Capítulo 2 – O Gato, a Vela e o Quase Beijo
Ter uma herança é fácil. Difícil é herdar uma casa do século passado com infiltrações, dívidas, e um gato gordo chamado Tartufo, que parece ter saído de um filme de terror felino.
Naquela primeira noite como “senhora da mansão Albuquerque”, eu dormi no sofá da biblioteca — com um travesseiro que cheirava a naftalina e um cobertor de crochê que coçava como castigo divino.
— Miaaaaau.
— Vai dormir, Tartufo — resmunguei, tentando me virar sem cair.
O gato pulou no meu peito. Onze quilos de pelo e desprezo.
— Ai! Me respeita, herdeira aqui sou eu.
Tartufo respondeu com um olhar que dizia: “Você pode ter o sobrenome, mas eu tenho o sofá.”
Já era quase meia-noite quando a luz acabou. Claro. Porque todo castelo mal-assombrado que se preze tem blackout, né?
— Perfeito. Agora falta só um fantasma me puxar pelos pés.
Levantei, tropecei no tapete, bati o dedinho na quina da estante e gritei palavrões que minha mãe não me perdoaria nem morta.
Foi aí que ele apareceu. Eduardo, com uma vela na mão e uma cara de quem saiu direto de um comercial de perfume caro.
— Perdeu a luta pro gato ou pro carpete?
— Perdi a paciência, se quiser saber — respondi, tentando me recompor com a dignidade de quem está descabelada, de pijama e mancando.
— Achei que ia dormir no antigo quarto da minha mãe. É mais confortável.
— E cheio de fotos suas bebê. Prefiro o sofá, obrigada.
Ele sorriu. Aquele sorriso. Aquele maldito sorriso torto que sempre vinha acompanhado de confusão emocional e borboletas no estômago.
— Você sempre foi assim, sabia? — ele disse, se aproximando devagar. — Faz piada quando tá com medo.
— Eu não tô com medo.
— Tá, sim. Tá com medo de estar sozinha nessa casa. E mais ainda... de gostar disso aqui.
Silêncio.
A chama da vela tremulava entre nós. A luz dançava no rosto dele, e por um segundo, eu lembrei de por que me apaixonei por ele anos atrás. E por que jurei nunca mais repetir o erro.
— Você ainda ama isso aqui, né? — perguntei, baixinho.
— Isso aqui ou você?
Aquilo me pegou desprevenida.
Não consegui responder. Só olhei pra ele, pra vela, pro gato no canto, e pensei: Clarisse, não vai se apaixonar por esse traste de novo. Nem a pau.
Mas o universo adora rir da minha cara.
— Boa noite, Clarisse — ele disse, com um olhar demorado demais pra quem só queria “boa noite”.
— Boa noite, ex.
Ele apagou a vela com um sopro e foi embora. Me deixando com Tartufo, o cobertor e um coração acelerado por culpa do idiota mais lindo da cidade.
**
Na manhã seguinte, fui despertada por um grito:
— AAAAAAAAAAAAAAAAH!
Levantei no susto. Tartufo derrubou uma almofada. E na porta da biblioteca estava Sueli, a nova governanta, com um avental florido e olhos arregalados.
— A senhorita Clarisse?! Dormindo no sofá da biblioteca?! A herdeira?!
— A herdeira do nada, lembra? Mas bom dia, Sueli. Tem café?
Em menos de vinte minutos, eu estava sentada numa cozinha enorme com cheiro de pão fresco e café passado na hora. Sueli, uma senhora baixinha e falante, parecia mais animada com minha presença do que eu mesma.
— Eu sabia que um dia a justiça ia ser feita! Aqueles insuportáveis... só sabiam humilhar a sua mãe. Mas a Rosa era uma rainha! E você... igualzinha a ela.
— Se eu for metade do que ela foi, já tô no lucro — respondi, sorrindo pela primeira vez desde que cheguei.
Foi nesse momento que ele entrou. Não o Eduardo.
O advogado.
Artur Sampaio. Terno alinhado, barba por fazer e aquele olhar de quem sabe mais do que diz. Ele parou na porta da cozinha com uma pasta na mão e um copo de café que pegou da Sueli sem pedir.
— Senhorita Clarisse — ele disse, sério. — Precisamos conversar.
— Sobre o quê? Vai me dizer que o gato também tem dívidas?
— Pior. A casa vai a leilão em noventa dias se a dívida com o banco não for quitada.
— E quanto é?
— Meio milhão de reais.
Engoli o café errado. Tossi, bati na mesa, e quase deixei o pão cair no chão.
— Meio milhão?! Mas e a herança? O patrimônio?
— Móveis antigos, algumas obras de arte... que valem muito menos do que deviam. E nenhum deles pode ser vendido sem autorização judicial. O testamento está sendo contestado.
— Por quem?
— Adivinha.
— Eduardo e sua trupe? — suspirei. — Mas é claro.
— Mas há uma solução. — ele disse, colocando um papel na mesa. — Um reality show. A emissora local quer filmar sua adaptação como “nova herdeira da mansão”. Pagariam o suficiente para cobrir parte da dívida.
— Um reality show?!
— Sim. Você, vivendo aqui, lidando com a casa, a família e... a convivência com Eduardo.
— Isso é armadilha.
— Isso é televisão. E pode ser sua salvação.
Olhei para a cozinha, para a casa, para mim mesma: pijama de coelhinho, cabelo bagunçado, e um futuro financeiro pendurado por um fio.
E pensei: Por que não?
— Aceito. Mas só se eu puder usar o nome do programa: A Herdeira do Nada.
Artur sorriu pela primeira vez.
— Fechado.
Tartufo miou. Sueli bateu palmas.
E eu... oficialmente virei uma estrela de reality show falida, com um ex irritante, um gato fofoqueiro e uma dívida que só comédia, drama e romance poderão pagar.