Assumir um cargo internacional é como sentar-se num trono de vidro: visível, admirada, e constantemente ameaçada de estilhaçar.
Bruxelas me recebeu com formalidade e vigilância. O Comitê de Direção Estratégica para Mulheres e Justiça — agora rebatizado como Comitê Teresa Guarda — reunia líderes de todo o mundo. Mas, para muitos, minha presença era incômoda.
— Uma mulher com um passado tão “emocional” não deveria ter tanto poder — murmuravam alguns.
— Ela é carismática demais para esse tipo de responsabilidade — diziam outros.
Sorri.
Afinal, já fui chamada de pior.
Lara veio comigo na primeira semana. Preparava a publicação internacional do livro A Beleza da Farsa e reuniu editoras de cinco países.
— Estão interessados na versão em inglês, francês e coreano — disse ela, orgulhosa.
Mas havia algo no olhar dela. Um brilho contido, como quem segura uma notícia importante.
— Diz-me — insisti.
Ela me mostrou um e-mail. Uma proposta de residência literária na Califórnia por um ano. Todas as despesas pagas. Lançamento do livro previsto nos EUA. Parcerias com universidades.
— É o sonho, mãe.
— Então por que hesitas?
— Porque partir agora… é como sair da história no meio do capítulo.
— Às vezes, precisamos sair… para voltarmos com uma nova página.
Ela sorriu.
Mas ainda não decidira.
Enquanto isso, Vivian estava inquieta.
Algo nela mudara desde a conversa com Aurora.
Começou a procurar arquivos, registros antigos, depoimentos médicos.
Até que, certa noite, entrou em meu escritório segurando uma pasta.
— Mãe… eu descobri.
— O quê?
— O meu pai.
Fiquei em silêncio.
Ela respirou fundo.
— Não foi um homem qualquer. Foi alguém ligado ao sistema que financiava a Aliança. Um homem casado. Político. Teresa sabia. Por isso ela me escondeu. Para não me entregarem como moeda de chantagem.
— Como descobriste?
— Um exame de DNA. Usei a base internacional de correspondência genética. Cruzou com dados de um homem chamado Álvaro Mendonça. Ex-deputado. Agora aposentado. Casado. Três filhos.
— Ele sabe?
— Ainda não. Mas… eu sei. E isso muda tudo.
— O que vais fazer?
— Não sei ainda. Mas pela primeira vez… sinto que pertenço a algum lugar. Mesmo que seja por um laço quebrado.
Na semana seguinte, o comitê sofreu um ataque político público.
Um jornal europeu publicou um editorial agressivo:
“A nova diretora Isabel Guarda mistura drama pessoal com políticas públicas. O comitê corre risco de virar palanque emocional.”
Jonas ligou no mesmo dia.
— Vais responder?
— Não com raiva. Mas com provas.
Escrevi uma carta aberta à imprensa.
*“Sou mulher. Sou mãe. Sou sobrevivente. E sim, sou política.
A dor não me tira a razão.
Ela me ensinou o caminho até ela.”*
O texto viralizou.
Mulheres de 17 países assinaram apoio.
Júlia voltou de uma conferência em Berlim com uma ideia ousada:
— Quero criar uma série documental com jovens de países que vivem sob opressão, mas que usam a beleza — e o corpo — como resistência. Chama-se: Despir Para Viver.
— E tu serás a narradora?
— Não. Quero que seja a Vivian.
Vivian arregalou os olhos.
— Eu?
— Tu tens a história. E tens a coragem.
Ela aceitou.
Pela primeira vez, sem hesitar.
Na noite anterior ao embarque de Lara para os EUA, sentamos na varanda.
Ela me olhou, emocionada.
— Promete que não vais deixar de me contar tudo?
— Prometo. Mas também prometo te deixar viver tua própria história.
Ela chorou.
— Amo-te tanto, mãe.
— E eu te amo mais do que sei explicar.
Vivian apareceu em silêncio.
Abraçou Lara.
— Vai. Mas volta inteira. Ou, se voltares partida… volta com coragem.
As duas se abraçaram como irmãs de alma.
Não por sangue.
Mas por escolha.
No aeroporto, Lara olhou para trás uma última vez.
— Este nome… Guarda. Agora é meu também, não é?
— É teu desde sempre.
Ela partiu.
E eu fiquei ali.
Com uma filha no avião.
Outra preparando sua estreia como narradora mundial.
E eu, mulher diante do mundo, mas filha de uma história que ainda me desafia a cada dia.
Naquela noite, sentei diante da janela com meu caderno e escrevi:
“Sou Isabel.
Carrego um nome feito de raízes e espinhos.
Minhas filhas florescem, mesmo nas pedras.
E eu?
Eu continuo.
Porque a história não termina.
Ela respira.
E me escreve de volta.”