Episódio 1

EPISÓDIO 1 – O Menino do Carro Preto

Narrado por Isabela Monteiro

Eu tinha dez anos quando vi o menino que mudaria minha vida.

Mas, na época, ele era só isso: um menino bonito num carro caro.

Me chamo Isabela Monteiro, nascida e criada num bairro onde o sol queimava mais forte, a água faltava dia sim, dia não, e os sonhos… bem, os sonhos não duravam muito. Cresci vendo minha mãe transformar tecidos velhos em vestidos novos, esticando cada centavo para colocar comida na mesa.

Naquele dia, eu estava sentada na calçada de terra vermelha, com as pernas cruzadas e os pés descalços. Tinha acabado de ralar o joelho correndo atrás de um cachorro vira-lata. A dor ardia, mas eu já estava acostumada. O que eu não esperava era o som que ouviria a seguir.

Vruuuum.

O ronco de um motor diferente. Fino. Elegante. A rua nunca tinha ouvido algo assim.

Levantei os olhos.

Um carro preto, enorme, brilhando como se tivesse saído de um comercial de televisão, parou lentamente em frente à casa da dona Marlene, minha vizinha. Eu paralisei. Ninguém com aquele carro parava naquela rua. Era como se uma nave espacial tivesse aterrissado no meio da lama.

A porta de trás se abriu. E foi aí que ele apareceu.

Um menino. Alto, pele clara, cabelo preto bem penteado, camisa social branca e calça de alfaiataria. Devia ter uns treze, quatorze anos. Era bonito — bonito de um jeito que a gente não via por aqui. Tinha uma postura séria, olhos escuros, frios, como se enxergassem além da poeira que nos envolvia.

Ele me viu. Eu vi ele.

Por alguns segundos, nos encaramos. E foi estranho. Porque ele parecia tão fora de lugar, tão distante, e mesmo assim… naquele olhar, eu senti algo. Uma pergunta sem palavras, uma linha invisível puxando nossas histórias uma em direção à outra.

Mas ele desviou o olhar.

Não sorriu.

Não acenou.

Apenas ficou ali parado, olhando a fachada da casa, como se estivesse analisando o valor de uma coisa que ele nunca desejaria tocar.

Um homem mais velho, de terno e óculos escuros, saiu do banco da frente e se aproximou.

— Leonardo, fique perto de mim. Esse lugar não é seguro — disse o homem, com firmeza.

Foi assim que soube o nome dele. Leonardo.

O menino voltou o olhar pra mim por um último instante. Dessa vez, com um pouco menos de frieza. Algo em seus olhos mudou. Talvez curiosidade. Talvez pena.

Mas eu não baixei os olhos. Não sorri. Só fiquei ali, firme, com o joelho ralado e o coração disparado.

Então ele entrou de volta no carro. A porta fechou com um clique suave.

E o carro se foi.

Eu continuei sentada ali, com o graveto na mão e a respiração presa no peito. Não sabia o que tinha acabado de acontecer. Só sabia que jamais esqueceria.

Nos dias seguintes, voltei a sentar no mesmo lugar. Esperei.

Fingia que desenhava no chão, mas meus olhos estavam sempre na curva da rua.

Ele não voltou.

Os anos passaram. A menina cresceu.

E o nome dele — Leonardo Vasques — tornou-se uma sombra que me acompanhava mesmo quando eu tentava ignorar. Às vezes, eu sonhava com aquele dia. Com aquele olhar. E me perguntava o que teria acontecido com o menino do carro preto.

Talvez ele tivesse esquecido de mim no minuto seguinte.

Mas eu não.

Porque naquele instante em que nos encaramos, eu vi uma coisa que nunca esqueci: ele também se sentia fora do lugar. Mesmo com toda a riqueza, com todo o brilho, ele parecia… deslocado. Solitário. Triste, talvez.

E eu sabia como era isso. Sabia muito bem.

A vida, no entanto, não me deu tempo pra romantizar lembranças.

Aos dezessete, comecei a trabalhar como atendente de padaria. Aos dezenove, vendia flores na praça. Aos vinte e dois, já tinha três empregos e nenhum plano. Minha mãe ficou doente. Os remédios eram caros. Os exames, mais ainda.

Cada centavo que eu ganhava ia direto pro tratamento. Mas não era suficiente.

Foi então que tudo mudou.

Recebi uma ligação de um número desconhecido. Uma mulher de voz firme me chamou por nome completo, sabia onde eu trabalhava, onde minha mãe fazia tratamento, e terminou a ligação com uma frase que eu nunca vou esquecer:

— Há um contrato esperando por você, senhorita Monteiro. Uma proposta que pode resolver todos os seus problemas. Mas tem um preço.

Na hora, meu corpo gelou.

— Que tipo de proposta? — perguntei.

— Casamento — ela respondeu, sem hesitar. — Com um homem que não está procurando amor. Apenas uma esposa... temporária.

Achei que fosse piada.

Mas no fundo… alguma coisa em mim sabia.

Sabia que aquele momento tinha chegado.

Que aquele nome do passado voltaria como uma tempestade.

E eu estava certa.

Porque no fim, o homem do contrato era ele.

Leonardo Vasques.

O menino do carro preto.