A Fundação Teresa nasceu de um gesto simples: um envelope de papel reciclado com nosso símbolo desenhado à mão — uma mulher de cabeça erguida, com uma cicatriz em forma de flor.
No início, éramos só nós quatro. Eu, Vivian, Lara e Júlia. Depois vieram mulheres de várias partes do mundo. Algumas queriam falar. Outras, apenas ouvir. Mas todas tinham uma coisa em comum: foram silenciadas por alguém.
Vivian desenhava as campanhas. Lara escrevia as histórias. E eu… escutava. Escutar se tornara meu maior ofício.
O primeiro evento público da Fundação foi em Lisboa. Um teatro lotado, mas sem tapete vermelho. Só vozes reais, roupas simples e luz morna.
Lara leu a carta de uma sobrevivente do tráfico humano. Vivian apresentou um retrato de uma mulher que passou 20 anos escondendo sua identidade por vergonha. E eu contei, com voz firme, como sobrevivi a mim mesma.
A plateia chorou.
Mas alguém assistia de longe.
Uma mulher de cabelos grisalhos, sentada na última fila.
Aurora Martins.
Dois dias depois, recebi uma carta com sua caligrafia irregular:
*“Isabel,
Sei que não me queres ver. E tens todo o direito.
Mas estou doente. Terminal. E antes de partir, preciso dizer a verdade.
Não te devo perdão. Só confissão.”*
Vivian hesitou ao saber.
— Quero ir. Mas não quero que ela pense que tem poder sobre mim.
— Não tem — disse Lara. — Tu é que decides o que fazer com o que ela te disser.
Fomos juntas. A casa era modesta, afastada. A mulher diante de nós já não era a figura cruel que Vivian lembrava. Era frágil, arrependida… e assombrada.
— Se vieram por respostas — disse Aurora — darei todas.
E ela contou.
Aurora foi paga para “adotar” Vivian. Mas logo percebeu que o que recebia não era só dinheiro — era também ordens.
— Eles queriam moldá-la — disse. — Fazer dela símbolo de uma nova geração. Uma versão reversa da tua mãe.
— Quem são “eles”? — perguntei.
— Gente ligada à antiga Aliança. E a um nome que te pertence: Guarda.
— Meu nome?
— Teu pai, Renato, não era só idealista. Ele era herdeiro de um grupo político-financeiro com ramificações em todo o sul da Europa. O nome “Guarda” foi usado por anos como marca de pureza revolucionária.
— E por que eu nunca soube disso?
— Porque Teresa te escondeu. Mudou teus registros. Fez de tudo para te separar desse legado.
Fiquei sem ar.
Meu nome…
O nome que me sustentou…
Era também o nome de uma máquina?
— E agora? — perguntou Vivian.
— Agora precisamos decidir se destruímos esse nome…
Ou se o transformamos.
De volta a Genebra, Jonas me esperava com um envelope na mão.
— Recebeste isto.
Abri. Era uma carta da União Europeia.
*“Sra. Isabel Guarda,
Dada sua história, relevância e o legado do nome que carrega, gostaríamos de convidá-la a integrar o Comitê de Direção Estratégica para Mulheres e Justiça, com base em Bruxelas.”*
— Eles sabem. E agora querem te usar como emblema — disse Jonas.
— Ou querem que eu limpe o nome que um dia mancharam — respondi.
Lara e Vivian discutiram a proposta.
— Se aceitares, o nome Guarda vai circular pelo mundo como sinônimo de autoridade — disse Lara.
— Mas isso pode ser perigoso — disse Vivian. — Vão querer moldar-te outra vez.
— Então talvez seja hora de usar esse palco… do meu jeito.
Na varanda, escrevi no meu caderno:
“Meu nome não é um fardo.
É matéria bruta.
Já foi bandeira, foi venda, foi escudo.
Agora… será ferramenta.
Se um dia quiserem apagá-lo, que seja porque ficou grande demais.”
Dois dias depois, aceitei o cargo.
Mas com uma condição:
“Quero que o Comitê leve o nome da minha mãe: Teresa.”
Eles aceitaram.
Na última cena da noite, estávamos todas sentadas em volta da mesa:
Jonas, com o jornal dobrado no colo.
Júlia, montando um blog da Fundação.
Vivian, com o rosto limpo, sorrindo.
Lara, escrevendo à mão.
E eu, Isabel Guarda, olhando para elas.
Sabendo que agora…
o nome que carrego
não pertence mais a mim.
Ele pertence a todas nós.