O silêncio após a batalha era mais ensurdecedor do que o próprio combate. A poeira dourada do Can Ceris ainda pairava no ar, cintilando sob a luz azulada das runas adormecidas. O cheiro de mana queimada e pedra antiga impregnava o ar.
Eu me aproximei lentamente do que restou do guardião.
“Ossos de um ser tocado por um deus…”
Toquei os restos ósseos com cuidado. Mesmo após a morte, o corpo ainda exalava uma pressão sutil. Uma aura de julgamento.
— Vou levar isso comigo. Pode ser útil… ou necessário — murmurei.
Você obteve: Ossos Dourados do Vigia Can Ceris (Item Raro – Divino).
Guardei os ossos com cuidado no inventário dimensional.
Me levantei, virei para os outros.
— Escutem — falei com a voz firme, chamando a atenção de todos. — Quero que vocês subam agora. Encontrem o professor de Teologia Arcana, o velho Mendral, se ele ainda estiver vivo.
— O que? Você vai ficar aqui sozinho?! — Sasha perguntou, alarmada.
— Não seja idiota — disse Yuma, franzindo a testa. — Pode haver mais armadilhas… ou criaturas.
Assenti com um leve sorriso. — Justamente por isso. Se algum de vocês morrer agora, esse lugar vai se tornar uma cova coletiva. Mas eu conheço esse caminho melhor do que qualquer um aqui. Eu vou mais fundo sozinho.
— E o que fazemos com o professor, se acharmos ele? — Lee Han perguntou, sério.
— Leve-o direto ao diretor — respondi. — Não entreguem a mais ninguém. A corrupção aqui está enraizada demais para confiar cegamente em alguém.
Eles trocaram olhares. Eu sabia que ainda havia dúvidas, mas agora... eles me escutavam. Confiavam.
Yuma suspirou, irritada. — Você tem até o pôr do sol. Se não voltar... eu mesma vou descer te arrastar pelos cabelos.
— Justo — sorri.
Ela corou levemente e virou o rosto.
Sasha deu um aceno breve. Lee Han me encarou por um momento antes de virar e guiar as garotas escadaria acima.
A luz das tochas se afastando deixou a tumba em penumbra.
Sozinho.
Finalmente.
Agora, sem ninguém me observando, pude deixar minha expressão cair. A tensão nas costas se aliviou um pouco, mas não completamente. A tumba ainda pulsava. Algo adormecido chamava lá embaixo.
“Ato 1… não era só sobre os magos negros. Isso aqui é mais fundo. Mais antigo.”
Ativei a [Leitura de Fluxo].
O chão respirava mana. As paredes tremiam sutilmente, como se estivessem selando alguma coisa... ou esperando que alguém quebrasse o selo.
— Vamos ver o que você estava guardando, Can Ceris — murmurei, seguindo o corredor que havia se aberto após sua derrota.
A cada passo, as runas antigas no chão piscavam em tons violetas e escuros. Marcas esquecidas. Idiomas que nem mesmo o mundo atual conhecia mais. Mas eu conhecia. O autor original deixou tudo lá, escondido no fundo do capítulo 98.
Desci.
Um novo sussurro me alcançou.
Não era em palavras, era em sensação.
Fome.Dor.E um convite.
“Bem-vindo, Herdeiro da Fenda.”
Sorri, mesmo sentindo um arrepio percorrer minha espinha.
— Vamos ver o quão fundo essa toca de coelho vai.
A descida parecia não ter fim.
Mesmo com [Percepção Abençoada] ativada, o fluxo de energia à minha volta se tornava cada vez mais denso e distorcido. Mana sagrada e maldita se misturavam, formando um ambiente instável, sufocante. O silêncio ali era antinatural. Nem mesmo o som das minhas pegadas parecia existir.
Logo, o túnel se abriu em uma ampla câmara circular, coberta por estátuas partidas e inscrições banhadas por uma luz púrpura fantasmagórica. No centro, havia um pedestal envolto por correntes de ébano, e nelas, cravada até o cabo...
…estava uma espada.
Mas não era uma arma comum. Ela parecia viva. A lâmina pulsava com energia vermelha, como se respirasse. Seu núcleo era escuro, e as bordas latejavam com um brilho escarlate que vazava como sangue evaporando.
“A Espada da Devoção Profana… Draakil, a Ruína Esquecida.”
Essa arma...Era para o Lee Han. O protagonista da obra original.Mas não desta vez.
— Uma arma demoníaca... tocada por uma divindade que morreu sozinha no fundo do inferno. — Me aproximei lentamente. — Você deveria estar empunhada pelo herói do destino... mas esse destino agora é meu.
As correntes se moveram sutilmente, como se tivessem me sentido. A espada também reagiu. Vibrou levemente, como uma fera farejando seu novo mestre.
Sistema: Presença reconhecida – Herdeiro da Fenda Abissal.
Deseja reivindicar [Draakil, a Ruína Esquecida]?
— Sim. — Estendi a mão.
As correntes se desfizeram como poeira, dissolvendo-se em um manto de fumaça negra. A espada flutuou até minha frente e, lentamente, se virou com a lâmina apontada para mim — uma última prova. Se eu hesitasse, ela me perfuraria.
Mas eu não hesitei.
Segurei o cabo com firmeza.
Sistema: Nova Arma Adquirida — [Draakil, a Ruína Esquecida] (Rank Único).
Efeito Passivo: Sangue e Ruína — Cada inimigo derrotado aumenta temporariamente o poder da espada.
Efeito Ativo: Devoção Profana — Você pode sacrificar parte do próprio HP para romper escudos mágicos ou quebrar maldições.
Restrição: Apenas empunhável por portadores de Pactos ou Corações Corrompidos.
A espada aceitou minha presença. Uma onda quente e sombria percorreu meu braço até o peito, como se a arma tivesse gravado meu nome em sua lâmina.
— Agora sim... estou pronto.
O caminho de volta não estava mais tão silencioso. A tumba parecia satisfeita. Como se aquele artefato precisasse encontrar seu verdadeiro dono para se aquietar.
Sistema: Missão Oculta — “O Portador da Ruína” ativada.
Objetivo: Use [Draakil] para eliminar ao menos 3 Magos Negros do Ato 1.
Recompensa: Habilidade Secreta (Desconhecida)Penalidade por falha: Contaminação da Alma
Sorri.
— Sempre tem uma penalidade, né?
Desativei o fluxo de mana da palma, e a espada demoníaca desapareceu no instante seguinte. Partículas negras com veios escarlates foram sugadas para dentro do círculo rúnico do meu armazenamento dimensional.
Uma relíquia única, ligada ao Culto da Fenda. E originalmente... era para ser do protagonista.
“Desculpe, Lee Han,” pensei, encarando a runa que se fechava lentamente. “Mas dessa vez, a história tem outro dono.”
Me virei, deixando a câmara ancestral para trás. O silêncio era espesso, mas sentia no ar uma agitação mágica. Algo estava acontecendo lá em cima.
E não era coisa pequena.
Subi as escadas desgastadas com pressa, atento a qualquer distúrbio no fluxo de mana. A energia no ambiente estava agitada, como se múltiplos dons divinos estivessem em conflito.
Quando alcancei o último patamar e me aproximei da entrada da sala ritualística, vi o espetáculo.
Um clarão dourado cruzava o teto em espiral, entrelaçado com gelo prismático e brasas negras em forma de serpente. O som de uma prece corrompida ecoava nos últimos estertores de um homem desesperado.
O professor de Teologia — ou melhor, o apóstolo disfarçado do Culto do Sol Negro — recuava aos tropeços, coberto por ferimentos mágicos. Em torno dele, os quatro se mantinham firmes.
Lee Han, com o Leão Solar das Mil Auroras ao lado, rugia com sua espada banhada em luz purificadora. Sasha, montada no Cavalo Abissal de Drahmir, disparava estacas flamejantes que dobravam o chão. Yuna controlava os fluxos de mana para proteger os outros com barreiras de dispersão mágica.
E ao lado de Leena, o Kitsu de Sangue Primordial canalizava um turbilhão gélido com suas nove caudas cintilantes.
Tudo aquilo parecia uma pintura viva.
Mesmo assim… havia tensão. O professor conjurava círculos invertidos, tentando capturar os familiares. A sombra de um selo absoluto começava a surgir sob seus pés — uma armadilha de aprisionamento.
Eles estavam fortes, mas era óbvio: se ele tivesse mais trinta segundos…
Dei um passo à frente.
— [Estouro Dimensional].
A minha presença explodiu pelo salão em um clarão púrpura. O ar ondulou, interrompendo os feitiços sombrios do professor. Os olhos dele se arregalaram quando minha silhueta surgiu da penumbra.
— Você… — Ele rosnou.
— Tarde demais pra isso.
Meu Aetherling Abissal apareceu no meu ombro com um pio grave, e faíscas azuis ondularam no ar. Seus olhos — que refletiam galáxias — fitaram diretamente o selo sombrio.
— “Anule.” — sussurrei.
As brasas do selo falharam. O chão estremeceu, rachando sob a pressão invertida da minha mana. O professor cambaleou.
Foi o bastante.
— Aurora Final! — gritou Lee Han, ativando sua habilidade especial.
O Leão Solar rugiu, lançando uma rajada de pura luz celestial. Ela envolveu o inimigo como o nascer do dia engole a noite.
Um grito. Depois silêncio.
O corpo do professor caiu, parcialmente petrificado pelas runas de luz e gelo que Leena ativara ao mesmo tempo. Um cadáver que mal lembrava o homem que um dia fora.
A atmosfera ficou pesada.
— Você voltou — disse Sasha, sua voz oscilando entre surpresa e alívio.
— Justo a tempo — Yuna resmungou. — Já está virando hábito.
Assenti com um meio sorriso, o Aetherling ainda aninhado em meu ombro. As pequenas chamas ao redor dele dançavam como se compartilhassem minha satisfação.
Lee Han se aproximou, o semblante sério.
— Você... sabia que ele era um infiltrado?
— Sabia que alguém aqui seria. Só não esperava que fosse ele o primeiro.
Apontei para o símbolo invertido parcialmente queimado no chão.
— Marca do Sol Negro. Um culto antigo que manipula preces e dons divinos. Especialistas em possessão e falsos milagres.
— Isso explica o salmo estranho que ele tentou usar contra a Sasha — disse Leena, olhando de lado para os restos do selo. — Quase me pegou também.
— Mas não conseguiu — falei. — Vocês fizeram bem. Todos vocês.
Um silêncio respeitoso pairou entre nós. Pela primeira vez, mesmo Lee Han olhou para mim de forma diferente. Não como um colega qualquer.
Mas como alguém que eles precisavam ali.
Então, a notificação do sistema apareceu diante dos meus olhos:
[Sistema – Contribuição Atual no Ato 1: 19%]Você ultrapassou a marca mínima. Recompensas parciais serão garantidas.Classificação provisória: Ouro.
Mas não houve tempo para descanso.
Recebemos a convocação formal do diretor minutos depois de entregarmos os registros sobre o professor de Teologia.
**
A sala dele exalava autoridade. Mármores negros, livros selados com correntes, e um brasão flutuante da Academia pairando atrás de sua mesa.
— Vocês mataram um professor, — ele disse, a voz como pedra sendo arrastada. — E com razão.
O silêncio foi espesso.
— O cadáver foi examinado. Encontramos fragmentos de runas do Sol Negro costuradas sob a pele. Ele estava corrompido há muito tempo. Vocês evitaram um desastre.
Ele se levantou lentamente, aproximando-se da mesa com um pergaminho flutuando ao lado.
— Han Siuk, Lee Han, Sasha Luniz, Yuna Meriel. Seus nomes foram adicionados à lista de observação de mérito. Mas não confundam isso com proteção.
Seus olhos, vermelhos como brasas apagadas, focaram em mim por um segundo a mais do que o necessário.
— A missão de vocês está apenas começando.
O sistema reagiu no mesmo instante.
✅ [Missão Secundária Oculta – Vínculo Estratégico: Concluída]
Condições atendidas: Ganhou a confiança parcial de Lee Han sem levantar suspeitas.
Recompensa:
• +1 Runa Intermediária: Runa da Distorção Lógica (permite falsear uma verdade por até 10 segundos).
• +100 EXP
“Ótimo,” pensei, sentindo o calor da runa nova se alojar no grimório oculto em minha palma. “Um trunfo perfeito para blefes.”
— Próximo alvo? — perguntou Lee Han direto, já cruzando os braços.
Assenti, ativando a interface oculta do sistema que apenas eu conseguia ver.
[Missão Principal – Ato 1 Ativo]
Agente Eliminado: 1/3
Alvos Restantes:
• Assistente da Ala Médica (atividade incomum com reservas de sangue).
• Aluno da Classe A – Deren Vayel (manipulação de mana negra).
Tempo restante: 13 dias.
— Temos dois alvos — comecei. — Um dos assistentes da ala médica está acessando componentes de rituais de sangue. E Deren Vayel... é pior do que parece. Ele está reunindo mana negativa em plena luz do dia. Ou é descuido, ou ele já não se importa.
Sasha cruzou os braços.
— Acho melhor começarmos pelo da ala médica. Menos olhos por perto. Podemos fingir uma emergência e ver como ele reage.
— Concordo, — disse Yuna. — E se for uma armadilha... bom, estamos mais preparados agora.
— Vamos nos separar por um tempo — sugeri. — Quem estiver comigo vai fingir estar doente. Os outros circulam a área, checando se há selos ou portais ocultos.
Lee Han apenas assentiu. Pela primeira vez, ele não questionou meus comandos.
**
Antes de sair, voltei ao dormitório por alguns minutos.
Usei aquele tempo para estudar a estrutura da ala médica da academia — no livro que o Han Siuk original guardava — e memorizar os fluxos de mana internos. Aquele prédio tinha dois andares ocultos.
Perfeito.
**
Meus olhos voltaram àqueles nomes. Dois alvos. Duas peças podres no tabuleiro da Academia.