Capítulo 57 : O homem que ela nunca mencionou

A casa estava diferente.

Não por causa da mobília.

Mas porque, pela primeira vez, todas as minhas versões estavam sob o mesmo teto.

Lara.

Vivian.

E eu.

As manhãs tornaram-se um exercício de convivência delicada. Café servido com cuidado, conversas medidas, e silêncios cheios de tudo que ainda não foi dito.

Vivian tentava se adaptar. Lia muito, observava mais. Não forçava intimidade — talvez por medo de não saber sustentá-la.

Lara mantinha distância emocional. Educada, mas fria. Como quem entende que dividir uma mãe é um ato de resistência.

Certa noite, enquanto eu preparava chá, Jonas entrou na cozinha em silêncio.

— Há algo errado — disse ele, com a testa franzida.

— Com as meninas?

— Contigo. E comigo.

— O que queres dizer?

— Que não estamos mais no mesmo ritmo. Que não conversamos como antes. Que estás sempre... em outro lugar.

— Estou tentando manter tudo de pé.

— E nós?

— Nós viramos base. Firme. Mas esquecida.

Sentei.

— Tens razão. Tenho te deixado por último. Mas só porque confio que tu não vais fugir.

Ele me olhou, machucado.

— Mas até quem fica… também cansa.

Na manhã seguinte, recebi uma carta estranha, entregue à mão. Sem remetente, apenas um nome escrito com caligrafia antiga:

Dr. Renato Santiago.

Dentro, uma mensagem direta:

“Conheci Teresa. Estivemos ligados por mais do que ideias.

Ela nunca te falou de mim, mas eu… sempre soube de ti.

Estou em Lisboa. Quero conversar.

Antes que seja tarde.”

O nome não me dizia nada. Mas Vera pesquisou por mim.

— Renato Santiago foi um dos fundadores da antiga Aliança da Terra Fértil. Mas abandonou tudo no fim dos anos 90, depois de um escândalo de corrupção e ameaças internas.

— E por que ele falaria da minha mãe?

— Porque, segundo alguns registros… eles eram mais do que aliados.

Fiquei em silêncio.

Um pensamento se insinuou.

Incômodo.

Inaceitável.

— Achas que ele pode ser… meu pai?

Vera hesitou.

— É possível.

Decidi ir a Lisboa.

Jonas não quis vir.

— Acho que essa é uma conversa que tu precisas ter… sozinha.

— E tu? Vais ficar?

— Por enquanto.

A resposta foi neutra.

Mas senti o abismo.

Cheguei ao endereço indicado. Um pequeno apartamento no Bairro Alto.

Renato me esperava sentado numa poltrona antiga, com os olhos turvos e as mãos trêmulas.

— Isabel Guarda — disse, com voz rouca. — Os olhos da Teresa. Mas o silêncio do pai.

— Vieste mesmo? — perguntei, direta. — O que queres?

Ele me olhou com melancolia.

— Não quero nada. Só deixar algo antes de partir. A verdade.

Sentei.

— Teresa foi o grande amor da minha vida. Lutamos juntos, fizemos planos, e... nos separamos por medo. Ela engravidou. E não me contou. Achou que eu a impediria de criar a filha sozinha. Estava errada.

— Estás a dizer que…?

— Que sou teu pai, Isabel. Por sangue. Mas não por presença.

E isso… me destruiu por dentro.

Fechei os olhos.

Senti raiva.

E uma estranha paz.

— Por que agora?

— Porque vi teu nome nas notícias. Porque reconheci a voz dela em ti. E porque estou morrendo. Literalmente. Cancro terminal. Poucas semanas.

Voltei para Genebra em silêncio.

Vivian e Lara me esperavam na varanda.

Como espelhos partidos.

— Como foi? — perguntou Lara.

— Intenso. E… inesperado.

— Ele era o que pensavas?

— Ele era o que minha mãe nunca me deixou conhecer.

— Então… tens outro pedaço agora.

Assenti.

Vivian se aproximou.

— E o que vais fazer com essa nova parte?

— O que faço com todas as outras: aceitar. Mesmo que doa.

Naquela noite, sentei com Jonas.

— Encontrei meu pai.

Ele me olhou, surpreso.

— E?

— Ele não foi. Mas sempre soube. E agora… está morrendo.

Jonas me segurou a mão.

— Ainda estamos aqui?

— Eu quero estar. Mas preciso que tu também queiras.

Ele sorriu. Pequeno.

— Ainda quero. Mas precisamos parar de apenas resistir. E começar a viver.

— Podemos recomeçar?

— Podemos recomeçar mil vezes. Desde que seja juntos.

E então, pela primeira vez em meses, jantamos os quatro à mesa.

Vivian contou sobre um artigo que escreveria.

Lara falou de um novo projeto literário sobre irmandade não romântica.

Jonas cozinhou.

E eu… apenas escutei.

Porque, apesar de tudo…

Apesar das perdas, verdades, choques e ausências…

Ali estava algo que parecia, enfim, um começo.