Capítulo 59 A Herança que ainda respira

Eu pensava que já tinha encontrado todos os fantasmas da minha mãe. Mas um nome esquecido há décadas ressurgiu como um sussurro inesperado: Camilo Duarte.

Era um dos poucos homens que Teresa confiava nos anos finais do movimento clandestino. Desapareceu no início dos anos 2000, acusado de traição, e nunca mais foi visto.

Até agora.

Recebi um e-mail com apenas uma frase:

“Precisas me ouvir. Nem tudo que Teresa escondeu… foi para te proteger. Camilo.”

Contei a Jonas. Esperava seu habitual equilíbrio. Mas, para minha surpresa, ele reagiu com frieza.

— Então vais? Vais reabrir mais um túmulo?

— Jonas…

— Isabel, não vês que cada porta que abres traz mais dor?

— Traz respostas.

— E te afasta de mim.

Ele se levantou e saiu, sem dizer para onde. Ficou dois dias fora. Nenhuma mensagem.

Enquanto isso, recebi um convite da UNESCO para uma conferência internacional em Bruxelas. Mas, pela primeira vez, declinei.

— Estou cansada — disse a Vera. — Cansada de palcos, de aplausos que vêm com pedras.

— Então envia alguém por ti.

Pensei em Lara. Pensei em Vivian.

Decidi por ambas.

— Vão juntas. Como filhas. Como vozes novas.

Lara hesitou.

— E se nos compararem?

— Que comparem. E que vejam o quanto juntas são mais fortes.

Em Bruxelas, Lara e Vivian pisaram no palco com vestidos simples e postura firme.

— Viemos em nome de Isabel Guarda — disse Lara. — Mas hoje não representamos apenas a nossa mãe. Representamos cada mulher que aprendeu a viver com o que nunca pediu.

Vivian continuou:

— E também representamos o direito de escrever a própria versão. De não aceitar que os erros de ontem determinem o silêncio de amanhã.

A plateia aplaudiu em pé.

As duas se abraçaram ao fim.

Um abraço breve, mas sincero.

Não era perdão ainda.

Mas era algo.

No terceiro dia da ausência de Jonas, ele me ligou. A voz estava embargada.

— Preciso te contar algo.

— Diz.

— Fui ao hospital. A dor nas costas voltou. Fiz exames. Preciso operar. Há risco.

— Por que não me disseste antes?

— Porque não queria ser mais um peso.

— Tu não és peso. És o chão.

— Não quero que pares tua vida por mim.

— Jonas… a minha vida é contigo também.

No fim da tarde, Camilo Duarte apareceu em frente à minha casa em Genebra. Magro, envelhecido, mas com um olhar que misturava remorso e urgência.

— A Teresa… me deu ordens — disse ele, sentado na minha sala. — Ordens que fui covarde demais para cumprir.

— Que ordens?

— Ela descobriu, nos últimos meses de vida, que a filha dela havia sido vigiada. Que forças externas queriam usar tua imagem. Desde sempre. Queriam te moldar como “emissária da pureza do movimento”.

— Como assim?

— Havia pessoas dentro da rede que planejavam te tornar símbolo desde a infância. Crianças criadas como ícones. Não sobreviventes. Mas ferramentas.

— E minha mãe impediu?

— Pagou o preço. Foi isolada. Apagada. E eu… fugi. Por medo.

Fiquei sem palavras.

— Por que contar agora?

— Porque estão tentando fazer o mesmo com tuas filhas. Já vi isso antes.

Meu sangue gelou.

Lara me ligou de Bruxelas na manhã seguinte.

— Tivemos uma abordagem estranha. Um homem disse que queria “investir em nossa imagem como as filhas da resistência europeia”. Mas algo na fala dele soou... controlado. Me assustou.

— Onde está a Vivian?

— No hotel. Está nervosa. Disse que sente que estamos sendo observadas.

— Voltem. Agora.

Quando chegaram, estavam diferentes.

— Mãe, há algo muito maior se movendo — disse Vivian. — Pessoas querem usar tua história como bandeira de uma nova frente política internacional. E agora querem a nossa imagem atrelada.

— Como se fôssemos herdeiras de um império ideológico — completou Lara.

— Mas não somos — disse eu. — Somos sobreviventes.

— E isso… incomoda.

Naquela noite, sentei sozinha na varanda.

Jonas voltou da clínica no fim da noite. Pálido, cansado.

— A cirurgia é em breve. Vou precisar de tempo. E de ti.

— Terás tudo.

— E tu?

— Terei vocês.

No escuro, escrevi no meu caderno:

“Ser filha de Teresa é carregar história.

Ser mãe de Lara e Vivian… é criar futuro.

E eu, Isabel, estou no meio.

Entre os gritos do ontem

E os sussurros do amanhã.”

E prometi a mim mesma:

Ninguém mais escreverá essa história por nós.