Sabe aquelas histórias que você escuta e pensa: “isso nunca aconteceria na vida real”? Pois é. Eu também pensava assim... até que tudo virou uma daquelas histórias.
Era o ano de 2015. Lembro-me bem da manhã em que os portais apareceram. Estava na escola, entediado como sempre, quando o céu escureceu como se fosse noite e o ar ficou pesado, como se algo gigante respirasse bem sobre nós. No meio das grandes cidades do mundo inteiro, fendas azuladas começaram a rasgar o espaço, suspensas no ar como rachaduras em um vidro invisível. No topo de cada uma, um cronômetro digital congelado em 72:00:00. Parado. Silencioso. A própria presença deles já mudava tudo.
E então... eles começaram a contar.
71:59:59
Com o início da contagem, uma onda de energia varreu a Terra. Pessoas começaram a gritar, desmaiar, ver símbolos flutuando diante dos olhos. E então, o Sistema apareceu. Telas, como interfaces de jogos, se abriram para alguns. Linhas de status, atributos, habilidades. Despertares. Cada um recebeu um poder, como se fosse aleatório, mas... parecia que havia lógica por trás. Uns criavam fogo, outros gelo. Magia. Invocação. Manipulação de energia, de elementos, de sangue, de sombra...
Parecia um sonho. Mas logo virou pesadelo.
“Dungeon dos Iniciantes iniciada. Caçadores devem completá-la antes do tempo acabar, ou a calamidade será liberada.”
A mensagem brilhou nas telas de todos que despertaram. A primeira Dungeon abriu, e com ela, o pânico.
Quem entrou... se tornou lenda. Os primeiros caçadores, hoje, têm seus nomes eternizados. Mas o que ninguém fala é dos que ficaram para trás. Dos que não despertaram. Dos que receberam habilidades consideradas inúteis.
Como eu.
Quatorze anos se passaram desde então.
— Argh! — exclamei, cuspindo sangue na calçada.
Meus olhos estavam semiabertos, o corpo dolorido. Três garotos riam enquanto me chutavam e xingavam. Um deles segurava minha mochila.
— Você disse que ficou mais forte, não foi? Sua habilidade física de merda não serve nem pra levantar da calçada! — disse um, com escárnio.
Não respondi. Já sabia como acabava. Fingir que doía menos não me ajudaria, mas mostrar fraqueza também não mudaria nada.
— Bruno, acho que ele precisa de mais um empurrãozinho. — provocou outro.
Bruno, o valentão da escola, apenas cuspiu no chão e se afastou.
— Já deu. Vamos procurar alguém que valha a pena.
Eles me deixaram ali, jogado como um saco de lixo velho. E eu fiz o que sempre fazia: respirei fundo, limpei o rosto e fui embora.
— Melhor ir pra casa... — murmurei, sentindo a dor latejar.
Enquanto andava, falava sozinho. Já era um hábito. Talvez fosse meu jeito de aguentar tudo. Talvez fosse só loucura mesmo.
— Todo mundo quer soltar feitiço. Ninguém quer treinar o corpo. Mal sabem que é o corpo que carrega a magia... — disse em voz alta, esquecendo que pessoas poderiam ouvir. — Minha habilidade física pode parecer lixo... mas ainda é minha. E eu vou usá-la até fazer sentido.
Ao chegar em casa, joguei minha mochila no canto do quarto e caí de costas na cama. O teto branco parecia zombar da minha mediocridade. Foi quando a tela azul apareceu novamente.
VOCÊ ESTÁ DESPERTANDO
CARREGANDO STATUS...
— Espera, o quê? Esperei por dois anos!
ERRO
ERRO
ERRO
A tela piscava com falhas. Meus olhos se arregalaram. Nenhum relato em fóruns ou estudos mencionava erro no sistema. Nenhum.
ERRO - Nível 999
VOCÊ FOI DESPERTADO DOIS ANOS DEPOIS DO PREVISTO
Uma nova janela se abriu, com opções.
Para corrigir o erro, escolha:
A - Manter o estado atual (sem status visíveis, sem evolução, sem habilidades únicas).
B - Recusar o despertar (poder físico acima da média, mas sem habilidades).
C - Repetir o despertar (status reiniciados, com duas habilidades únicas).
D - Voltar ao dia correto do despertar.
E - Upload do estado atual (nível 1 com ajustes ocultos).
Li e reli.
— O que diabos significa essa alternativa E...? — murmurei em voz alta.
A tela brilhou.
ASSIMILANDO SUA ESCOLHA... AGUARDE...
— Espera, eu só falei em voz alta! Eu não escolhi ainda!
VOCÊ NÃO PODE ESCOLHER DUAS OPÇÕES.
ERRO CORRIGIDO. APROVEITE.
A tela sumiu.
Eu fiquei encarando o teto. Estático.
E foi assim que parei aqui.
Sozinho. Quebrado. Com uma habilidade física que ninguém respeita.
Mas algo mudou.
E eu vou descobrir o quê.