Capítulo 54 : Espelho que ainda me rejeita

Vivian não respondeu à carta.

Mas respondeu ao mundo.

Dois dias depois, um vídeo foi publicado nas redes sociais. Ela falava com clareza, olhar direto para a câmera, voz firme como a de alguém que ensaiou aquela dor a vida inteira.

“Esta é minha história. A mulher que me pariu me apagou. Ela seguiu, sorriu, venceu... enquanto eu crescia nas mãos de uma mulher que me chamava de erro. Ela é celebrada por sua coragem. Mas a minha dor… ninguém quis ver.”

O vídeo ultrapassou dois milhões de visualizações em uma semana. Manchetes surgiram como maremoto.

“Ativista premiada é acusada de rejeitar filha gêmea escondida.”

“Vivian: a outra filha de Isabel Guarda rompe o silêncio.”

E eu… fui silenciada sem falar uma palavra.

Lara assistiu ao vídeo no meu escritório. Não disse nada por longos minutos. Depois, levantou, fechou o computador e me olhou com olhos marejados.

— Sinto como se tivessem roubado um pedaço de mim.

— Eu sei.

— Não é só sobre ti, mãe. É sobre mim também. A mulher que me olha no espelho… tem o mesmo rosto. Mas não é eu. E talvez me odeie sem nem saber quem sou.

Sentei-me ao lado dela.

— Filha… nada disso é tua culpa.

— Mas também não é culpa dela. Tu entendeste?

— Estou tentando.

Ela me abraçou.

Mas havia algo entre nós. Uma sombra com o meu rosto… e o dela.

Jonas sugeriu silêncio.

Júlia sugeriu resposta pública.

Vera sugeriu provas.

E eu… queria apenas entender como ser mãe de duas filhas que agora existiam como opostas.

Dias depois, Vivian lançou seu livro.

“A Gêmea Oculta”, com capa preta e meu nome no subtítulo.

Havia distorções, omissões, verdades atravessadas por dor.

E, em um trecho, ela escreveu:

“Minha irmã foi criada com afeto. Eu, com castigo. Ela teve voz. Eu, eco. Ela teve mãe. Eu, silêncio.”

Lara leu antes de mim.

— Queres que eu responda como escritora?

— Quero que tu respondas como irmã.

Ela me olhou, séria.

— Então vou atrás dela.

— Sozinha?

— Se não formos nós a tentar esse reencontro… ninguém mais o fará.

Elas se encontraram num café discreto em Lisboa.

Vivian chegou cercada por seguranças e uma assessora.

— Não trouxe câmeras — disse Lara. — Só perguntas.

Vivian observou cada detalhe do rosto da irmã. A semelhança era gritante. Mas o silêncio era abismal.

— Por que estás aqui?

— Porque nenhuma de nós pediu por isso. Mas nenhuma pode fugir disso também.

Vivian riu.

— Veio defender nossa mãe?

— Vim defender o que ainda pode ser salvo. Talvez um começo. Talvez uma tentativa.

Vivian respirou fundo.

— Odeio tudo que ela representa.

— E o que eu represento?

Vivian hesitou.

— Tu és... o que eu teria sido.

— E mesmo assim vieste com escudo?

— Porque soube me defender sozinha.

Lara estendeu a mão.

Vivian não a tocou. Mas não a afastou.

— Não quero que me aceites — disse Lara. — Só que me vejas. Como alguém que também tem perguntas.

Vivian assentiu.

E antes de ir embora, sussurrou:

— Eu não sei te amar ainda. Mas sei que não te odeio.

Quando Lara me contou, chorei.

Não de alívio.

De medo.

Porque agora… havia uma chance.

E toda chance pode doer.

Algumas semanas depois, Vivian mandou um envelope. Dentro, um bilhete:

“Ainda não te perdoo. Mas quero ouvir tua versão. Sozinha. Sem imprensa. Só nós duas.”

Marcamos num jardim botânico em Coimbra. Lugar onde, segundo arquivos antigos, Teresa — minha mãe — levava Lara bebê nos fins de semana. Eu sabia que aquilo era simbólico.

Quando Vivian chegou, parecia menos armada.

— Gosto de flores — disse ela. — Elas não mentem sobre quando estão morrendo.

— E tu?

— Aprendi a parecer viva mesmo morta por dentro.

Sentei-me ao lado.

— Quando nasces, achas que o mundo te deve. Depois percebes que o mundo nem sabia que tu estavas a caminho.

Ela me olhou.

— Porque tu também não sabias?

— Eu soube que tu exististe… no mesmo dia em que soube que te perdi.

— E mesmo assim... não me procuraste.

— Porque me disseram que estavas morta.

Vivian mordeu os lábios.

— Foste enganada?

— Fui destruída. E reconstruída. Mas sempre com um pedaço a menos. Agora sei que esse pedaço eras tu.

Ela chorou. Pela primeira vez diante de mim.

— Eu sonhava com esse momento. Mas no meu sonho… eu te rejeitava. E agora... só queria abraçar.

Abri os braços.

Ela hesitou.

Mas veio.

Nos abraçamos.

E o mundo parou.

Pelo tempo exato que durou aquele reencontro entre o que foi, o que não foi…

e o que ainda pode ser.