Eu pensava que os capítulos mais intensos da minha vida tinham ficado para trás. Mas, como nas novelas que minha mãe assistia em segredo — com lenço na mão e o coração batendo forte — a calmaria nunca era o fim. Era apenas o intervalo.
Tudo começou com uma carta. Outra. Mas essa não era denúncia, nem ameaça. Era convite.
“Senhora Isabel Guarda,
Em nome do Instituto Internacional de Mulheres Invisíveis, convidamos você para integrar a nova cúpula global de recuperação de identidade e imagem feminina em zonas de conflito. A cerimônia será em Seul.”
Seul.
O nome carregava um peso estranho. Como se anunciasse um reencontro com algo que eu ainda não sabia que estava perdido.
— Vais aceitar? — perguntou Jonas, lendo por cima do meu ombro.
— Claro que vou. Mas sinto que não estou indo apenas como palestrante.
Chegamos à Coreia do Sul no fim de abril. A cidade nos recebeu com brilho, tradição e telas de LED em cada esquina. Mas o que mais me surpreendeu não foi a modernidade, e sim o rosto de uma jovem mulher na capa de quase todos os jornais coreanos:
“Shin Hae-ri: a garota que reconstruiu a própria identidade.”
Pedi a tradução. Era uma jovem escritora, ex-modelo rejeitada por sua aparência natural, que agora denunciava padrões de beleza cruéis e liderava um grupo chamado Verdade sem Filtro. Sua história lembrava a de Lara — mas com algo ainda mais ferido.
No evento, eu e Shin Hae-ri fomos colocadas lado a lado na abertura. Ela me olhou com respeito. Depois, disse em inglês perfeito:
— Cresci lendo sobre ti. Mas agora vejo que tu és mais… real. E também mais ferida.
Sorri.
— Tu também és real. E só os feridos têm algo a dizer.
Ela me entregou um cartão e sussurrou:
— Depois da cerimônia, quero te mostrar algo. Não confio em todos aqui.
À noite, no jardim suspenso do hotel, ela me contou tudo.
— Algumas organizações aqui estão usando a “imagem do sofrimento” de mulheres pobres para campanhas falsas. Contratam atrizes para fingir ser vítimas de guerra. E agora querem que tu sejas o rosto novo deles.
— Como assim?
— Uma mulher chamada Eun Mi-Na, CEO da agência GoldSeed, está envolvida. Ela falsificou documentos para conseguir doações e comprou influenciadores para divulgar “testemunhos”.
Puxei o celular. Pesquisei. Ali estava ela: Mi-Na, linda, impecável, com aparência de heroína.
Mas era só uma máscara.
— E por que me contaste isso?
— Porque tu também foste usada. E agora querem fazer contigo o que fizeram comigo: transformar tua dor em espetáculo.
No dia seguinte, conhecemos Jaemin Park, o tradutor designado pelo evento. Jovem, tímido, de óculos redondos e sorriso delicado. Mas havia algo escondido sob sua aparência comum. Lara, que viera conosco, o notou primeiro.
— Ele sabe mais do que parece — disse ela, num café em Hongdae.
— Como sabes?
— Porque ele me evita com os olhos. E ninguém desvia o olhar sem culpa.
Lara estava certa.
Jaemin era o filho secreto de Mi-Na. Estava infiltrado no evento como parte de um plano para manter a imagem da mãe intacta — mas agora lutava com o peso da verdade.
— Estou cansado de fingir — disse ele, numa noite. — Mas se revelar tudo… minha mãe será destruída. E eu… também.
— Às vezes — respondi — precisamos nos quebrar para deixar a verdade passar.
Enquanto isso, Júlia conheceu um grupo de mulheres camponesas coreanas que perderam tudo em incêndios florestais negligenciados por corporações. Uma delas, chamada Sun-Ji, tinha o rosto marcado por cicatrizes e falava como quem nunca mais teve medo.
— Eles tentaram queimar nossa terra — disse ela. — Mas a raiz sobreviveu.
Júlia a entrevistou. E, pela primeira vez, escreveu um artigo com lágrimas no papel.
A tensão aumentou quando descobrimos que Mi-Na planejava usar imagens antigas da minha mãe, Teresa, em um documentário falso — transformando-a em “heroína asiática” para ganhar fundos no Japão.
Fui até ela.
— Apaga o nome da minha mãe da tua boca. Ou juro que vou até o fim.
Ela riu.
— Achas que alguém se importa com quem é real? O mundo só quer uma boa história.
— Pois então vais ouvir a minha. E não como tu queres.
No encerramento do evento, subi ao palco. A luz estava forte. Os rostos eram muitos. E lá estava Mi-Na, elegante, disfarçada de filantropa.
Respirei fundo.
— Estou aqui porque não quero mais ser o rosto do sofrimento. Quero ser a voz da sobrevivência.
E quero dizer, diante de todos:
não sou produto.
Não sou símbolo.
Sou mulher.
Sou mãe.
Sou filha de Teresa.
E não serei vendida.
A sala silenciou.
E então, aplaudiu.
Mi-Na caiu dias depois, após denúncias públicas de Jaemin e o artigo de Júlia.
Shin Hae-ri criou um instituto com Lara para jovens que sofreram bullying por sua aparência.
Sun-Ji veio a público com sua história. Virou símbolo de resistência rural.
E eu?
Voltei para casa.
Com mais cicatrizes.
Mais verdades.
E novos nomes guardados no coração.
Porque agora sei:
não existe beleza mais revolucionária
do que ser inteira
sem precisar pedir desculpas.