Capitulo 1 – A Herança, o Salto e o Ex
Segunda-feira. Chuva. Vestido verde colado no corpo. Um salto quebrado. E um advogado com cara de viúvo me dizendo:
— Parabéns, senhorita Clarisse. Você é a única herdeira legítima da família Albuquerque.
Foi assim que minha vida mudou: encharcada, desequilibrada e com cheiro de mofo velho.
Me chamo Clarisse. Tenho vinte e seis anos, nunca tive um plano de vida que durasse mais que uma semana, e sou filha da ex-governanta da família mais podre de chique (e de rica) que essa cidade já teve. Ou ex-rica. Porque agora, aparentemente, sou a herdeira de um patrimônio falido.
— Deve haver um erro — disse tia Guida, abanando o rosto com um leque preto, como se estivesse à beira de um desmaio dramático. — Essa garota é uma... uma intrusa!
Eu sorri. Estava esperando essa fala.
— Intrusa, não. Herdeira. Com “h” maiúsculo. Inclusive, se quiser usar o banheiro de mármore, me avisa antes. Estou pensando em cobrar entrada.
A sala explodiu em cochichos. As colunas da mansão — que pareciam prestes a desabar junto com a moral da família — assistiam à cena em silêncio. O velho Caetano Albuquerque, patriarca recém-falecido, deixou para trás uma carta, um testamento… e um escândalo.
— Ela é filha da Rosa, aquela empregadinha! — acusou um primo que nem sei o nome, com o cenho franzido e a cueca provavelmente apertada demais.
— E filha do Caetano também — completei, cruzando os braços. — Acontece nas melhores famílias. E nas piores também.
Eu sabia que esse dia chegaria. Minha mãe sempre me disse: “Filha, seu pai é um homem importante. Um dia você vai saber quem ele é.” Só não imaginava que eu teria que entrar nessa mansão de salto torto pra descobrir que, além de pai, ele me deixou um gato gordo, uma vitrola quebrada e uma dívida do tamanho do ego da tia Guida.
— Essa casa... — disse o advogado, limpando os óculos — Está parcialmente penhorada. E a herança inclui algumas... pendências financeiras.
— Pendências? É isso que estão chamando de buraco financeiro agora? — perguntei, arqueando a sobrancelha.
— E o gato. — ele completou. — Tartufo. Ele agora é sua responsabilidade.
Ótimo. Rico eu não fiquei. Mas ganhei um felino obeso e rabugento.
E então, como se a situação não fosse absurda o suficiente, ele apareceu. Descendo as escadas com a calma de quem nunca precisou parcelar um iogurte: Eduardo.
Alto, irritantemente bonito, e dono do histórico de relacionamento mais frustrante da minha juventude.
— Então é isso — ele disse, com aquele sorriso cínico que me dava alergia. — A bastarda virou dona da casa.
— E você ainda tá com a mesma gravata de quando me largou no baile de formatura — retruquei. — A diferença é que hoje eu herdei o teto. Você ainda é só um Albuquerque genérico.
O olhar dele queimava. Mas não era raiva. Era outra coisa. Desdém, talvez. Ou medo. Ou desejo. Ou tudo junto, num coquetel emocional que me deixou ainda mais determinada.
— Você não vai conseguir manter essa casa, Clarisse — ele disse, se aproximando devagar. — Isso aqui exige mais do que piadinhas e vestidos baratos.
— Sorte a minha que sempre fui boa em sobreviver sem manual. E esse vestido barato te desconcentra desde o colegial. Lembra?
Um silêncio elétrico se instalou entre nós. Ele franziu o cenho, eu mantive o sorriso. Se tem uma coisa que aprendi sendo filha da empregada, é que a gente vence no olhar. E no deboche.
— A senhorita deseja aceitar oficialmente a herança? — perguntou o advogado, talvez mais entretido que confuso.
Respirei fundo. Olhei em volta: a mansão, decadente mas cheia de história. A família me odiando com todas as forças. O ex quase tremendo de raiva ou desejo. E eu, descalça, encharcada e com mais sarcasmo do que dinheiro na conta.
— Aceito. Com gosto.
Assinei o papel. Clarisse Albuquerque. Ou como eles iriam me chamar a partir de agora: a herdeira do nada.
Mas mal eles sabiam... que é exatamente com nada que eu sei fazer tudo acontecer.