Capítulo 65 : O que Herdamos sem pedir

O poder de contar histórias é também o poder de abrir feridas.

Vivian descobriu isso na pele quando seu primeiro episódio da série Despir Para Viver foi ao ar. Mostrava uma jovem síria que usava maquiagem como forma de resistência em campos de refugiados.

A repercussão foi imediata.

E dividida.

Apoio. Admiração.

Mas também ódio.

Acusações.

Ameaças.

Um grupo conservador publicou:

“Vivian Guarda — ou Martins, ou sabe-se lá quem — usa sofrimento alheio como escada para o estrelato. Sua dor não lhe dá licença para explorar a dos outros.”

Vivian trancou-se por dois dias.

Na terceira noite, bateu à minha porta.

— Eu não aguento esse peso, mãe.

— O peso não é teu. É da verdade. E a verdade não agrada todo mundo.

Ela sentou-se no chão, encostada na parede.

— Parte de mim ainda acha que não mereço estar aqui. Que minha vida inteira foi uma maquiagem mal feita.

Ajoelhei-me ao lado dela.

— Vivian…

Tu não estás aqui por pena.

Estás aqui por escolha. Tua. Minha. Nossa.

Tu não és uma farsa.

És um recomeço.

Ela me abraçou. Forte.

E ali, soube que ainda éramos fortes — mesmo sob ataque.

Enquanto isso, Lara me enviou uma mensagem dos EUA:

“Mãe, vais achar isso louco… mas encontrei alguém do meu passado. Alguém que achei que nunca mais veria.”

Liguei imediatamente.

— Quem?

— Um professor da oficina de escrita que fiz aos 17 anos em Lisboa. Leandro Costa. Ele foi quem me encorajou a publicar o primeiro conto. Está dando aulas na universidade onde estou agora.

— E como foi o reencontro?

— Intenso. Ele disse que me reconheceu imediatamente. Que leu meu livro. E que quer conversar mais…

— Estás bem com isso?

— Estou curiosa. E com medo.

— O medo, às vezes, é só o corpo avisando que algo importante está pra acontecer.

No meio disso tudo, recebi um chamado inesperado de Genebra.

A diretoria do Comitê me convocava para uma reunião confidencial com uma historiadora francesa chamada Anne Veyron.

— Ela encontrou arquivos pessoais de Teresa Guarda — disse Vera ao telefone. — E segundo ela… tua mãe escondeu mais do que cartas.

Na sala de reunião, Anne abriu uma maleta antiga. Dentro, pastas amareladas, fotografias, mapas desenhados à mão e um diário.

— Encontramos isso numa casa abandonada na fronteira da França com a Suíça. Era usada como ponto de encontro de resistência política nos anos 80.

— E minha mãe…?

— Era uma das líderes secretas. Sob o pseudônimo “Lis” — como a flor. E ela fazia mais do que proteger mulheres.

— O que mais?

Anne tirou uma fotografia.

Era Teresa… segurando nos braços uma criança pequena.

Mas não era eu.

Nem Lara.

Nem Vivian.

— Quem é essa criança?

Anne hesitou.

— Não sabemos. Mas havia anotações sobre um abrigo clandestino. E um nome repetido: “Santiago-Menina 04”.

Meu coração acelerou.

— Estás a dizer que minha mãe escondeu… mais uma criança?

— Talvez sim. Talvez alguém que hoje esteja viva, sem saber de nada. E talvez alguém que ainda esteja sendo procurado.

Voltei para casa atordoada.

Jonas me esperava.

— O que foi?

— A história da minha mãe… não acabou. Nem começou onde eu achava.

Contei tudo.

Ele ficou em silêncio.

— E vais atrás dessa criança?

— Como não ir?

Vivian me ouviu atentamente quando compartilhei a descoberta.

— Se essa criança ainda existe… então não somos duas. Somos três.

— Não sabemos ainda.

— Mas saberemos. Porque se há algo que a Teresa nos deixou…

foi o dever de não calar mais nada.

Na última cena do dia, sentei na varanda com meu caderno.

A página em branco, pela primeira vez, não me assustava.

Escrevi:

“Ser filha é aceitar que a história não começa contigo.

Mas talvez termine nas tuas mãos.

E se houver uma nova irmã…

Que ela nos encontre inteiras.

Porque agora…

não fugimos mais.”