Vivian não respondeu à carta.
Mas respondeu ao mundo.
Dois dias depois, um vídeo foi publicado nas redes sociais. Ela falava com clareza, olhar direto para a câmera, voz firme como a de alguém que ensaiou aquela dor a vida inteira.
“Esta é minha história. A mulher que me pariu me apagou. Ela seguiu, sorriu, venceu... enquanto eu crescia nas mãos de uma mulher que me chamava de erro. Ela é celebrada por sua coragem. Mas a minha dor… ninguém quis ver.”
O vídeo ultrapassou dois milhões de visualizações em uma semana. Manchetes surgiram como maremoto.
“Ativista premiada é acusada de rejeitar filha gêmea escondida.”
“Vivian: a outra filha de Isabel Guarda rompe o silêncio.”
E eu… fui silenciada sem falar uma palavra.
Lara assistiu ao vídeo no meu escritório. Não disse nada por longos minutos. Depois, levantou, fechou o computador e me olhou com olhos marejados.
— Sinto como se tivessem roubado um pedaço de mim.
— Eu sei.
— Não é só sobre ti, mãe. É sobre mim também. A mulher que me olha no espelho… tem o mesmo rosto. Mas não é eu. E talvez me odeie sem nem saber quem sou.
Sentei-me ao lado dela.
— Filha… nada disso é tua culpa.
— Mas também não é culpa dela. Tu entendeste?
— Estou tentando.
Ela me abraçou.
Mas havia algo entre nós. Uma sombra com o meu rosto… e o dela.
Jonas sugeriu silêncio.
Júlia sugeriu resposta pública.
Vera sugeriu provas.
E eu… queria apenas entender como ser mãe de duas filhas que agora existiam como opostas.
Dias depois, Vivian lançou seu livro.
“A Gêmea Oculta”, com capa preta e meu nome no subtítulo.
Havia distorções, omissões, verdades atravessadas por dor.
E, em um trecho, ela escreveu:
“Minha irmã foi criada com afeto. Eu, com castigo. Ela teve voz. Eu, eco. Ela teve mãe. Eu, silêncio.”
Lara leu antes de mim.
— Queres que eu responda como escritora?
— Quero que tu respondas como irmã.
Ela me olhou, séria.
— Então vou atrás dela.
— Sozinha?
— Se não formos nós a tentar esse reencontro… ninguém mais o fará.
Elas se encontraram num café discreto em Lisboa.
Vivian chegou cercada por seguranças e uma assessora.
— Não trouxe câmeras — disse Lara. — Só perguntas.
Vivian observou cada detalhe do rosto da irmã. A semelhança era gritante. Mas o silêncio era abismal.
— Por que estás aqui?
— Porque nenhuma de nós pediu por isso. Mas nenhuma pode fugir disso também.
Vivian riu.
— Veio defender nossa mãe?
— Vim defender o que ainda pode ser salvo. Talvez um começo. Talvez uma tentativa.
Vivian respirou fundo.
— Odeio tudo que ela representa.
— E o que eu represento?
Vivian hesitou.
— Tu és... o que eu teria sido.
— E mesmo assim vieste com escudo?
— Porque soube me defender sozinha.
Lara estendeu a mão.
Vivian não a tocou. Mas não a afastou.
— Não quero que me aceites — disse Lara. — Só que me vejas. Como alguém que também tem perguntas.
Vivian assentiu.
E antes de ir embora, sussurrou:
— Eu não sei te amar ainda. Mas sei que não te odeio.
Quando Lara me contou, chorei.
Não de alívio.
De medo.
Porque agora… havia uma chance.
E toda chance pode doer.
Algumas semanas depois, Vivian mandou um envelope. Dentro, um bilhete:
“Ainda não te perdoo. Mas quero ouvir tua versão. Sozinha. Sem imprensa. Só nós duas.”
Marcamos num jardim botânico em Coimbra. Lugar onde, segundo arquivos antigos, Teresa — minha mãe — levava Lara bebê nos fins de semana. Eu sabia que aquilo era simbólico.
Quando Vivian chegou, parecia menos armada.
— Gosto de flores — disse ela. — Elas não mentem sobre quando estão morrendo.
— E tu?
— Aprendi a parecer viva mesmo morta por dentro.
Sentei-me ao lado.
— Quando nasces, achas que o mundo te deve. Depois percebes que o mundo nem sabia que tu estavas a caminho.
Ela me olhou.
— Porque tu também não sabias?
— Eu soube que tu exististe… no mesmo dia em que soube que te perdi.
— E mesmo assim... não me procuraste.
— Porque me disseram que estavas morta.
Vivian mordeu os lábios.
— Foste enganada?
— Fui destruída. E reconstruída. Mas sempre com um pedaço a menos. Agora sei que esse pedaço eras tu.
Ela chorou. Pela primeira vez diante de mim.
— Eu sonhava com esse momento. Mas no meu sonho… eu te rejeitava. E agora... só queria abraçar.
Abri os braços.
Ela hesitou.
Mas veio.
Nos abraçamos.
E o mundo parou.
Pelo tempo exato que durou aquele reencontro entre o que foi, o que não foi…
e o que ainda pode ser.