Na manhã da cirurgia de Jonas, o hospital cheirava a desinfetante e esperança contida. Eu caminhei com ele até a porta da sala de operação como se estivesse o levando a um lugar de onde talvez não voltasse do mesmo jeito.
— Se algo acontecer... — começou ele.
— Não digas isso.
— Preciso. Se algo acontecer, cuida delas. E não deixes que usem tua história pra apagar quem tu és.
— Jonas… volta. É tudo o que peço.
Ele apertou minha mão. E entrou.
Enquanto esperava, recebi uma ligação de Lara. Ela estava com Vivian.
— Mãe, aconteceu algo estranho. A Vivian… ela desmaiou.
Corri para o hotel onde estavam hospedadas.
Vivian estava sentada na cama, com gelo na cabeça e os olhos vermelhos. Mas o que me assustou foi o que vi ao seu lado: uma caixa aberta com produtos de maquiagem e cosméticos clínicos. Uma coleção obsessiva, refinada, quase cirúrgica.
— O que é tudo isso? — perguntei.
Vivian hesitou. E depois disse com voz quebrada:
— Isso é quem eu sou… ou quem eu finjo ser.
Naquela noite, Vivian me contou o que nunca havia dito a ninguém.
— Quando fui adolescente, a Aurora — a mulher que me criou — dizia que eu era horrível. Que tinha “a cara da mulher que destruiu a vida dela”. Ela se referia à tua mãe.
— Teresa?
— Sim. Ela culpava tua mãe por tudo. E dizia que, se eu quisesse vencer, precisava ser outra.
Vivian então se transformou.
Aos 16 anos, fez procedimentos no rosto.
Aprendeu técnicas de maquiagem.
Recriou uma identidade estética.
— Eu me tornei bonita. Mas... nunca fui eu.
— E por que agora?
— Porque estão tentando me vender como “a gêmea resgatada”, a beleza da resistência. Mas essa beleza… não é minha.
Na manhã seguinte, Jonas saiu da cirurgia com sucesso.
A recuperação seria longa, mas os médicos estavam otimistas.
— Sabia que voltaria — disse ele, fraco, mas sorrindo.
— Eu sabia que não podia te perder.
— Ainda temos muito a fazer.
No mesmo dia, recebi uma ligação urgente de Vera:
— Isabel, Camilo foi atacado. Está vivo, mas gravemente ferido. Disseram que foi um assalto. Mas não levaram nada. Nada além dos arquivos dele.
— O que queres dizer?
— Ele guardava provas sobre o uso político da tua imagem. Cartas antigas, documentos da Aliança. Tudo sumiu.
— E agora?
— Agora... tu és o único elo.
Naquela tarde, encontrei Vivian no espelho. Literalmente. Ela passava maquiagem como quem desenha uma máscara. Mas parou ao me ver.
— Queres ver?
— Quero ver quem tu és. Sem nada.
Ela suspirou.
E, pela primeira vez, limpou o rosto por completo. Sem base. Sem contorno. Sem disfarces.
Diante de mim estava uma jovem com olheiras reais, sardas tímidas e uma cicatriz quase invisível no queixo.
— Esta sou eu.
Não a mulher dos vídeos.
Não a imagem da causa.
Só… Vivian.
— Tu és linda. Assim. Porque agora vejo tua verdade.
Ela chorou.
— Sempre achei que, se mostrasse isso, perderia tudo.
— Mas talvez agora… seja onde tu começas a ganhar.
No fim do dia, Lara propôs algo impensável:
— E se fizermos um documentário… nós três? Sobre o que ninguém vê. As marcas. A vergonha. A pressão. A beleza que nos afasta da verdade.
Vivian arregalou os olhos.
— Tu me queres nisso?
— Quero. Porque se alguém pode mostrar o outro lado da beleza… és tu.
Na última cena do dia, sentamos na varanda: eu, Jonas já em casa, Lara e Vivian.
Elas riam. Discutiam estética, liberdade, identidade.
Mas sem rivalidade.
Havia… afeto.
Ainda novo.
Ainda frágil.
Mas afeto.
E ali, sob a luz morna da noite, soube:
O rosto que cada uma carrega não define o que são.
O que define… é o que fazem com ele.