O vento cortava como lâminas.
As montanhas do sul ficavam para trás, e diante deles, a vastidão desértica da Fronteira Dravern se estendia como uma ferida aberta. O chão seco, rachado, queimava sob os pés. Nada crescia ali. Nada vivo permanecia por escolha.
Galan ajustou a faixa de couro no braço. Estava nervoso, suando. Era uma missão simples, diziam. Patrulha de reconhecimento. Apenas para “intimidar presença”. Nenhum contato direto.
Mentiras.
— Você está tremendo — disse uma voz firme ao seu lado.
Era Darian, o irmão da Judith. Alto, robusto, olhos escuros como ferro frio. Já era um guerreiro de Classificação Um aos vinte e poucos anos. Sempre parecia inabalável.
— Eu só... não achei que ia ficar tão silencioso assim. É... estranho.
Darian olhava para o horizonte.
— O silêncio é o pior sinal.
Eles estavam em seis. Dois da elite. Quatro novatos.
Darian deu um passo adiante, os olhos fixos numa formação rochosa ao longe.
— Aquilo ali.
— O quê?
— Movimento. Vinte graus à direita. Encosta baixa.Eles sabem que estamos aqui.
Galan engoliu seco.
— E agora?
— Agora você cala a boca e me segue.
Darian deu a ordem silenciosa de recuo. Era pra ser o fim da patrulha.
Mas foi o começo do massacre.
A primeira lança atravessou o pescoço de Harl, o mais novo. Ele caiu com um som horrível, olhos arregalados, sangue jorrando em espiral.
Não houve tempo para gritos. Só sons secos de passos, armas desembainhadas e respiração pesada.Os Draverns vieram das sombras — não como feras, mas como caçadores organizados. Rápidos, precisos, impiedosos.
Eles não gritavam.Não rugiam.Eles matavam.
Em segundos, metade do grupo de Galan estava no chão.
— Recua, Galan! Vai! — gritou Darian, fendendo o primeiro inimigo com sua espada larga.
— Mas você—
— AGORA!
Galan correu. O som metálico dos choques de armas ecoava às suas costas. Mas ele não correu rápido o suficiente.
Uma figura saltou à frente dele — olhos pálidos, pele acinzentada, máscara de osso. Um Dravern.
Galan tentou levantar sua espada, mas suas mãos tremiam. Era a morte. Ele sabia.
Então... veio o impacto.
Darian colidiu contra o inimigo com força brutal, esmagando-o contra as rochas.
Mas havia outro. E mais um.Darian virou-se, bloqueou um golpe, desviou outro, mas... já era tarde.
Uma lâmina atravessou seu flanco.Outra cortou sua perna.A terceira... cravou no peito.
Mesmo assim, ele sorriu.
— Corre, moleque.Cuida da minha irmã.
Foi a última coisa que disse.
Galan acordou com um sobressalto.
— DARIAN!
Sentou-se, suando. Ofegante. O coração martelando como se ainda estivesse fugindo. Ao seu lado, Judith despertou assustada.
— Galan… de novo?
Ele passou a mão no rosto, sem conseguir conter o tremor.
— Eu... Eu vi tudo de novo. O deserto. A rocha. O sangue...
Ela o envolveu num abraço. Ele tremeu nos braços dela.
— Eu não devia ter deixado ele. Não devia...
Judith o segurou mais forte.
— Você já me contou isso. Mas eu nunca te culpei. Nem ele culparia.
Galan encarou o teto. O peso daquele dia jamais desapareceria.
— Ele morreu pra me salvar...
— E por escolha. — Judith falou firme, e sua voz partiu um pouco ao final. — E mesmo sem estar lá... às vezes eu também sonho com isso. Com o sangue. Com o rosto dele.
Ela respirou fundo, e depois sussurrou:
— É como se, naquela hora, ele tivesse me deixado você como lembrança.
O sol nasceu. Mas Galan continuava em silêncio.
Sentado perto da mesa, com o pão intocado à frente, ele encarava o vazio.Do outro lado da casa, Sarah o observava em silêncio. Pequena, mas sensível, se aproximou devagar.
— Papai?
Ele piscou, saindo do transe. Sorriu fraco.
— Bom dia, minha luz.
— Por que você tá triste?
— Tô só cansado, querida. Só isso.
Ela inclinou a cabeça.
— É alguém que você gosta... tá ferido?
Galan se espantou com a pergunta.
— Como assim?
— Porque seu rosto... tá igual de quando o Leo se machucou. Igualzinho.
Galan ficou em silêncio por um instante. A garganta apertada.
Depois, a puxou para o colo e a abraçou.
— Não, meu amor. Ninguém está ferido. Só o coração do papai... que hoje lembra de alguém que ele gostava muito.
Sarah não disse nada. Só o abraçou mais forte.
Leo observava a cena, o silêncio pesado na casa. Sentia no ar o cansaço da guerra que se agarrava a todos eles.
Judith se aproximou e o abraçou por trás, com cuidado.
— O que você está olhando? — perguntou baixinho.
— O Galan... também senti que ele tá triste — respondeu Leo.
Ela o puxou suavemente para fora, até o jardim, onde o sol começava a aquecer a manhã.
— Quero te contar sobre meu irmão... — disse Judith, com a voz embargada. — As consequências da guerra são essas, Leo. Você não pode ser guiado só pelo desejo de matar.
Leo virou-se, os olhos acesos por um fogo contido.
— Você não entende, Judith. Não sabe o que eu carrego aqui dentro.
Ele apertou os punhos.
— Já perdi demais. Vi a morte de perto. Sei o que é sentir a falta de quem a gente ama. E dói... ver tudo continuar como se nada tivesse acontecido.
Judith desviou o olhar, tentando conter as lágrimas.
— Eu sei que dói. Também sinto. Mas não deixa essa dor te consumir. A vingança corrói. Apaga o que ainda é bom em nós.
Leo fechou os olhos com força. A imagem dos pais voltou como uma lâmina.
— Você não sabe! — gritou, com a voz trêmula. — Eu sinto medo, raiva, falta... tanta falta deles! Aquele homem da cicatriz... eu nunca vou esquecer! Ele levou tudo! A dor não vai embora, nunca!
Ele desabou, os punhos cerrados, chorando.
— Eu odeio tudo isso... tudo...
De repente, um frescor. Um alívio estranho. Quando abriu os olhos, sentiu Judith o abraçando. Ela também chorava.
— Você não percebe, Leo... Mesmo sem ser sua mãe de sangue, você é da nossa família. Eu já te considero um filho. E se você morrer, como a gente fica? A Sarah, o Milo... até o Aaron te vê como irmão. Eles precisam de você. Vivo.
Leo sentiu um nó na garganta. A rigidez no peito cedeu um pouco. Baixou a cabeça, respirando com dificuldade.
Então, mais braços os envolveram.
Sarah. Galan.
E ali ficaram. Juntos. Chorados. Silenciosos.
Família.