
Ela hesitou.
— “Volta a escrever sobre política cultural. E esquece Isabel Guarda.”
Engoli seco. O frio que percorreu minha espinha não era do inverno parisiense.
— Estás bem?
— Estou. Mas isso não é um aviso. É uma promessa. E a próxima pode não ser tão limpa.
A primeira coisa que fiz foi chamar Jonas e Júlia para uma conversa.
— A partir de agora, tudo muda. Vamos andar em pares, evitar rotinas previsíveis e manter canais de emergência ativos.
— Achas que vão te atingir? — perguntou Jonas, sério.
— Não sei. Mas vão tentar.
Júlia cruzou os braços.
— E se eu quiser sair disso?
— Tu sais. A porta está aberta. Eu nunca te prenderia a uma história que não escolheste.
Ela ficou em silêncio.
Vera se mudou temporariamente para um apartamento alugado por mim, num bairro discreto. Passamos os dias cruzando dados, entregando provas ao Ministério Público Europeu, e orientando jornalistas independentes sobre como lidar com a denúncia.
— Estamos mexendo com mais do que dinheiro — disse ela. — Estamos atingindo alianças políticas, acordos secretos entre ONGs e partidos. Gente com poder. E com sede de vingança.
— Eu sei. Mas já não dá para voltar.
Jonas recebeu uma ligação numa noite chuvosa. Atendeu no viva-voz, distraído.
A voz do outro lado era grave. Máscara de calma.
— Sr. Oliveira. Soube que entregou documentos da ONG Raízes. Acha que ninguém o viu? Que está seguro?
— Quem está a falar?
— Alguém que ainda pode te proteger. Ou… te enterrar.
Desligaram.
Ficamos em silêncio por um instante.
— Queres sair disso, Jonas?
— Se eu sair agora… deixo de ser o homem que prometi me tornar.
Júlia, por sua vez, mergulhava em silêncio. Passava horas na biblioteca, escrevendo, lendo documentos antigos que Clara havia enviado de Lisboa.
Foi numa noite qualquer que ela entrou no meu escritório com os olhos arregalados.
— Preciso falar contigo. Agora.
Fechei o computador.
— O que foi?
Ela estendeu um envelope.
— Encontrei entre os papéis da minha mãe. Nunca tinha aberto. É uma carta que ela escreveu… mas nunca enviou.
Li as primeiras linhas e perdi o fôlego.
*“Isabel,
Se estás a ler isso, é porque a verdade finalmente te alcançou. Eu nunca contei tudo. Jonas não é apenas o homem que me amou. Ele foi pai… mas também irmão. Por escolha. Porque quando ninguém ficou, ele ficou. Mesmo ferido. Mesmo errado.”*
Parei. O coração batia acelerado.
— Ela dizia que o Jonas… salvou vocês?
— Sim. Que ele acobertou o desaparecimento de uma mulher da ONG. Que ajudou a esconder uma delas por meses. Que assumiu a culpa sozinho para proteger outras.
— E tu achas que ela falava a verdade?
— Acho que agora precisamos perguntar.
Naquela noite, sentei com Jonas.
— Quero te mostrar uma carta. De Letícia. Fala sobre ti. E sobre o que fizeste na ONG.
Ele leu em silêncio. Depois levantou, andou até a janela, ficou ali parado.
— Não era pra essa história reaparecer — murmurou.
— Então é verdade?
— Sim. Uma das mulheres que ajudávamos estava sendo caçada pelo marido, um político conhecido. Ela ia ser deportada. Letícia e eu a escondemos. A diretoria descobriu. Eu assumi tudo para protegê-la. Era jovem demais para entender o preço.
— E Letícia?
— Nunca me perdoou por ter escondido de ti. E eu… nunca me perdoei por tê-la envolvido.
— Por que não contaste antes?
— Porque até hoje… parte de mim tem medo de te perder.
Me aproximei. Coloquei minha mão sobre a dele.
— Não perco quem me dá a verdade. Só quem me esconde a mentira.
Dois dias depois, recebemos nova notificação judicial: Isabel Guarda será formalmente ouvida pelo tribunal internacional como testemunha-chave do caso de corrupção humanitária.
A imprensa começou a cercar o prédio. Câmeras. Fotógrafos. Manchetes.
“Ex-consultora da UNESCO será ouvida em caso explosivo”
“Isabel Guarda, heroína ou oportunista?”
“Jornalista invadida denuncia pressão política e ameaça à liberdade de imprensa”
Vera e eu estávamos prontas.
Jonas não dormia.
Júlia começou a escrever um artigo sobre a mãe, com o título:
“A mulher que não quis ser mártir. E foi esquecida como cúmplice.”
E Lara… Lara mandou uma mensagem de Buenos Aires:
“Se fores à corte, não vais sozinha. O mundo precisa ouvir tua voz. E eu… estarei na primeira fila. Mesmo longe.”
Na véspera do depoimento, sentei no chão da sala. Jonas à esquerda. Júlia à direita. Vera em pé, organizando documentos.
— Acreditam em mim?
— Mais do que nunca — disseram.
E naquele instante, entendi:
A verdade pode nos destruir. Mas mentir… nos apaga.
E eu, enfim, estava viva demais para desaparecer.