O céu escurecia, cobrindo a vila com nuvens densas. Leo treinava no campo de terra, seus movimentos precisos, moldados pelo rigoroso treinamento com Kael. Cada golpe era limpo, cada respiração, controlada.
Então, a porta da casa de Galan se escancarou com um baque.
— Pai!
Era Aron, o filho mais velho, sangue escorrendo de um arranhão profundo no braço. Atrás dele, duas crianças choravam, e um terceiro tremia, em silêncio.
Leo correu até a entrada. Galan já segurava o ombro do filho.
— Fomos brincar perto da clareira! Eu sei que o senhor disse para não irmos, mas parecia seguro... Até que o leão apareceu! Era enorme! Atacou a gente! Nós corremos, todos nós...
— E a Sarah? — Galan interrompeu, o sangue sumindo do rosto.
O menino hesitou, olhos arregalados.
— Ela ficou para trás! Não conseguimos levá-la! O leão a atacou, pai! Eu não consegui...
Judith, que ouvira tudo do batente da porta, levou as mãos à boca, em choque.
— Temos que chamar a Patrulha Escarlate! Eles precisam encontrar a Sarah!
Galan se virou bruscamente para ela, a voz embargada pela raiva e frustração.
— Você não entende? Ninguém mais patrulha as vilas pobres, Judith! Eles estão na fronteira, lutando contra os Draverns... Só os ricos têm proteção agora.
O silêncio caiu como uma sentença. Leo, paralisado, sentia o sangue ferver. O nome dela ecoava na sua mente como um sino de alarme.
Sarah. Aquela que nunca o deixava sozinho. Que ria, mesmo quando ele era seco com ela. Que um dia disse:
— Você finge ser forte, mas eu gosto do seu jeito, afinal, você é um dos meus irmãos, né?
Sem dizer nada, Leo saiu correndo. Galan tentou detê-lo, mas o garoto já desaparecia na escuridão da floresta.
Galan estranhou a distância que uma criança podia correr, mas, ao ver que Judith já cuidava de Aron, não hesitou — partiu atrás de Leo.
A Corrida
A floresta era um labirinto de troncos molhados, folhas densas e um silêncio ameaçador. A chuva começou a cair, fraca, aumentando a tensão no ar.
Enquanto corria, Leo tentava lembrar... O leão havia seguido para o leste — ele viu as pegadas naquela direção. Por um instante, sentiu alívio, acreditando que a ameaça estava longe. Mas agora...
A clareira onde Sarah estava era a oeste. Longe demais. Muito longe das últimas pistas.
Por que o leão estaria lá? Não fazia sentido. Não podia fazer sentido.
"Foi um erro... meu erro... Eu não posso perdê-la por minha culpa. Não posso. Não posso."
A culpa apertava o peito mais do que o medo. Cada passo não era guiado pela coragem, mas pelo desespero.
A Clareira
Leo chegou à clareira. O leão rondava a área onde Sarah estava, com fúria animal nos olhos. Ela jazia caída, mas ainda respirava, encolhida dentro de uma cabana abandonada, que já havia sido usada por caçadores da região. A porta de madeira, velha e frágil, ainda resistia aos ataques da fera, mas não por muito tempo. O leão golpeava-a com garras poderosas, fazendo-a ranger e tremer.
Sarah tentava se proteger com o que podia, assustada.
Leo gritou:
— Sarah! Fique calma, eu vou tirar você daí!
Ela olhou para ele, olhos grandes, tomados pelo medo, mas ainda com uma centelha de esperança.
— Corre, Leo! — ela implorou, sem forças.
O leão ouviu o grito, virou-se, fixando Leo com olhos de ódio ardente. Rugiu e avançou com velocidade impressionante, garras prontas para matar.
Leo empunhou a espada. Fechou os olhos. A voz de Kael ecoou em sua mente:
"Espere. Observe. Quando ele pensar em atacar, você já saberá."
Ele gritou:
— Leão! Aqui!
A fera virou-se. Rugiu. Saltou.
Leo desviou. O impacto rachou o chão sob seus pés.
Girou e atacou. A lâmina raspou o pelo da fera. O leão contra-atacou, uma pata rasgando o peito de Leo de lado a lado.
Ele caiu, ofegante. O mundo girava.
Levantou-se cambaleante. A dor era insuportável, mas a lembrança de Sarah o manteve firme.
O leão rugiu de novo e avançou.
Leo desviou, mas não rápido o suficiente — as garras abriram um corte profundo em sua perna.
Ele caiu de joelhos.
"Você vai morrer com um golpe bobo..." ecoava a voz de Kael.
"Levante. Olhe. Veja a abertura."
O leão rugiu e saltou para o golpe final.
Com o corpo destruído e os olhos em transe, Leo viu a intenção.
A mente clareou.
Silêncio absoluto.
No instante do ataque, ele se moveu. Girou com tudo que tinha. A lâmina improvisada atravessou o pescoço da fera, rasgando carne, músculo e orgulho.
O leão cambaleou. Um segundo de silêncio.
E caiu.
Leo virou-se para Sarah, olhos pesados, mão ensanguentada.
— Eu disse... que não deixaria ninguém morrer.
Mas, ao dar um passo, seu corpo cedeu. As pernas fraquejaram. Ele desmaiou.
Acordar
Quando os olhos de Leo se abriram, uma luz suave iluminava o quarto. Estava deitado numa cama, peito e perna cobertos por faixas. O cheiro de ervas preenchia o ar.
Ao redor dele, a família de Galan, incluindo os irmãos de Sarah, observava em silêncio. Quando Leo despertou, Sarah estava ao seu lado, olhos marejados.
Ela correu e o abraçou forte, um abraço que selava todo o medo e dor do momento.
Uma lágrima deslizou pelo seu rosto.
— Você... você me salvou, Leo.
Com a voz fraca, ele respondeu:
— Eu não deixaria você morrer...
Reflexão
O quarto estava mais vazio agora. Sarah havia sido levada para descansar. Leo, ainda na cama, respirava fundo, olhos fixos na madeira do teto.
A porta se abriu devagar. Galan entrou.
Parou ao lado da cama e o observou por alguns segundos. Seu rosto estava duro, contido, mas os olhos carregavam uma tempestade.
A voz saiu ríspida:
— O que você fez foi estúpido. Inconsequente. Você podia ter morrido, Leo.
Leo permaneceu cabisbaixo, sem tentar se justificar. Sabia que Galan tinha razão.
— Você saiu no meio da chuva, sozinho, contra um maldito leão. Isso não foi coragem, foi suicídio.
O silêncio ficou pesado.
Galan suspirou, longo e trêmulo. Os olhos se encheram de lágrimas.
Leo continuava sem encará-lo, até que sentiu uma onda quente, forte, um aperto no peito.
Quando abriu os olhos, era Galan, o abraçando.
Forte. Desesperado.
— Você... é como um filho pra mim, Leo. Se algo tivesse acontecido com você... eu não saberia como continuar.
Leo sentiu algo que não conseguia explicar. Um nó na garganta. Um calor nos olhos.
Não disse nada. Apenas fechou os olhos e deixou o momento acontecer.
Galan respirou fundo, ainda segurando-o, e completou com a voz embargada:
— Mas... obrigado. Por ter salvo ela. Por ter voltado. Por não ter deixado ninguém para trás.
Leo murmurou, quase num sussurro:
— Eu só... não quero perder mais ninguém.
E assim ficaram. Dois corações calejados. Um abraço silencioso que dizia mais do que mil palavras.
Algum tempo depois, já com Leo dormindo, Judith entrou devagar no quarto, trazendo uma toalha e uma tigela com água morna.
— Ele está melhor? — perguntou em voz baixa, olhando para o garoto.
Galan assentiu lentamente, mas o olhar estava distante, perdido em pensamentos.
— O que foi? — perguntou Judith, percebendo sua expressão.
Ele demorou para responder, como se ainda processasse suas próprias memórias.
— Quando fui atrás deles... — começou, com a voz rouca — quando cheguei perto da clareira... algo estranho aconteceu.
Judith se aproximou, atenta.
— Vi um clarão azul. Forte. Como se o ar tivesse rasgado por um instante. Quando encontrei os dois... eles estavam desmaiados, mas... as feridas... — ele pausou, olhando para as faixas no corpo de Leo — estavam muito mais leves do que deveriam. Menores até que as do Aron.
Judith franziu a testa, tentando entender.
— Você acha que alguém ajudou?
Galan balançou a cabeça devagar, incerto.
— Não sei. Mas aquele clarão... não era natural. Não havia ninguém por perto. Nenhum rastro. Só eles dois... e aquela sensação estranha no ar.
Judith sentou-se ao lado dele, preocupada.
— Acha que foi magia?
— Se foi... não foi como a marca dos Escalartes. Mas algo aconteceu ali. E... não foi só coragem que salvou os dois.
O silêncio voltou a dominar o quarto. Lá fora, a noite avançava. Lá dentro, apenas o som suave da respiração de Leo preenchia o espaço.
Judith passou a mão pelos cabelos do marido, tentando confortá-lo.
— Seja o que for... ainda temos ele. E temos ela. Isso é o que importa.
Galan assentiu, mas no fundo, o mistério do que realmente aconteceu naquela clareira pesava em seu coração.