Capítulo 63 : O nome que carrega o mundo

A Fundação Teresa nasceu de um gesto simples: um envelope de papel reciclado com nosso símbolo desenhado à mão — uma mulher de cabeça erguida, com uma cicatriz em forma de flor.

No início, éramos só nós quatro. Eu, Vivian, Lara e Júlia. Depois vieram mulheres de várias partes do mundo. Algumas queriam falar. Outras, apenas ouvir. Mas todas tinham uma coisa em comum: foram silenciadas por alguém.

Vivian desenhava as campanhas. Lara escrevia as histórias. E eu… escutava. Escutar se tornara meu maior ofício.

O primeiro evento público da Fundação foi em Lisboa. Um teatro lotado, mas sem tapete vermelho. Só vozes reais, roupas simples e luz morna.

Lara leu a carta de uma sobrevivente do tráfico humano. Vivian apresentou um retrato de uma mulher que passou 20 anos escondendo sua identidade por vergonha. E eu contei, com voz firme, como sobrevivi a mim mesma.

A plateia chorou.

Mas alguém assistia de longe.

Uma mulher de cabelos grisalhos, sentada na última fila.

Aurora Martins.

Dois dias depois, recebi uma carta com sua caligrafia irregular:

*“Isabel,

Sei que não me queres ver. E tens todo o direito.

Mas estou doente. Terminal. E antes de partir, preciso dizer a verdade.

Não te devo perdão. Só confissão.”*

Vivian hesitou ao saber.

— Quero ir. Mas não quero que ela pense que tem poder sobre mim.

— Não tem — disse Lara. — Tu é que decides o que fazer com o que ela te disser.

Fomos juntas. A casa era modesta, afastada. A mulher diante de nós já não era a figura cruel que Vivian lembrava. Era frágil, arrependida… e assombrada.

— Se vieram por respostas — disse Aurora — darei todas.

E ela contou.

Aurora foi paga para “adotar” Vivian. Mas logo percebeu que o que recebia não era só dinheiro — era também ordens.

— Eles queriam moldá-la — disse. — Fazer dela símbolo de uma nova geração. Uma versão reversa da tua mãe.

— Quem são “eles”? — perguntei.

— Gente ligada à antiga Aliança. E a um nome que te pertence: Guarda.

— Meu nome?

— Teu pai, Renato, não era só idealista. Ele era herdeiro de um grupo político-financeiro com ramificações em todo o sul da Europa. O nome “Guarda” foi usado por anos como marca de pureza revolucionária.

— E por que eu nunca soube disso?

— Porque Teresa te escondeu. Mudou teus registros. Fez de tudo para te separar desse legado.

Fiquei sem ar.

Meu nome…

O nome que me sustentou…

Era também o nome de uma máquina?

— E agora? — perguntou Vivian.

— Agora precisamos decidir se destruímos esse nome…

Ou se o transformamos.

De volta a Genebra, Jonas me esperava com um envelope na mão.

— Recebeste isto.

Abri. Era uma carta da União Europeia.

*“Sra. Isabel Guarda,

Dada sua história, relevância e o legado do nome que carrega, gostaríamos de convidá-la a integrar o Comitê de Direção Estratégica para Mulheres e Justiça, com base em Bruxelas.”*

— Eles sabem. E agora querem te usar como emblema — disse Jonas.

— Ou querem que eu limpe o nome que um dia mancharam — respondi.

Lara e Vivian discutiram a proposta.

— Se aceitares, o nome Guarda vai circular pelo mundo como sinônimo de autoridade — disse Lara.

— Mas isso pode ser perigoso — disse Vivian. — Vão querer moldar-te outra vez.

— Então talvez seja hora de usar esse palco… do meu jeito.

Na varanda, escrevi no meu caderno:

“Meu nome não é um fardo.

É matéria bruta.

Já foi bandeira, foi venda, foi escudo.

Agora… será ferramenta.

Se um dia quiserem apagá-lo, que seja porque ficou grande demais.”

Dois dias depois, aceitei o cargo.

Mas com uma condição:

“Quero que o Comitê leve o nome da minha mãe: Teresa.”

Eles aceitaram.

Na última cena da noite, estávamos todas sentadas em volta da mesa:

Jonas, com o jornal dobrado no colo.

Júlia, montando um blog da Fundação.

Vivian, com o rosto limpo, sorrindo.

Lara, escrevendo à mão.

E eu, Isabel Guarda, olhando para elas.

Sabendo que agora…

o nome que carrego

não pertence mais a mim.

Ele pertence a todas nós.