A noite descia lentamente sobre a cidade quando Anna fechou a porta da lanchonete pela última vez naquele dia. Seu corpo pesado pedia descanso, mas sua mente inquieta não permitia que ela desligasse. O bico naquela festa de luxo não era só uma chance de ganhar um dinheiro extra — era uma possível virada na sua vida, uma chance de atravessar o muro que cercava seu mundo.
No pequeno quarto que chamava de lar, ela escolheu a roupa com cuidado. Uma calça preta justa, o único pedaço “mais arrumado” do seu guarda-roupa, e uma blusa simples, mas que disfarçava a rotina dura. Frente ao espelho trincado, seus olhos castanhos pareciam refletir não só o cansaço do dia, mas também a vontade de mudar.
Léo chegou no horário combinado, com seu jeito descontraído e sorriso fácil, abrindo a porta do carro para ela entrar.
— Pronta para ver como é o mundo dos ricos? — brincou ele, ligando o motor.
— Pronta para sobreviver — respondeu ela, com um sorriso tímido.
Enquanto cortavam a cidade, as ruas começaram a mudar. A poeira e os buracos deram lugar a avenidas largas e iluminadas, e as casas simples transformaram-se em mansões cercadas por muros altos e jardins bem cuidados. O coração de Anna bateu acelerado, não só pela beleza, mas pelo contraste gritante com sua própria vida.
Ao chegarem, passaram por seguranças carrancudos que os fizeram mostrar documentos e crachás antes de entrar por uma porta lateral. O som vibrante da música eletrônica chegava abafado, misturado com risos altos e o tilintar constante de taças de cristal.
— Relaxa — disse Léo, colocando o crachá no pescoço dela. — A gente fica nos bastidores, fazendo nosso trabalho. Nada de drama.
Anna assentiu, mas não conseguiu se livrar daquela sensação estranha. Tudo ali parecia um mundo à parte, um universo onde ela não pertencia.
Assim que começou a circular com bandejas, ela percebeu os detalhes que passariam despercebidos para um visitante comum: os olhares desconfiados entre convidados, os sussurros atrás de portas fechadas, a tensão mascarada pela música alta e as luzes coloridas. Cada sorriso parecia uma máscara, cada brinde uma negociação silenciosa.
Entre os convidados, homens em ternos sob medida conversavam com uma seriedade que contrastava com a festa. Eles carregavam uma aura de poder e perigo, e mesmo longe dela, Anna sentiu o peso daquele universo. Um deles — um homem alto, cabelos negros e barba bem cuidada — circulava entre os grupos com um olhar que parecia enxergar tudo e todos, mas sem se fixar em ninguém por muito tempo. Ele era o tipo de pessoa que, mesmo em uma multidão, se fazia notar pelo ar de autoridade e charme.
Anna desviou o olhar, mas o incômodo permaneceu. Aquele homem representava tudo o que ela não era: segurança, poder, controle. E ela, uma simples garçonete tentando sobreviver, sabia que não deveria se deixar atrair pelo brilho daquela vida — ainda que uma parte dela desejasse isso mais do que tudo.
Enquanto servia bebidas, Anna sentia a pressão da noite crescer. As pessoas que ali estavam não vinham apenas para festejar; vinham para jogar um jogo complexo, cheio de interesses ocultos. Ela ouviu pedaços de conversas sobre negócios obscuros, cifras altas, acordos silenciosos. Cada palavra parecia carregada de segredos que ela não tinha direito de conhecer.
Em uma pausa breve, Anna se afastou para o corredor dos fundos, tentando recuperar o fôlego. A música abafava seus pensamentos, mas o suor escorrendo pelas têmporas lembrava que aquela noite seria mais difícil do que imaginava.
Léo apareceu ao lado dela, colocando a mão no ombro.
— Tá segurando firme — disse com um sorriso encorajador. — Eu sei que não é fácil.
— É como entrar em outro mundo — respondeu Anna, olhando para o chão.
— Pois é, mas a gente só precisa fazer o nosso trabalho e sair antes que o jogo fique pesado demais.
Ela assentiu, mas algo dentro dela não deixava que aquela ideia fosse tão simples. Ela sentia que aquela noite estava cheia de riscos, e que a linha entre o que era seguro e o que era perigoso era muito tênue.
De volta ao salão, a festa seguia em ritmo acelerado. Anna continuou servindo, olhando as pessoas que dançavam, que conversavam, que tentavam se destacar. No meio da multidão, ela percebeu o homem de antes, o tal que parecia comandar tudo sem precisar dizer uma palavra. Ele conversava com outras pessoas importantes, sempre com aquele sorriso cínico que não deixava claro se ele era amigo ou inimigo.
Ela percebeu que ele observava os funcionários de perto, como se soubesse exatamente o que cada um fazia — ou deixava de fazer.
O relógio parecia acelerar. O dinheiro que ela ganharia por aquela noite era importante demais para que ela se distraísse, mas a curiosidade sobre aquele homem misterioso não a largava.
Em um momento, ela ouviu uma voz feminina, ríspida e possessiva, chamar o homem pelo nome, seguido de uma risada provocativa. Ele respondeu com um sorriso irônico, afastando a mulher com um gesto delicado, como quem domina sem precisar levantar a voz.
Anna sorriu para si mesma, percebendo que a festa, apesar de toda a sua exuberância, era um teatro de jogos de poder, sedução e perigo.
Quando a festa começou a desacelerar, Léo a avisou que era hora de encerrar. Enquanto recolhiam as bandejas e organizavam o estoque, Anna sentiu um misto de alívio e inquietação. Aquele mundo a seduzia e assustava ao mesmo tempo.
No caminho de volta, dentro do carro de Léo, ela olhou para as ruas escuras que os levavam para seu bairro. A realidade simples e dura a aguardava, mas a noite tinha aberto uma porta, mesmo que pequena, para um futuro diferente.
Anna não sabia ainda que aquela festa era apenas o começo — que em breve, aquele homem de olhos intensos cruzaria seu caminho de um jeito que mudaria sua vida para sempre.
Manhã seguinte:
O sol mal havia nascido quando Anna abriu os olhos. A claridade filtrava-se pela cortina fina do quarto, mas não foi a luz que a despertou — foi um pensamento insistente, como um eco que atravessava seu corpo mesmo enquanto dormia: os olhos daquele homem.
Ela não sabia seu nome. Não sabia o que ele fazia exatamente naquela festa. Mas a imagem dele seguia intacta na sua mente: o terno impecável, o sorriso contido, o modo como andava entre os outros com autoridade silenciosa. Não havia olhado diretamente para ela, mas Anna sentira como se tivesse sido tocada por um olhar invisível.
— Que loucura... — murmurou, esfregando o rosto com as mãos.
O despertador marcava 7h02. Ela tinha pouco tempo para se preparar e correr para mais um turno na lanchonete. Ainda sentia o corpo pesado do trabalho da noite anterior, mas o cansaço parecia menor do que o normal. Talvez fosse o efeito de ter vivido, ainda que por algumas horas, algo diferente da rotina cinzenta.
No banho, deixou a água escorrer pelo corpo enquanto tentava apagar a imagem do homem da mente. Mas era inútil. Cada vez que fechava os olhos, era como se ele estivesse ali — observando, esperando.
Vestiu o uniforme, prendeu o cabelo num coque apressado e passou o mesmo batom discreto de sempre. No espelho trincado, reparou que seu olhar estava mais... vivo? Ou era apenas confusão?
Saiu para a rua com passos firmes. O sol já aquecia o asfalto e os ônibus passavam cheios de trabalhadores indo para seus empregos. Aquilo era o mundo real, o que ela conhecia. A festa da noite anterior parecia quase um sonho. Quase.
Ao chegar na “Delícia Rápida”, Léo já estava no balcão, com cara de sono e os fones de ouvido pendurados no pescoço.
— Sobreviveu? — ele brincou.
Anna soltou um riso leve, jogando a bolsa atrás do balcão.
— Por pouco.
— Dormiu bem?
Ela hesitou. Não queria parecer estranha.
— Mais ou menos. Fiquei pensando... em algumas coisas.
Léo a observou com curiosidade.
— Tipo?
— Nada. Só devaneios. Foi tudo muito... diferente.
Ele assentiu, como se entendesse mais do que dizia.
— Aquele lugar tem esse efeito, principalmente na primeira vez. Mas acostuma.
Anna não respondeu. No fundo, ela esperava que *não* se acostumasse. Porque algo naquela noite mexera com ela de um jeito novo. E não era só o luxo, ou a música, ou o dinheiro girando em taças de cristal. Era aquele homem. Aquele que nem sequer falara com ela, mas que agora parecia ocupar um espaço dentro dela que ela não havia cedido voluntariamente.
O expediente começou como sempre: café sendo passado, mesas limpas, clientes impacientes. Mas Anna estava estranha. Esbarrava em bandejas, esquecia pedidos. A cabeça dela estava longe. E Léo percebeu.
— Tá com a cabeça na festa ainda?
Ela desviou o olhar.
— Acho que sim. É só cansaço, vai passar.
Léo riu, mas não insistiu. Ela era reservada, e ele sabia que não adiantava forçar. Mas também percebeu algo nos olhos dela — uma espécie de brilho novo, ou talvez inquietação.
O dia seguiu assim. Anna tentando focar, mas os pensamentos insistiam em voltar à festa, às conversas sussurradas, às risadas vazias. E, inevitavelmente, ao homem de terno, que parecia comandar tudo com o olhar. Como podia alguém causar tanto efeito sem sequer falar com ela?
Ela balançava a cabeça, como se tentasse expulsar a ideia. Era só cansaço. Uma fantasia. Ele devia ser só mais um arrogante cheio de dinheiro.
Mas por que então ela não conseguia esquecer?
Às 18h, o turno acabou. O céu já escurecia e uma brisa fresca varria a calçada. Anna se despediu dos colegas e seguiu pela rua do bairro, com a mochila nas costas e os fones de ouvido desligados. Gostava de escutar os sons da rua: o barulho dos carros, o latido dos cães, o chamado distante de algum vendedor ambulante. Era o mundo dela. E mesmo com todas as dificuldades, ela ainda se sentia mais à vontade ali do que entre champanhes e vestidos de grife.
Mas naquela noite, algo parecia diferente.
Enquanto caminhava, sentiu um arrepio. Não por causa do frio, mas algo mais... interno. Instintivo. Como se estivesse sendo observada.
Parou por um segundo e olhou ao redor. A rua estava tranquila, algumas luzes acesas nas casas vizinhas, um gato atravessando a calçada. Nada fora do comum.
Mas a sensação permaneceu.
Acelerou o passo. O coração bateu um pouco mais forte. Não era medo exatamente — era um alerta, uma intuição.
Quando chegou à sua rua, virou a esquina e, por um breve momento, achou ter visto um vulto escuro na calçada oposta. Mas, quando olhou de novo, não havia ninguém. Só um carro estacionado, faróis apagados. Normal, talvez.
Ou não.
Entrou em casa e trancou a porta com mais cuidado do que de costume. Encostou-se à madeira por alguns segundos, ouvindo o próprio coração. Tentou rir da própria paranoia. Devia estar exagerando. Só cansaço. Só imaginação.
Mas quando foi até a janela e afastou a cortina, viu que o carro continuava lá. E embora os vidros fossem escuros demais para ver quem estava dentro, ela teve certeza de uma coisa:
Alguém estava ali. E estava esperando por ela.