A casa estava diferente.
Não por causa da mobília.
Mas porque, pela primeira vez, todas as minhas versões estavam sob o mesmo teto.
Lara.
Vivian.
E eu.
As manhãs tornaram-se um exercício de convivência delicada. Café servido com cuidado, conversas medidas, e silêncios cheios de tudo que ainda não foi dito.
Vivian tentava se adaptar. Lia muito, observava mais. Não forçava intimidade — talvez por medo de não saber sustentá-la.
Lara mantinha distância emocional. Educada, mas fria. Como quem entende que dividir uma mãe é um ato de resistência.
Certa noite, enquanto eu preparava chá, Jonas entrou na cozinha em silêncio.
— Há algo errado — disse ele, com a testa franzida.
— Com as meninas?
— Contigo. E comigo.
— O que queres dizer?
— Que não estamos mais no mesmo ritmo. Que não conversamos como antes. Que estás sempre... em outro lugar.
— Estou tentando manter tudo de pé.
— E nós?
— Nós viramos base. Firme. Mas esquecida.
Sentei.
— Tens razão. Tenho te deixado por último. Mas só porque confio que tu não vais fugir.
Ele me olhou, machucado.
— Mas até quem fica… também cansa.
Na manhã seguinte, recebi uma carta estranha, entregue à mão. Sem remetente, apenas um nome escrito com caligrafia antiga:
Dr. Renato Santiago.
Dentro, uma mensagem direta:
“Conheci Teresa. Estivemos ligados por mais do que ideias.
Ela nunca te falou de mim, mas eu… sempre soube de ti.
Estou em Lisboa. Quero conversar.
Antes que seja tarde.”
O nome não me dizia nada. Mas Vera pesquisou por mim.
— Renato Santiago foi um dos fundadores da antiga Aliança da Terra Fértil. Mas abandonou tudo no fim dos anos 90, depois de um escândalo de corrupção e ameaças internas.
— E por que ele falaria da minha mãe?
— Porque, segundo alguns registros… eles eram mais do que aliados.
Fiquei em silêncio.
Um pensamento se insinuou.
Incômodo.
Inaceitável.
— Achas que ele pode ser… meu pai?
Vera hesitou.
— É possível.
Decidi ir a Lisboa.
Jonas não quis vir.
— Acho que essa é uma conversa que tu precisas ter… sozinha.
— E tu? Vais ficar?
— Por enquanto.
A resposta foi neutra.
Mas senti o abismo.
Cheguei ao endereço indicado. Um pequeno apartamento no Bairro Alto.
Renato me esperava sentado numa poltrona antiga, com os olhos turvos e as mãos trêmulas.
— Isabel Guarda — disse, com voz rouca. — Os olhos da Teresa. Mas o silêncio do pai.
— Vieste mesmo? — perguntei, direta. — O que queres?
Ele me olhou com melancolia.
— Não quero nada. Só deixar algo antes de partir. A verdade.
Sentei.
— Teresa foi o grande amor da minha vida. Lutamos juntos, fizemos planos, e... nos separamos por medo. Ela engravidou. E não me contou. Achou que eu a impediria de criar a filha sozinha. Estava errada.
— Estás a dizer que…?
— Que sou teu pai, Isabel. Por sangue. Mas não por presença.
E isso… me destruiu por dentro.
Fechei os olhos.
Senti raiva.
E uma estranha paz.
— Por que agora?
— Porque vi teu nome nas notícias. Porque reconheci a voz dela em ti. E porque estou morrendo. Literalmente. Cancro terminal. Poucas semanas.
Voltei para Genebra em silêncio.
Vivian e Lara me esperavam na varanda.
Como espelhos partidos.
— Como foi? — perguntou Lara.
— Intenso. E… inesperado.
— Ele era o que pensavas?
— Ele era o que minha mãe nunca me deixou conhecer.
— Então… tens outro pedaço agora.
Assenti.
Vivian se aproximou.
— E o que vais fazer com essa nova parte?
— O que faço com todas as outras: aceitar. Mesmo que doa.
Naquela noite, sentei com Jonas.
— Encontrei meu pai.
Ele me olhou, surpreso.
— E?
— Ele não foi. Mas sempre soube. E agora… está morrendo.
Jonas me segurou a mão.
— Ainda estamos aqui?
— Eu quero estar. Mas preciso que tu também queiras.
Ele sorriu. Pequeno.
— Ainda quero. Mas precisamos parar de apenas resistir. E começar a viver.
— Podemos recomeçar?
— Podemos recomeçar mil vezes. Desde que seja juntos.
E então, pela primeira vez em meses, jantamos os quatro à mesa.
Vivian contou sobre um artigo que escreveria.
Lara falou de um novo projeto literário sobre irmandade não romântica.
Jonas cozinhou.
E eu… apenas escutei.
Porque, apesar de tudo…
Apesar das perdas, verdades, choques e ausências…
Ali estava algo que parecia, enfim, um começo.