"Hoje falaremos sobre fé... e sobre como até ela pode ser uma arma."
A voz da professora ecoou firme pelas paredes de mármore da sala D14.
Era a primeira aula de Teologia Mística, e o clima era tão sufocante quanto a aura que emanava da mulher diante da turma. Althea Vorn. Clériga de rank alto. Rosto sereno, cabelos dourados que brilhavam como fogo sob a luz das velas, e olhos violeta que pareciam atravessar sua alma. Diziam que ela podia detectar mentiras apenas respirando o mesmo ar que você.
Não era o tipo de pessoa com quem um reencarnado suspeito — como eu — queria chamar atenção.
"Meu nome é Althea. Sou vinculada à Deusa da Verdade e Soberania. Ao fim deste semestre, vocês aprenderão a distinguir fé verdadeira de pactos profanos. E sim — muitos de vocês estão mais próximos da corrupção do que imaginam."
Alguém engoliu seco. Eu também.
"Vamos começar simples. Nome, linhagem e intenção arcana. Você aí."
Ela apontou direto para mim.
"Você, de preto. Fale."
Levantei lentamente. A sala inteira virou para me encarar.
"Raven Arcnoir. Sem linhagem divina registrada. Classe: Runomante Arcano."
Ela franziu o cenho, andando em minha direção devagar.
"Você fala como quem esconde algo. Já foi tocado por entidades inferiores?"
"Não."
"Tem certeza?"
"Tenho."
Pausa. Silêncio. Tensão.
Ela fechou os olhos. Um leve brilho azul percorreu o colar em seu pescoço — um detector automático de corrupção. Em teoria, ele reagiria a qualquer influência maligna recente.
Nada.
Após alguns segundos, ela apenas acenou com a cabeça.
"Hm. Nada ativo. Mas seu nome... Raven Arcnoir... soa como um eco falso. Como se houvesse outro nome enterrado por baixo."
Travei por um instante.
Ela se virou para a classe.
"Lição número um: nomes importam. Eles carregam essência, e essência molda o fluxo. Se até um nome estiver corrompido, o destino o seguirá."
Voltou ao quadro de mana e começou a desenhar círculos com as runas de consagração.
Mas o incômodo ficou.
Aquela mulher... ela não me identificou como Han Siuk, mas chegou perto. Muito perto.
O sistema vibrou discretamente.
> [Afinidade com Althea: 2/100]
[Nota: Alta chance de detecção se houver proximidade contínua.]
Claro. Ótimo. A mulher com o poder de detectar mentiras na alma está no meu encalço e ainda quer me dar aula toda semana.
"Agora abram suas escrituras mágicas e vamos falar dos três Grandes Pactos Espirituais..."
Enquanto ela explicava a diferença entre vínculos sagrados e corrompidos, minha mente estava longe.
Lembrava dos sussurros da noite anterior.
Do garoto acorrentado sob as catacumbas da academia.
E, principalmente, da sensação de que minha alma estava sendo puxada em direção a ele.
Algo me dizia que meu destino aqui não estava apenas em sobreviver — mas em decidir se deixaria esse mundo em ordem ou em ruínas.
E para alguém com um nome roubado, um corpo amaldiçoado e um pacto pendente… a escolha talvez já estivesse feita.
O sinal tocou, marcando o fim da primeira aula. Os alunos começaram a se levantar, ainda comentando sobre a intensidade de Althea e os perigos dos pactos impuros. Alguns pareciam genuinamente assustados. Outros, apenas entretidos.
Eu permaneci sentado por mais alguns segundos. Sentia o peso do olhar de Althea ainda cravado nas minhas costas, mesmo que ela já tivesse saído da sala.
— Você ficou bem quieto — disse uma voz familiar ao meu lado.
Era Yuma, a maga de olhos âmbar e língua afiada. Ela se sentou casualmente na minha mesa, como se aquilo fosse natural.
— E você continua se metendo onde não deve — respondi, olhando para o lado sem encará-la direto.
— Ora, eu só gosto de observar pessoas interessantes. E você é um livro trancado com sete cadeados. Mas... um deles parece estar se abrindo — ela sorriu, como se soubesse mais do que devia.
— Fala logo o que quer.
Ela se aproximou, sussurrando baixo.
— Ouvi boatos. Sobre alguém que apareceu no setor proibido ontem à noite. Dizem que selos antigos vibraram. Que uma entidade acordou. Curioso, não?
Minha espinha gelou.
— O que isso tem a ver comigo?
— Nada. Por enquanto — disse, se afastando com aquele ar provocativo. — Mas cuidado, Han Siu—
Ela parou no meio da frase. Me encarou com um olhar penetrante, como se tivesse cometido um erro... ou acertado demais.
— O quê? — perguntei, tenso.
— Nada. Me confundi — deu de ombros, mas o brilho nos olhos dizia o contrário. — Até mais, Raven Arcnoir.
Ela se foi antes que eu pudesse responder.
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Mais tarde, ao anoitecer…
A noite caiu como uma cortina negra sobre a Academia Ludik. O campus se esvaziava aos poucos. Mas eu não voltaria ao dormitório.
Meu foco estava no subsolo, na câmara que encontrei por acaso — ou por destino.
As paredes da antiga seção eram cobertas por runas que brilhavam fracamente com minha aproximação. Era como se o local me reconhecesse. Como se chamasse por mim.
Passei a mão sobre a parede marcada com o símbolo do Olho Triplo. Um clique sutil. A passagem se abriu novamente.
E lá estava ele.
O garoto preso por correntes mágicas, inconsciente, flutuando no centro de um círculo invertido de invocação.
Seu corpo era pálido, quase translúcido. Cabelos prateados como névoa, e símbolos em chamas roxas percorrendo sua pele.
De repente... seus olhos se abriram.
— Então você voltou, Han Siuk — murmurou ele, com uma voz que ecoava dentro da minha cabeça.
E foi aí que tudo realmente começou a desmoronar.
As correntes estavam se rompendo uma a uma.
O tempo estava acabando.
O garoto arfava, os olhos oscilando entre a consciência e a escuridão devoradora. As runas em minha pele começaram a queimar — como se algo dentro de mim respondesse à presença dele.
— Você disse que precisamos um do outro... — murmurei, erguendo a mão.
A magia reagiu de imediato. As runas no chão giraram como engrenagens ocultas, e uma energia negra e violeta se elevou entre nós, tomando forma de um círculo flutuante.
— Se esse pacto me amaldiçoar, vou te arrancar de dentro de mim com minhas próprias mãos — avisei.
Ele sorriu. Mesmo à beira do abismo, ainda havia humanidade naquele sorriso.
— Eu já estou em você, Han Siuk. Só falta você aceitar.
As palavras saíram com naturalidade, como se sempre estivessem dentro de mim:
— Pelo pacto de alma, pela runa ancestral, pelo eco entre mundos... que tua essência se una à minha. Do abismo para a carne. Do espírito para a força. Pactuamos!
O mundo explodiu em silêncio.
Luz. Escuridão. Gritos. Ecos antigos sussurrando em uma língua que não era feita para ser ouvida.
O garoto se desfez em partículas negras e douradas, como poeira celestial contaminada por um erro. Elas se fundiram ao meu peito, queimando, absorvendo, marcando cada célula com poder puro e indomado.
[Pacto Formado: Herdeiro da Fenda Abissal]
[Subclasse Desbloqueada: Filho do Esquecido]
[Nova Runa Adquirida: Devoração de Essência]
[Nova Passiva: Olhar da Fenda]
[Condição Oculta: Coração Compartilhado]
Minha mente quase desmaiou com o turbilhão de informações, mas antes que pudesse cair, ouvi passos descendo pelas escadas de pedra.
Não havia tempo.
Usei a nova habilidade instintivamente — as sombras me cobriram como uma capa viva, e me deslizei pelos cantos da câmara até emergir por uma das passagens secretas, escondida entre duas colunas.
A fuga foi um borrão. A respiração descompassada. O corpo vibrando com energia recém-fundida. Consegui retornar ao dormitório segundos antes de alguém abrir a entrada da câmara proibida.
Joguei o manto por cima da cama, deitei e encarei o teto, suando frio.
— Que merda eu acabei de fazer...
Mas a resposta não veio de fora. Veio de dentro.
Você deu o primeiro passo, Han Siuk.
E então tudo escureceu.
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Dia seguinte.
A luz atravessava a janela, e minha cabeça latejava.
As notificações do sistema ainda vibravam nas bordas da minha visão, mas antes que eu pudesse organizar tudo, ouvi um som.
— Han Siuk?
Virei o rosto. Ela estava lá.
Yuma.
A garota da Classe S.
Com olhos curiosos e postura elegante, ela me olhava como se quisesse entender algo.
— Você está bem? Pareceu distraído desde que o intervalo começou...
Olhei para ela. Pela primeira vez, notei como o brilho nos olhos dela escondia uma inteligência afiada. Como se ela soubesse mais do que deixava transparecer.
— Eu só... não dormi direito — respondi.
Ela se aproximou, sentando ao meu lado no banco de pedra sob a árvore.
— Você tem uma aura estranha hoje — disse, com naturalidade surpreendente. — Como se estivesse carregando dois corações em um corpo só.
Meu sangue gelou.
Ela sorriu de leve.
— Não se preocupe, Han Siuk. Eu gosto de pessoas complicadas.