Cinco anos passaram. E, ao contrário do que muitos previram, eu não desapareci.
Também não me tornei o que esperavam: ministra, embaixadora, mártir ou símbolo eterno de resistência. Não aceitei cargos em Genebra, nem entrevistas para livros sobre “lideranças femininas em tempos de crise”.
Não quis pedestal.
Quis paz.
Hoje, moro numa casa modesta nas encostas verdes próximas ao lago Léman. Jonas cuida do jardim com a mesma dedicação com que, um dia, cuidou de mim. Júlia mora perto, numa república com outros jornalistas e artistas. E Lara... Lara voa pelo mundo, mas sempre volta.
E eu?
Eu escrevo.
Mas só para mim.
Todas as manhãs, sento na varanda com uma caneca de chá e o caderno de capa azul que me acompanha desde os dias escuros do julgamento.
Nele, não há relatos sobre escândalos.
Apenas pensamentos soltos. E lembranças que não me deixam.
Hoje, por exemplo, escrevi:
“A coragem nunca foi minha maior qualidade. Foi a minha última saída.”
E talvez tenha sido mesmo isso que me salvou:
não ter escolha.
Às vezes, recebo cartas de mulheres que nunca vi.
Assinadas com nomes reais, ou apenas iniciais.
Cartas que começam com:
“Isabel, ouvi tua história e…”
“Sou filha de uma mulher como tua mãe…”
“Preciso te contar algo que nunca disse a ninguém…”
E eu leio cada linha como quem lê orações.
Porque agora eu entendo que não fui só protagonista da minha história.
Fui espelho da história de muitas.
Júlia vem me visitar todo domingo.
Traz flores ou perguntas difíceis.
— Se pudesse voltar, mudarias algo?
— Não teria ficado tanto tempo em silêncio.
— E se o silêncio fosse a única proteção que tinhas?
— Teria gritado mesmo assim.
Ela anota. Sorri. Está escrevendo um segundo livro, mas desta vez quer explorar o tema do perdão. A mim. À mãe dela. A si mesma.
— Perdão é uma casa com janelas abertas — digo a ela. — Mas portas que exigem coragem para entrar.
Lara me liga de um aeroporto novo a cada mês.
— Mãe, acabei de sair de uma leitura pública em Bogotá. O jornalista me perguntou como é ser “filha de Isabel Guarda”. Sabes o que respondi?
— Diz-me.
— Que não sou filha de uma mulher famosa. Sou filha de uma mulher inteira. E isso basta.
Fico em silêncio.
— Ainda estás aí?
— Sempre.
Ela ri.
E eu, por dentro, respiro fundo, como se cada uma das palavras dela costurasse o que ainda me resta de ferida.
Jonas não fala muito. Mas tem gestos que dizem tudo.
Quando sinto que o mundo volta a me pesar, ele prepara chá de camomila e senta comigo no escuro. Em silêncio. Só presença. Só calor.
— Pensas em voltar a trabalhar? — ele perguntou outro dia.
— Trabalho todo dia — respondi.
— Como?
— Mantendo-me inteira. Não aprendeste isso comigo?
Ele riu.
E eu soube que ele entendeu.
Uma vez sonhei com minha mãe.
Estávamos sentadas na mesma varanda em que estou agora.
Ela me dizia:
— Criaste o que eu não tive tempo de criar. E foste mais longe do que ousei sonhar.
Acordei em lágrimas. Mas leve.
Foi nesse dia que entendi que o que deixamos no mundo… são sementes.
E as minhas, finalmente, floresceram.
Hoje escrevi uma carta.
A última que guardarei neste caderno.
“Querida Isabel,
Sobreviveste.
Não à guerra, mas a ti mesma.
Aprendeste que amar pode ser errado, mas calar é sempre pior.
Fizeste de tua dor uma ponte.
E agora, podes descansar.
Porque teu nome… já não é só teu.
Ele virou eco.
E esse eco… é liberdade.”
Fechei o caderno.
Jonas me chamou para ver as flores novas no quintal.
Sorri.
Levantei-me devagar.
E fui.
Ainda aqui.
Ainda viva.
Ainda eu.