Capítulo 52 A máscara que não me protege

Eu pensava que os capítulos mais intensos da minha vida tinham ficado para trás. Mas, como nas novelas que minha mãe assistia em segredo — com lenço na mão e o coração batendo forte — a calmaria nunca era o fim. Era apenas o intervalo.

Tudo começou com uma carta. Outra. Mas essa não era denúncia, nem ameaça. Era convite.

“Senhora Isabel Guarda,

Em nome do Instituto Internacional de Mulheres Invisíveis, convidamos você para integrar a nova cúpula global de recuperação de identidade e imagem feminina em zonas de conflito. A cerimônia será em Seul.”

Seul.

O nome carregava um peso estranho. Como se anunciasse um reencontro com algo que eu ainda não sabia que estava perdido.

— Vais aceitar? — perguntou Jonas, lendo por cima do meu ombro.

— Claro que vou. Mas sinto que não estou indo apenas como palestrante.

Chegamos à Coreia do Sul no fim de abril. A cidade nos recebeu com brilho, tradição e telas de LED em cada esquina. Mas o que mais me surpreendeu não foi a modernidade, e sim o rosto de uma jovem mulher na capa de quase todos os jornais coreanos:

“Shin Hae-ri: a garota que reconstruiu a própria identidade.”

Pedi a tradução. Era uma jovem escritora, ex-modelo rejeitada por sua aparência natural, que agora denunciava padrões de beleza cruéis e liderava um grupo chamado Verdade sem Filtro. Sua história lembrava a de Lara — mas com algo ainda mais ferido.

No evento, eu e Shin Hae-ri fomos colocadas lado a lado na abertura. Ela me olhou com respeito. Depois, disse em inglês perfeito:

— Cresci lendo sobre ti. Mas agora vejo que tu és mais… real. E também mais ferida.

Sorri.

— Tu também és real. E só os feridos têm algo a dizer.

Ela me entregou um cartão e sussurrou:

— Depois da cerimônia, quero te mostrar algo. Não confio em todos aqui.

À noite, no jardim suspenso do hotel, ela me contou tudo.

— Algumas organizações aqui estão usando a “imagem do sofrimento” de mulheres pobres para campanhas falsas. Contratam atrizes para fingir ser vítimas de guerra. E agora querem que tu sejas o rosto novo deles.

— Como assim?

— Uma mulher chamada Eun Mi-Na, CEO da agência GoldSeed, está envolvida. Ela falsificou documentos para conseguir doações e comprou influenciadores para divulgar “testemunhos”.

Puxei o celular. Pesquisei. Ali estava ela: Mi-Na, linda, impecável, com aparência de heroína.

Mas era só uma máscara.

— E por que me contaste isso?

— Porque tu também foste usada. E agora querem fazer contigo o que fizeram comigo: transformar tua dor em espetáculo.

No dia seguinte, conhecemos Jaemin Park, o tradutor designado pelo evento. Jovem, tímido, de óculos redondos e sorriso delicado. Mas havia algo escondido sob sua aparência comum. Lara, que viera conosco, o notou primeiro.

— Ele sabe mais do que parece — disse ela, num café em Hongdae.

— Como sabes?

— Porque ele me evita com os olhos. E ninguém desvia o olhar sem culpa.

Lara estava certa.

Jaemin era o filho secreto de Mi-Na. Estava infiltrado no evento como parte de um plano para manter a imagem da mãe intacta — mas agora lutava com o peso da verdade.

— Estou cansado de fingir — disse ele, numa noite. — Mas se revelar tudo… minha mãe será destruída. E eu… também.

— Às vezes — respondi — precisamos nos quebrar para deixar a verdade passar.

Enquanto isso, Júlia conheceu um grupo de mulheres camponesas coreanas que perderam tudo em incêndios florestais negligenciados por corporações. Uma delas, chamada Sun-Ji, tinha o rosto marcado por cicatrizes e falava como quem nunca mais teve medo.

— Eles tentaram queimar nossa terra — disse ela. — Mas a raiz sobreviveu.

Júlia a entrevistou. E, pela primeira vez, escreveu um artigo com lágrimas no papel.

A tensão aumentou quando descobrimos que Mi-Na planejava usar imagens antigas da minha mãe, Teresa, em um documentário falso — transformando-a em “heroína asiática” para ganhar fundos no Japão.

Fui até ela.

— Apaga o nome da minha mãe da tua boca. Ou juro que vou até o fim.

Ela riu.

— Achas que alguém se importa com quem é real? O mundo só quer uma boa história.

— Pois então vais ouvir a minha. E não como tu queres.

No encerramento do evento, subi ao palco. A luz estava forte. Os rostos eram muitos. E lá estava Mi-Na, elegante, disfarçada de filantropa.

Respirei fundo.

— Estou aqui porque não quero mais ser o rosto do sofrimento. Quero ser a voz da sobrevivência.

E quero dizer, diante de todos:

não sou produto.

Não sou símbolo.

Sou mulher.

Sou mãe.

Sou filha de Teresa.

E não serei vendida.

A sala silenciou.

E então, aplaudiu.

Mi-Na caiu dias depois, após denúncias públicas de Jaemin e o artigo de Júlia.

Shin Hae-ri criou um instituto com Lara para jovens que sofreram bullying por sua aparência.

Sun-Ji veio a público com sua história. Virou símbolo de resistência rural.

E eu?

Voltei para casa.

Com mais cicatrizes.

Mais verdades.

E novos nomes guardados no coração.

Porque agora sei:

não existe beleza mais revolucionária

do que ser inteira

sem precisar pedir desculpas.