Nunca fui chamada de ré. Mas ser testemunha sob ameaça já me ensinou que, no tribunal da opinião pública, a inocência precisa de provas — e a culpa, só de um boato.
No dia do depoimento, vesti um casaco azul-escuro e prendia o cabelo como minha mãe fazia nos tempos de professora. Era minha maneira de levá-la comigo.
Lara mandou mensagem cedo:
“Estás linda, mesmo sem ver. Estamos contigo. A Argentina inteira vai te ouvir hoje à noite — fui convidada para ler um trecho do meu texto numa entrevista ao vivo. Eles vão falar de ti. Eu vou responder.”
Segurei o celular com força. Respirei. E entrei no edifício do Tribunal Internacional com passos firmes. Pela primeira vez, não me sentia apenas acusada — me sentia responsável. Por mim. Por outras.
A sala estava cheia. Juízes, tradutores, jornalistas, representantes de ONGs e defensores públicos. No centro: eu, Vera, e o caso aberto contra a diretoria de contratos humanitários da UNESCO, aliados a políticos europeus e entidades “filantrópicas” fantasmas.
— Sra. Isabel Guarda — disse o juiz, num francês limpo — confirma que autorizou os contratos investigados entre 2022 e 2024?
— Não, senhor. Tive meu nome falsificado em pelo menos três documentos. Apresentei perícias. E testemunhos de colegas que confirmam minha ausência nos processos.
— A senhora afirma que a fraude aconteceu dentro da própria organização?
— Afirmo que a corrupção encontrou abrigo justamente onde se devia proteger vidas.
As perguntas se tornaram afiadas. Algumas soavam como armadilhas.
— Por que só agora se manifestou?
— Porque só agora recebi provas. E porque demorei para entender que o silêncio me tornava cúmplice.
— E não teme que sua exposição comprometa futuras ações humanitárias?
— Eu temo que a mentira destrua a confiança que o mundo ainda tem na ajuda internacional. E é por isso que estou aqui.
Vera sorriu discretamente ao meu lado. Era nossa vitória. Mas por pouco tempo.
No intervalo da audiência, uma funcionária do tribunal se aproximou.
— Um jornalista deixou isto para a senhora.
Era um envelope.
Dentro, três fotos: Jonas em um café com um homem desconhecido — Rodrigo Serpa, o ex-supervisor da ONG Raízes.
E uma carta anônima:
“Cuidado com quem caminha contigo. Nem todos os silêncios são lealdade.”
À noite, de volta ao apartamento, Jonas me esperava sentado no sofá, lendo.
— Recebi isso hoje — disse, mostrando as fotos.
Ele olhou. Não se abalou.
— Rodrigo me procurou de novo. Disse que há mais documentos escondidos. Mas exigiu que eu não contasse ainda. Queria te poupar antes do depoimento.
— E achaste que me esconder protegeria alguém?
— Achei que protegeria a nós.
Suspirei.
— Estamos no meio da guerra, Jonas. Quem se esconde... morre pela retaguarda.
Enquanto isso, na Argentina, Lara se preparava para sua entrevista ao vivo. A emissora local queria transformá-la em “a jovem filha da mulher mais corajosa da Europa”.
Mas quando a apresentadora leu um trecho do dossiê vazado com o nome de Jonas envolvido em desvios, a entrevista mudou de tom.
— Sua mãe vive com este homem. E ele parece ter mais segredos do que respostas. Isso não a incomoda?
Lara respirou fundo. Segurou o microfone.
— O amor da minha mãe nunca esteve isento de falhas. Mas foi feito de escolhas conscientes. E Jonas… é parte da história dela. Uma história que não precisa ser limpa para ser verdadeira.
A sala aplaudiu. Mas a internet… foi cruel.
No dia seguinte, as manchetes eram outra vez violentas:
“Testemunha Isabel Guarda esconde relacionamento com homem ligado a escândalo Raízes”
“Filha de Isabel defende namorado da mãe e vira alvo de críticas”
Meu telefone tocou. Era Clara.
— Não leias comentários. Fica firme. Eles vão tentar te desmontar pelos lados que não sabem como enfrentar de frente.
— Já estão a conseguir. Mas eu não vou parar.
No segundo dia de julgamento, o advogado de defesa dos acusados pediu para que a Corte retirasse minha fala do processo.
— A testemunha está emocionalmente envolvida com pessoas ligadas aos documentos investigados — disse. — E sua filha está a ser usada em campanhas de opinião internacional.
O juiz olhou para mim.
— Sra. Guarda, tem algo a declarar?
Me levantei.
— Tenho. Meu envolvimento afetivo não me tira a lucidez. E minha filha escreve para sobreviver. O que fazemos é resistência. E o que eles fazem... é desespero.
A sala se calou.
E então, o juiz respondeu:
— A Corte não vê razão para desacreditar sua fala. O depoimento permanece.
Ao sair do tribunal, uma mulher se aproximou com um casaco vinho e um broche antigo.
— Isabel?
— Sim?
— Sou Eva. A mulher que tua mãe ajudou a esconder. Letícia e Jonas me salvaram. E tu… estás a me salvar agora.
Ela me entregou uma carta e foi embora.
Dentro, um bilhete da minha mãe, em letra tremida:
“Se Isabel um dia me perdoar, que também perdoe quem tentou me amar e não soube. E que entenda: a coragem nunca vem inteira. Mas vem. Sempre vem.”
Naquela noite, entendi.
Eu não estava sendo julgada.
Eu estava sendo testada.
E, pela primeira vez, não queria vencer.
Queria apenas continuar — viva, imperfeita, mas com verdade nos olhos.