Capítulo 55 A Herança que fere

É fácil abraçar alguém no instante do reencontro. Difícil é sustentar esse abraço quando as palavras acabam.

Vivian aceitou, pela primeira vez, visitar minha casa em Genebra. Não trouxe malas, só perguntas. Nem disfarçou a desconfiança.

Lara, por outro lado, observava tudo em silêncio — um silêncio que só uma filha conhece quando sente o chão onde sempre pisou começar a se abrir.

Na primeira noite, jantamos os quatro: eu, Jonas, Lara e Vivian.

A comida ficou fria. As falas também.

— Ainda tens medo de mim? — perguntou Vivian, encarando a irmã.

— Tenho medo do que não conheço — respondeu Lara. — E tu ainda és uma história que eu não li.

— Então começa. Mas prepara-te: não é leve.

— A minha também não foi.

O que veio depois foi uma troca de feridas em voz baixa. Uma exposição crua de mágoas, como se cada uma quisesse provar que sofreu mais.

Jonas interveio.

— Vocês não precisam competir por dor. A dor não precisa de palco. Só de escuta.

Vivian recuou.

Lara saiu da mesa.

E eu… entendi que estava perdendo o controle.

No dia seguinte, Jonas me chamou na varanda.

— A Lara está se afastando.

— Eu sei. Mas não sei como puxá-la de volta sem apagar a Vivian.

— Talvez o problema seja que tu estás tentando ser justa. E a justiça, às vezes, machuca.

— Mas ser mãe é isso, não?

— Ser mãe, Isabel… é ter que dividir o coração em pedaços desiguais, sabendo que nunca vão caber todos no mesmo peito.

Vivian passou a investigar sozinha sua origem. Queria conhecer tudo: a clínica onde nasceu, os documentos falsificados, as pessoas que sabiam e calaram.

Foi nesse processo que encontrou algo que nem eu esperava.

Uma carta antiga.

Escondida num envelope rasgado, arquivado sob outro nome.

Assinada por Teresa.

Endereçada a Aurora Martins, a mulher que criou Vivian como filha.

“Aurora, se estás mesmo decidida a levar uma delas, leva a que nasceu com a marca no ombro. Sei que tua proposta é absurda, mas não tenho como lutar mais. Preciso proteger a outra. A que tem os olhos do pai dela. Por favor, não faças ela sofrer mais do que já sofreu na barriga.”

O mundo parou.

Vivian me entregou a carta sem dizer nada.

Mas os olhos diziam tudo: Tu sabias?

— Não. Eu juro que não. Eu nunca li isso.

Ela se levantou.

— A tua mãe escolheu. E foste cúmplice, mesmo sem saber.

— Eu também fui enganada, Vivian.

— Então somos iguais?

— Somos filhas da mesma mulher. E isso… já é dor suficiente.

Lara leu a carta no dia seguinte. Trêmula.

— Então a avó escolheu me deixar? Quis me proteger... ou esconder?

— Talvez ambas — respondi.

— E eu? Vivi minha vida achando que era a filha única. E agora sou… o resto?

— Tu és o começo. E ela… é a continuação que foi interrompida.

— Mas não posso competir com isso, mãe. Eu te amei por inteiro. Ela só chegou… e levou tudo.

— Não levou. Ela está tentando achar espaço.

— E o meu?

— Sempre será teu. Porque ser mãe de vocês duas… não me faz menos tua.

Ela chorou. Me abraçou.

Mas havia rachaduras que nenhum afeto imediato conseguiria colar.

Jonas me levou para caminhar à beira do lago.

— Vais deixar isso te destruir?

— Já me destruiu antes. Só que eu não sabia o nome.

— Agora sabes. E saber é poder.

— Mas também é dor.

— E a dor… às vezes é tudo o que temos pra crescer.

Na manhã seguinte, Vivian decidiu ir embora. Sem avisar.

Deixou um bilhete:

“Preciso saber quem sou sem a sombra de ninguém. Nem tua, nem dela. Talvez um dia volte. Mas agora… preciso respirar.”

Ela partiu.

Lara a viu de longe.

Não falou nada.

Mas naquela noite, entrou no meu quarto.

Sentou-se na beira da cama.

— Ainda és minha mãe?

— Sou. Com todo o coração que me resta.

— Então me segura. Só um pouco.

Segurei.

E soube que, mesmo com uma filha a menos sob o teto…

Ainda tinha as duas dentro de mim.