Sonhos de Papel e Realidade Crua

O despertador tocou às 5h30 da manhã, rompendo o silêncio do pequeno quarto com sua sirene insistente. Anna Vasconcelos suspirou antes mesmo de abrir os olhos. O teto mofado, com uma rachadura que ela conhecia como a palma da própria mão, foi a primeira coisa que viu ao acordar. Mais um dia. Mais uma luta.

Levantou-se devagar, calçando as sandálias surradas ao lado da cama. A casa onde morava — uma construção simples de dois cômodos — era alugada e sempre parecia um pouco fria demais, mesmo nos dias quentes. Anna morava sozinha desde os 18 anos, quando perdeu a última pessoa que chamava de família. Órfã desde cedo, aprendeu a sobreviver sem esperar muito da vida, mas ainda assim se agarrava ao sonho de um futuro melhor.

No espelho trincado do banheiro, penteou o cabelo castanho claro preso num coque improvisado, lavou o rosto e passou um batom discreto — o mais barato da farmácia, mas ainda assim, o seu favorito. Vestiu o uniforme da lanchonete: calça jeans, camiseta preta e avental vermelho. Era simples, mas era digno.

A lanchonete ficava a apenas quatro ruas dali. Ela caminhava pelas calçadas com passos conhecidos, desviando dos buracos no asfalto e cumprimentando vizinhos com um aceno de cabeça. O bairro era humilde, mas ao menos ela conhecia cada esquina e se sentia segura. Em poucos minutos, a placa amarelada da “Delícia Rápida” surgiu à sua frente.

— Bom dia, Anna! — chamou Léo, um dos atendentes, enquanto ela empurrava a porta de vidro ainda trancada.

— Bom dia, Léo. — respondeu com um sorriso leve. — Pronta pra mais uma rodada de cafés e pedidos errados?

— Sempre — ele riu, abrindo o armário com as fichas de pedidos.

Lá dentro, o cheiro de pão fresco e café começava a tomar conta do ambiente. Em poucos minutos, os colegas de trabalho foram chegando: Júlia, com seu jeito falante e olhos atentos; Pedro, que sempre estava com fones de ouvido mesmo sem música; e Dona Marta, a gerente, que organizava tudo com mãos firmes e coração de mãe.

Anna vestiu o avental, amarrou os cabelos com firmeza e pegou sua bandeja. Sabia que aquela rotina não era o que sonhava para si, mas também sabia que era o que a mantinha em pé por enquanto. E por mais duro que fosse, ainda havia uma faísca de esperança escondida em algum canto do seu peito.

Ela só não imaginava que aquele seria o dia em que tudo começaria a mudar.

O movimento na lanchonete estava mais intenso do que o habitual. Era fim de mês, e com o fluxo de clientes aumentando, Anna se ofereceu para fazer horas extras. Ela sabia que cada real contava. Ficou até mais tarde lavando copos, limpando mesas e organizando o estoque com Léo, que também havia ficado.

— Tu tá te matando de tanto trabalhar — comentou ele, encostado na pia, secando as mãos. — Ainda assim, parece que o dinheiro nunca sobra, né?

— Nunca sobra mesmo — respondeu Anna, esgotada, jogando o pano na bancada. — Mas é melhor do que ficar em casa pensando nas contas que não consigo pagar.

Léo hesitou por um segundo antes de continuar:

— Olha... eu ia te perguntar antes, mas achei que tu ia dizer não. Mas, já que tu tá correndo atrás, talvez tu se interesse. Tô precisando de mais uma pessoa pra um bico hoje à noite.

Anna levantou uma sobrancelha, curiosa.

— Que tipo de bico?

— Festa privada. Numa balada de luxo lá no Alto das Palmeiras. A gente serve bebida, limpa copo, circula com bandeja. É tranquilo. Eles pagam bem. Cem reais por hora.

Cem reais por hora.

Anna cruzou os braços, pensativa.

— Não é perigoso, não?

— Claro que não. É festa de gente rica. Têm uns playboy metido, mas é só manter a postura. E tu já serve café com sorriso falso aqui, né? Lá é igual, só que com champanhe.

Ela riu sem graça.

— E que horas começa?

— A gente sai daqui umas dez e meia. A festa já vai estar rolando, mas a gente entra pela área de serviço. Se quiser, eu falo com o coordenador agora. Te boto na lista.

Anna respirou fundo. Nunca tinha pisado em uma festa de luxo. Mas, com o aluguel vencendo na semana seguinte, ela não podia se dar ao luxo de recusar.

— Tá bom. Eu vou.

Mal sabia ela que aquela decisão, tomada no meio de copos sujos e bandejas engorduradas, mudaria completamente o rumo da sua vida.