Capítulo 60 O rosto que eu inventei

Na manhã da cirurgia de Jonas, o hospital cheirava a desinfetante e esperança contida. Eu caminhei com ele até a porta da sala de operação como se estivesse o levando a um lugar de onde talvez não voltasse do mesmo jeito.

— Se algo acontecer... — começou ele.

— Não digas isso.

— Preciso. Se algo acontecer, cuida delas. E não deixes que usem tua história pra apagar quem tu és.

— Jonas… volta. É tudo o que peço.

Ele apertou minha mão. E entrou.

Enquanto esperava, recebi uma ligação de Lara. Ela estava com Vivian.

— Mãe, aconteceu algo estranho. A Vivian… ela desmaiou.

Corri para o hotel onde estavam hospedadas.

Vivian estava sentada na cama, com gelo na cabeça e os olhos vermelhos. Mas o que me assustou foi o que vi ao seu lado: uma caixa aberta com produtos de maquiagem e cosméticos clínicos. Uma coleção obsessiva, refinada, quase cirúrgica.

— O que é tudo isso? — perguntei.

Vivian hesitou. E depois disse com voz quebrada:

— Isso é quem eu sou… ou quem eu finjo ser.

Naquela noite, Vivian me contou o que nunca havia dito a ninguém.

— Quando fui adolescente, a Aurora — a mulher que me criou — dizia que eu era horrível. Que tinha “a cara da mulher que destruiu a vida dela”. Ela se referia à tua mãe.

— Teresa?

— Sim. Ela culpava tua mãe por tudo. E dizia que, se eu quisesse vencer, precisava ser outra.

Vivian então se transformou.

Aos 16 anos, fez procedimentos no rosto.

Aprendeu técnicas de maquiagem.

Recriou uma identidade estética.

— Eu me tornei bonita. Mas... nunca fui eu.

— E por que agora?

— Porque estão tentando me vender como “a gêmea resgatada”, a beleza da resistência. Mas essa beleza… não é minha.

Na manhã seguinte, Jonas saiu da cirurgia com sucesso.

A recuperação seria longa, mas os médicos estavam otimistas.

— Sabia que voltaria — disse ele, fraco, mas sorrindo.

— Eu sabia que não podia te perder.

— Ainda temos muito a fazer.

No mesmo dia, recebi uma ligação urgente de Vera:

— Isabel, Camilo foi atacado. Está vivo, mas gravemente ferido. Disseram que foi um assalto. Mas não levaram nada. Nada além dos arquivos dele.

— O que queres dizer?

— Ele guardava provas sobre o uso político da tua imagem. Cartas antigas, documentos da Aliança. Tudo sumiu.

— E agora?

— Agora... tu és o único elo.

Naquela tarde, encontrei Vivian no espelho. Literalmente. Ela passava maquiagem como quem desenha uma máscara. Mas parou ao me ver.

— Queres ver?

— Quero ver quem tu és. Sem nada.

Ela suspirou.

E, pela primeira vez, limpou o rosto por completo. Sem base. Sem contorno. Sem disfarces.

Diante de mim estava uma jovem com olheiras reais, sardas tímidas e uma cicatriz quase invisível no queixo.

— Esta sou eu.

Não a mulher dos vídeos.

Não a imagem da causa.

Só… Vivian.

— Tu és linda. Assim. Porque agora vejo tua verdade.

Ela chorou.

— Sempre achei que, se mostrasse isso, perderia tudo.

— Mas talvez agora… seja onde tu começas a ganhar.

No fim do dia, Lara propôs algo impensável:

— E se fizermos um documentário… nós três? Sobre o que ninguém vê. As marcas. A vergonha. A pressão. A beleza que nos afasta da verdade.

Vivian arregalou os olhos.

— Tu me queres nisso?

— Quero. Porque se alguém pode mostrar o outro lado da beleza… és tu.

Na última cena do dia, sentamos na varanda: eu, Jonas já em casa, Lara e Vivian.

Elas riam. Discutiam estética, liberdade, identidade.

Mas sem rivalidade.

Havia… afeto.

Ainda novo.

Ainda frágil.

Mas afeto.

E ali, sob a luz morna da noite, soube:

O rosto que cada uma carrega não define o que são.

O que define… é o que fazem com ele.