Evoluindo

O treinamento era difícil, mas não queria mesmo desistir.

Pelo menos era isso que eu dizia para mim mesmo.

Já estava andando pelos campos do Instituto, enquanto a noite estava chegando.

Era domingo, e passei meu final de semana inteiro treinando. Meu corpo estava doendo em todos os lugares possíveis.

Achava que matemática era difícil, mas aprender com a dor é mais do que psicologicamente exaustivo.

Por sorte, Deus deu inteligência ao homem para criar essa coisa maravilhosa aqui.

Nas minhas mãos eu tinha uma caixinha de analgésicos. O Dionísio me deu, e, sem dúvidas, essa foi a melhor coisa que ele fez por mim.

Não que eu nunca tenha usado analgésicos antes, mas esses aqui são diferentes.

Parecem mágicos, as dores sempre somem rápido, e eu me sinto tão bem, mesmo depois de tomar uma surra.

Hoje foi um dia bem especial para os alunos, parece que houve descontos em muitas lojas. Era algum dia de super promoções, ou algo assim.

Mas eu estou sem pontos, então só posso olhar os outros com coisas maneiras.

Quando o líder daqueles caras tinha me derrubado no chão, eu acabei perdendo a batalha, e metade dos meus pontos, que já não eram muitos. E o pouco que me sobrou?

Gastei tudo nesses últimos dias, viver é mesmo custoso. Mas acho que isso é ser adulto.

Tomar responsabilidade, aprender a viver sozinho, e fazer com que tudo isso seja algo decente.

Esse é o caminho natural que todos os humanos na terra seguem. Só não esperava ter que fazer isso aos dezesseis.

Para chegar ao dormitório, eu teria que passar por alguns trailers que estavam vendendo comidas.

Passa por eles enquanto estava com fome, e depois de ter um dia inteiro de treinamento, é sacanagem.

Não sobrou nada pra mim mesmo.

Queria passar rápido, então estava andando com bastante velocidade. Mas não sabia o quanto de energia estava gastando.

Isso só ficou claro quando sem querer, eu me esbarrei em alguém.

Nem vi quem foi, tinha muita gente indo e vindo, ela ou ele já tinha continuado o próprio caminho sem olhar para trás.

Mas foi aí que eu percebi, que treinar o dia todo com o estômago vazio, não era uma boa ideia.

Meus joelhos quase cederam, mas por sorte, eu tinha os fortaleci bem, então não cai.

Mas sentia a tontura. Meu corpo estava fraco demais para conseguir ficar em pé.

Eu cheguei perto de um muro, me apoiei nele para não cair.

Era difícil manter meu corpo firme, e só agora percebi que o Dionísio não me ofereceu nada para comer. E claro, eu não tinha comido nada antes.

Me sentei no chão com as mãos no rosto, tentando recuperar força para caminhar até em casa.

Acho que fiquei frustrado com essa situação. Finalmente podia começar a luta, mas não tinha nada para me manter.

Estou praticamente sem comida, não tenho pontos pra comprar nada, e roubar só me deixaria em uma situação pior.

É realmente incrível, quando eu finalmente dou um passo pra frente, automaticamente, ando dois pra trás.

Eu não consigo avançar em nada. Com esse já foram seis dias, e eu não cresci de forma alguma.

Minha situação não mudou. Ainda estou com problemas com pontos e comida, ainda sofro machucados todas as horas, e ainda estou me escondendo.

Ainda estou nas sombras, ainda com medo e pânico. Esperando que ninguém me veja, pois isso seria meu fim

E eu estava tão esperançoso no início do dia, agora estou na merda no fim dele.

Eu realmente não mudei, ainda estou na mesma situação. A diferença é que eu tenho o luxo de acreditar em algo diferente?

— Você está bem? —

Me assustei com a pergunta repentina, mas já tinha ouvido essa voz antes, sabia bem quem era.

Tirei minhas mãos do rosto para ver Dalila na minha frente, ela estava usando as mesmas roupas do dia em que nos conhecemos. Mas agora também vestia um blazer branco.

Ela estava com uma mão na cintura, e a outra segurando uma sacola, que estava atrás de sua costas.

Porque ela sempre parece estar fazendo pose?

— Minha pressão caiu, só estou descansando um pouco. —

Ela me encara como se estivesse me analisando. Sua expressão muda completamente, já sabia o que ia vim, só de ver o rosto dela me olhando ficava claro.

— Você é o garoto da pele boa para desenhar! —

Ela lembrou de mim rápido, mas foi por esse motivo. Essa garota ainda quer mesmo fazer isso?

— Sim, sou eu, e não, não vou deixar você desenhar na minha pele. —

Imediatamente vejo ela inflando as bochechas, enquanto me olhava com lágrimas no rosto.

Ela queria de todo o jeito, me fazer sentir mal por recusar esse desejo estranho dela.

— Você é muito mal, um egoísta, não sabe dividir. Deixa eu usar sua pele, por favor. —

E lá vem a faceta mimada e infantil que tanto me irrita. Não vou mentir, ela normalmente me encanta, mas eu perco isso toda vez que faz esse tipo de coisa.

Mas ela repentinamente para de agir como uma criança. Até fiquei surpreso, o que será que aconteceu?

— Eu já ia esquecendo, você quer hambúrguer? Tenho três aqui, mas aguento comer só mais um. Você não gostaria dos outros? —

Ok, eu aceito que essa moça é a fada da conveniência na minha vida. nas duas vezes que nos encontramos, eu estava em necessidade, e ela feio como a solução.

Por mais infantil que seja, ainda assim eu devo ser muito grato a essa desajustada.

— Você vai dar de graça? Qual é a pegadinha? —

Ela rir um pouco demais, não sei se ela é muito exagerada, ou se eu sou muito engraçado.

Não, é a primeira opção, sem qualquer suspeita de dúvida.

Sinto ela sentando ao meu lado, enquanto pegava um dos hambúrguer e, me entrega a sacola com os outros dois.

— Eu tinha combinado de vim com minha primas. Mas uma teve que resolver coisas com o “namorado” dela, e a outra teve problemas em existir. Agredida nessas duas? —

Existir? Como exatamente alguém tem problema com isso? Mas não me importava, devia ser só brincadeira dela. Agora estava mais interessado no meu hambúrguer.

Ele era daqueles grandes, e tinha muita coisa dentro. Provavelmente era um Xtudo de alguma lanchonete exagerada, se eu não tivesse tanta fome, nunca ia aguentar comer tanto.

— Então, a quanto tempo você está em “Santa Guerra”? —

Foi uma pergunta do nada, mas ela não parece ser o tipo de pessoa que fica em silêncio por muito tempo, então faz sentido puxa assunto.

— Agora já deve fazer três semanas, cheguei a pouco tempo aqui. —

— É, deu pra ver que você é novato. Então, o que tem achado daqui? —

Pelo olhar dela ficava claro, ela já tinha uma noção da minha resposta, que não era nada positiva. Se “Santa Guerra” tem lados bons, eu não os vi ainda.

— É uma verdadeira selva, uma em que os animais são constantemente colocados uns contra os outros.

Mas… acho que tem muito a ser aprendido aqui dentro. Não falo só das aulas, mas todo esse ecossistema é fértil em aprendizado.

Um do tipo lição dura, aquele que é esfregado com força e violência na sua cara. —

Acho que eu falei um pouco mais do que precisava. Mas pelo jeito ela gostou do que eu disse.

Pela reação, dava para ver um pequeno sorriso de concordância se formando em seu rosto.

— Você tem bastante ração, esse lugar é bom pra aprender. A maioria não pensa isso no entanto. —

Ela desviou o olhar para o chão, enquanto brincava com um graveto na terra.

Não sei bem o que está passando na cabeça dela agora, mas parecia ser algo pessoal.

Não sei bem o que falar, depois desses dias nesse lugar maldito, acho que perdi habilidades sociais. Não que elas fossem acima da média, mas ultimamente estou vivendo como um bicho.

— O meu pai trabalha aqui, na verdade, gerações na minha família trabalharam nesse lugar, é quase um legado ou negócio familiar para nós.

Tudo o que eu conheço e sei, está aqui dentro. Sei que não é o mais ideal, mas esse foi o único lugar que me foi permitido reconhecer como casa.

Desde pequena eu vivi com meus parentes dentro dos muros dessa escola, então eu só reconheço esse lugar. —

Esse foi um desabafo do nada, mas com certeza está ligado ao que eu falei.

Então ela viveu aqui desde de pequena? Ela cresceu cercada por esse caos todo.

E eu achando ruim essas três semanas aqui dentro.

Não consigo imaginar o que é crescer no meio de tudo isso, esse sistema parece disfuncional demais para uma criança está no meio.

— Eu sempre ouvi as pessoas falando mal do instituto, a maioria não gosta de sobreviver nesse sistema focado em brigas e violência.

Todos sempre têm do que reclamar. Não quero tirar esse direito de ninguém, mas essa bagunça toda, é tudo que eu conheço, nunca vi mais nada.

Então quando escuto que esse lugar é o inferno, eu fico bastante triste.

Tudo o que eu conheço, o tipo de vida que eu vivi, tudo isso é um absurdo horrível para outras pessoas. Enquanto para mim era o “normal”.

Então eu nunca gostei de ouvir os outros falando mal de Santa Guerra, mesmo que eles tenham razão. —

Ela respira fundo. Esse assunto parece delicado para ela, o que não é nem uma surpresa.

Mesmo que esse lugar seja o pior em que eu já estive, ainda é a casa dela. Ela parece ter um apego deturpado a esse lugar.

Então ela continua com sua fala.

— Os únicos que gostam deste lugar, são sádicos, malucos completos, ou só pessoas que já estão no topo.

A maioria, odeia esse lugar. Por que ele humilha e tirar tudo deles

Pela primeira vez nesses 18 anos, eu escuto alguém de baixo falar algo bom daqui.

Pode parecer estranho ou nada muito demais, mas significa algo para mim.

Me faz sentir um pouco menos no inferno. —

Ela termina a frase virando o rosto com um sorriso aberto e olho fechado. Até fiquei surpreso, eu tinha falado algo de bom desse lugar?

Achei que estava fazendo uma reclamação com um elemento otimista. Mas revendo minha fala, realmente parece que estou fazendo um elogio a esse lugar.

Talvez eu tenha levado o que o Dionísio disse, sobre aprender com a dor, um pouco a sério.

Pelo jeito, inconscientemente eu vejo, que esse sistema força você a melhorar ou se afundar de vez

E foi isso que me fez finalmente querer reagir a minha situação de vítima, o que é algo bom. Pelo menos eu acho que seja.

Por mais que eu reconheça isso, e veja esse sistema como algo bom, feito de uma forma bruta.

Duvido que muita gente cresça no meio dessa bagunça, a maioria deve apenas sofrer desnecessariamente, sem conseguir reagir.

Esse sistema não é justo o bastante para que todos evoluam. Mas também, qual é?

Seja aqui ou lá fora, nunca é o ideal, é quebrado e injusto.

Sempre vai ser difícil pra uns, e fácil para outros. Nunca vai ser bom pra todos, e alguém sempre se dá mal.

E pra nós que saímos prejudicados, demos só que aceita nossa situação inferior, e tenta mudar a realidade.

A diferença de lá fora e aqui dentro, é que Santa Guerra deixa isso claro que as coisas são assim.

Deito no chão mesmo, estava um pouco cansado. Por sorte a grama estava macia, então não fiquei muito desconfortável.

Essa conversa me fez pensar mais do que eu normalmente já faço.

Ela estava feliz, acho que eu dei algum alívio distorcido a realidade dela. Bom, fico feliz por isso.

Seu rosto voltou a mim, e com um sorriso ela volta a me perguntar.

— E você, já aprendeu alguma coisa? —

Essa é uma excelente pergunta. E como qualquer pergunta importante, eu não sei responder.

Eu realmente estou aprendendo algo? Porque não sinto que estou. Honestamente, eu sou a mesma merda de sempre, só estou acreditando que posso ser diferente do que antes.

Mas realmente aprendi algo que presta? Realmente tive alguma lição? Ou só estou me enganado ainda mais do que antes?

— Pra falar a verdade, não sei bem. Não sinto que evoluir muito, ou que melhorei em algo. Provavelmente não progredir em nada. —

Mais uma vez, ela estava me analisando por completo. Seu único olho parecia enxergar as profundezas da minha alma, até chegar a causar calafrios.

Ela virou o rosto para frente, seu olho fechado, e um sorriso nos lábios.

Parecia que ela sabia algo que eu não estava conseguindo descobrir. O sentimento de ser o único sem entender a situação, era evidente na minha mente.

— Você precisa ter mais paciência antes de ter certeza sobre isso, não dá para saber se você realmente está progredindo no início.

Às vezes pode demorar muito tempo até ter a certeza disso. Então, foque apenas em aprender e crescer.

Depois você ver se evoluiu ou cresceu nesse meio tempo —

Isso parecia só uma frase genérica, aquela coisa clichê de filme.

Mas ainda assim, acho que devia ouvir ela, Dalila com toda certeza, tem bastante conhecimento sobre esse assunto.

Respirei profundamente, enquanto absorvia o que acontecia à minha volta. Foco apenas na evolução, sem me preocupar se estou mesmo evoluindo.

Espera, agora que pensei nisso, não faz tanto sentido assim. Na verdade não parece fazer sentido algum.

Ela deve ter lido meus pensamentos, porque começou a rir já sabendo o que passava pela minha cabeça.

— Você sempre pensa demais nas coisas? Desse jeito vai ficar velho rápido demais —

Realmente meu mecanismo de defesa é raciocinar bastante sobre as coisas, talvez até desnecessariamente. Mas não gostei de como ela riu da minha cara agora.

— Se você está com dúvidas sobre sua evolução, eu vou dizer que está se preocupando à toa.

Só continua o que já tá fazendo, que vai evoluir —

Mesmo com ela falando isso, não conseguia me sentir seguro. A vozinha na minha cabeça não se cala, e continua me enchendo de dúvidas e ansiedades.

Ela se levanta do meu lado, estava tão imerso na conversa, que nem percebi que ela já tinha terminado o hambúrguer dela a um tempo.

Ela olha nos meus olhos mais uma vez, com uma mão na cintura, e a outra apontando para mim.

— Não se preocupe tanto, até mesmo porque, você despertou meu interesse. Quero ver até onde vai chegar, e eu sei que não vai me decepcionar.

Agora tenho que ir, amanhã vou ter um dia puxadíssimo. Até depois —

Ela se despediu com um aceno da mão virada de costas para mim, ação que também parecia ser uma posse.

Acho que ela é viciada em ficar posando para câmeras invisíveis.

Eu não costumo me dar bem com pessoas tão extravagantes, mas até gosto de conversar com ela.

Dessa vez sou eu quem levanta, já estava ficando tarde, e eu devo voltar para casa o quanto antes.

Determinação, fé, frustração e renovação. Esse foi um dia longo em, muito mais do que eu queria.

Preciso agradecer a Dalila. Vou me alimentar desses hambúrgueres por semanas.

Realmente preciso agradecer a ela por essa ajuda.

Acho que sou uma pessoa que desiste fácil, mas que também é motivada fácil.

Porque eu sou… tão volátil? Parece que já voltei ao início do ciclo.

Vai demorar quanto tempo até ir para merda outra vez?