Passaram-se três semanas desde que Vivian foi embora.
Nenhuma ligação. Nenhuma mensagem. Nenhum sinal.
Mas eu sabia — sentia no corpo — que ela não estava em paz. A despedida apressada escondia um grito não dito. E eu, como mãe, aprendi a ouvir os silêncios.
Foi Jonas quem chegou com a notícia:
— Vera ligou. Disse que o nome da Vivian apareceu em uma lista de doadores de uma organização chamada Aliança da Terra Fértil.
— E o que é isso?
— Um grupo político extremista que se apresenta como defensor de causas sociais… mas está ligado à lavagem de dinheiro e manipulação de dados ambientais.
— E por que Vivian estaria envolvida?
— Ou foi enganada. Ou está jogando com fogo.
Enquanto isso, Lara mergulhava num silêncio mais profundo do que eu podia alcançar. Cancelou palestras, recusou convites, deixou de escrever. Passava horas trancada no quarto, ouvindo músicas antigas ou apenas olhando para o teto.
— Filha — perguntei, certa manhã — o que dói mais?
Ela demorou a responder.
— Dói… não saber mais se sou especial. Se fui alguma vez. Ou se fui só a que ficou por falta de opção.
— Isso nunca foi verdade.
— Mas parece. Tudo o que conquistei agora me pesa. Como se estivesse ocupando um lugar que talvez fosse dela.
— Lara, tu és quem tu és porque lutaste por isso. A Vivian não rouba o que é teu. Só te obriga a lembrar que existe mais do que sabias.
Ela respirou fundo.
— E se eu não quiser dividir?
— Então és humana. E isso… também é parte da tua beleza.
Ela me olhou com os olhos marejados.
— Mas dói ser humana.
— Eu sei. Sempre soube.
Na tarde de terça-feira, recebi uma carta marcada como "pessoal e urgente". Sem remetente.
Dentro, uma foto antiga de Teresa — minha mãe — em preto e branco, em pé ao lado de uma mulher de expressão severa e um símbolo no fundo: três espigas cruzadas sobre um fundo vermelho.
Acompanhava a imagem uma nota:
“Antes de ser protetora de mulheres, tua mãe foi mentora de algo maior. A Aliança nasceu dela.”
Senti o coração parar.
Peguei o envelope e fui direto até Vera.
— Isto é verdade?
Vera analisou. Fez pesquisas.
— Sim. O símbolo é real. A Aliança da Terra Fértil surgiu como um movimento ambiental e feminista rural nos anos 70. Mas foi cooptada por ideologias extremas nos anos 90. Se Teresa esteve envolvida no início... talvez não soubesse no que isso ia dar.
— Mas se a Vivian souber disso…
— Ela pode estar sendo usada como legado.
Viajamos até Coimbra, onde Teresa viveu seus anos de juventude. Visitamos um antigo centro comunitário abandonado. Lá, encontramos uma sala trancada com documentos arquivados.
Dentro, descobrimos cartas trocadas entre Teresa e uma mulher chamada Beatriz Campos, uma figura que mais tarde virou líder do braço extremista da Aliança.
“Teresinha, teu idealismo é lindo, mas está limitado pela tua maternidade. Mulheres precisam de fogo. De controle. De poder. Junta-te a mim.”
E a resposta:
“Beatriz, eu luto por amor. Tu lutas por revanche. Se seguirmos por caminhos diferentes, que ao menos nos reconheçamos como mulheres — não como inimigas.”
Chorei ao ler aquilo.
Minha mãe não caiu.
Minha mãe escolheu outro caminho.
Mas deixou rastros.
Jonas ficou em choque com as descobertas.
— E se alguém usar isso para descreditar tudo que construíste?
— Então que usem. Eu não escondo mais nada. Nem de mim.
— E a Vivian?
— É hora de encontrar minha filha. Antes que alguém a molde como quiser.
Com ajuda de Vera, rastreamos Vivian até Barcelona. Estava hospedada em um hotel luxuoso, como convidada de honra de um congresso ambiental patrocinado pela Aliança.
Consegui encontrá-la antes de subir ao palco. Estava maquiada, vestida como uma estrela política.
— Vim te avisar — disse. — Eles estão te usando.
— Talvez eu esteja usando eles também — respondeu com frieza.
— E se eu disser que tua avó ajudou a fundar esse movimento?
Ela congelou.
— O quê?
— Mas depois desistiu. Porque percebeu que estavam transformando justiça em vingança. E agora... estão tentando fazer isso contigo.
Vivian ficou em silêncio. Os olhos ameaçavam desabar. Mas resistiu.
— Não sei mais quem sou, Isabel. Tu me dás versões. O mundo me dá máscaras. E eu… só quero sentir que pertenço a algo.
— Então pertence a ti mesma. Não a slogans.
Ela chorou. Baixinho.
— Podes voltar comigo. Ou segui-los. Mas decide por ti. Pela primeira vez.
Vivian respirou.
Tirou o crachá do pescoço.
Olhou para mim.
— Me leva pra casa.
Naquela noite, voltamos juntas.
Lara nos esperava.
Com os olhos baixos e o coração fechado.
Mas quando viu Vivian…
Não disse nada.
Apenas puxou uma segunda cadeira para a varanda.
Vivian sentou.
Lado a lado.
Sem pressa.
E ali… mesmo sem palavras…
A sombra começou a ceder.