Anna
Anna acordou com a respiração presa no peito.
Havia sonhado de novo com ele.
Não lembrava os detalhes exatos, mas a sensação persistia — quente, inquietante, quase dolorosa. A imagem mais nítida era daqueles olhos escuros, intensos, a fitarem como se pudessem atravessar sua alma. Ela fechou os olhos, tentando afastar o sonho, mas o rosto dele reaparecia como uma pintura gravada na pele.
Suspirou, sentando-se na beirada da cama. O céu lá fora ainda era um cinza indeciso. Era cedo, mas ela não conseguiria dormir novamente.
Fez café forte, como sempre fazia quando sentia que o mundo estava um pouco demais. Sentou-se à mesa com a caneca entre as mãos e olhou a janela. O carro que vira na noite anterior não estava mais lá. Ainda assim, o arrepio na nuca voltava toda vez que pensava nisso.
Era só paranoia... certo?
Durante o caminho para o trabalho, Anna manteve os olhos atentos, como se buscasse vultos nos cantos da rua. Mas o bairro parecia o mesmo de sempre: barulhento, simples, vivo. Mesmo assim, ela não conseguia afastar a sensação de que alguém a seguia — alguém que preferia ficar nas sombras.
Na lanchonete, o ritmo era agitado. As palavras dos clientes soavam distantes, como se ela estivesse em outro lugar. E estava. Ainda na festa. Ainda na lembrança daquele homem.
Léo percebeu.
— Tá esquisita hoje de novo — comentou enquanto organizava os pães de queijo na estufa. — Sonhou com o bonitão da festa, foi?
Anna arregalou os olhos, surpresa.
— Claro que não. Por que eu sonharia com um desconhecido?
Léo levantou as mãos, rindo.
— Ei, calma! Só brinquei. Mas olha, se sonhou, tá tudo certo. Ele era de parar o coração mesmo. Até eu reparei.
Ela virou de costas, rindo sem graça, tentando esconder o rubor no rosto.
No fim do expediente, quando saiu da lanchonete, sentiu de novo: aquele arrepio súbito, como se o ar ao redor ficasse mais denso por um instante. Parou, olhou para trás. Nada.
Mas ela sabia. Alguém estava ali. E ela sentia isso até nos ossos.
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Rafael
O som dos saltos ecoava contra o mármore frio da cobertura. A mulher andava em direção ao quarto com uma taça de vinho na mão e um sorriso provocante nos lábios. Alta, corpo escultural, olhar de predadora. Era o tipo de mulher que Rafael Cruz atraía com facilidade — e dispensava com a mesma rapidez.
Ele a seguiu com um copo de uísque, os passos lentos, o olhar distante.
Ela se jogou na cama de lençóis negros, esticando o braço em convite. Rafael tirou a camisa devagar, revelando o corpo marcado não apenas por músculos, mas por cicatrizes — sinais de uma vida violenta e implacável.
A mulher o puxou para cima de si com desejo. Seus beijos eram quentes, sua pele cheirava a perfume caro e promessas vazias.
Mas Rafael não via o rosto dela.
Via o de outra mulher.
Enquanto movia as mãos pelo corpo da loira, sua mente traía cada gesto: tudo o que ele via, tocava, sentia... era substituído pela lembrança da morena de uniforme vermelho e olhar forte, mas ferido.
Anna.
Ele nem sabia seu nome até vasculhar os registros de funcionários do serviço contratado para a festa. E ainda assim, bastara vê-la por poucos segundos para que ela se alojasse ali — no canto mais secreto da mente, onde Rafael não deixava ninguém entrar.
A mulher gemeu algo no ouvido dele, mas ele não escutou. Seus olhos estavam fechados, sua mente longe dali. Cada movimento seu era mecânico, quase brutal. Não havia prazer genuíno — apenas o desejo de calar um fogo que não se apagava.
Quando acabou, levantou-se sem dizer nada. A mulher, confusa, ainda tentou puxá-lo de volta.
— Já vai? Nem vai falar comigo?
— Fica à vontade, mas não pergunta o que não quer ouvir — respondeu ele, vestindo a calça com frieza.
Caminhou pela casa silenciosa até o escritório. Rafael era dono de várias empresas, todas fachada para os negócios da máfia Cruz. Dinheiro passava por ele como sangue por veias. Mas naquela noite, nada disso parecia importante.
Abriu o notebook e digitou o nome dela: Anna Vasconcelos.
Funcionária de lanchonete. Órfã. Sem parentes próximos. Sem histórico criminal. Endereço simples, bairro de periferia.
Tão fora do seu mundo que deveria ter passado despercebida.
Mas não passou.
— Quem é você...? — murmurou, deslizando os dedos pelo rosto dela em uma das fotos do crachá da empresa.
Chamou um de seus homens de confiança, Lucas, pelo celular.
— Preciso de informações detalhadas. Hoje ainda.
— Sobre quem?
— Anna Vasconcelos. Bairro da zona sul. Consegue?
— Em uma hora eu te trago tudo. É alguma ameaça?
Rafael hesitou. Odiava parecer vulnerável, até mesmo para os seus.
— Só quero saber quem ela é — respondeu seco. — Não se aproxima dela. Só observa.
Desligou.
Encostou-se na cadeira de couro e olhou para a cidade através da parede de vidro. Lá embaixo, tudo parecia pequeno demais. Mas ela... ela parecia imensa dentro dele.
Rafael Cruz, 29 anos, braço direito de um império criminoso, temido por muitos, desejado por mais ainda — estava obcecado por uma garçonete que não o reconheceu, não o bajulou, não tentou nada com ele.
E era exatamente isso que o deixava louco.
Ele queria saber por que ela parecia tão diferente. Por que, mesmo entre tantas, foi a única que não saía da cabeça dele. E por que, mesmo depois de ter transado com outra, ele ainda sentia o corpo de Anna, mesmo sem nunca tê-lo tocado.
Naquela noite, Rafael não dormiu.
Mas mandou vigiar.
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Anna acordou no meio da noite, o coração disparado, como se um vento frio tivesse soprando dentro do quarto. O silêncio parecia pesado demais, quase sufocante, e ela teve a impressão — mais forte que um simples pressentimento — de que alguém estava ali, parado na penumbra, observando-a.
Virou-se de lado, tentando se convencer de que eram apenas os próprios pensamentos inquietos, mas o frio estranho não a deixava. Fechou os olhos, mas o sono não vinha.
Na manhã seguinte, enquanto preparava o café na pequena cozinha, percebeu que algo não estava certo. O vaso de flores que costumava estar no parapeito da janela estava torto, uma gaveta da cômoda estava entreaberta — mesmo ela tendo certeza absoluta de que a fechara na noite anterior. No bolso da jaqueta, uma pequena folha de papel que não lembrava de ter colocado.
Sentiu um arrepio subir pela espinha, e seu olhar percorreu o ambiente, buscando algum sinal, alguma pista. O celular vibrou com uma notificação. Ela pegou o aparelho, mas não havia mensagem alguma. Apenas um alerta vazio.
— Acho que estou ficando louca — murmurou, tentando rir, mas a voz saiu tensa.
Na lanchonete, a inquietação não desapareceu. Entre um pedido e outro, Anna trocava olhares com Léo, que parecia mais preocupado do que o normal. Ela finalmente resolveu desabafar:
— Léo, você já teve aquela sensação de que alguém está te observando? Tipo, não sabe quem, mas sente?
Ele baixou os olhos, como se quisesse esconder algo.
— Já. Mais vezes do que eu gostaria — respondeu, baixinho. — Se liga, Anna, às vezes o nosso instinto é o que mais percebe. Tem gente que não aparece, mas está por perto.
Ela engoliu seco, o estômago embrulhado. — Eu só quero que isso passe. Eu tô cansada de sentir medo.
Antes que ele pudesse responder, Dona Marta se aproximou, com seu jeito firme, mas cuidadoso.
— Anna, garota, não deixa essas coisas te abalar. A vida já é dura demais pra gente se preocupar com coisas que não dá pra controlar.
— Eu sei, Dona Marta... — Anna sorriu fraco. — Mas não consigo evitar.
Mais tarde, voltando para casa, Anna teve a impressão de passos rápidos e leves atrás de si. Parou, olhou para trás, mas a rua estava vazia, escura e silenciosa. O coração batia forte no peito, e a sensação de perigo era real.
— Preciso prestar mais atenção — pensou, acelerando o passo.
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Do outro lado da cidade, em um apartamento luxuoso, Rafael observava uma fotografia antiga com um olhar perdido entre a lembrança e a obsessão. Era uma imagem em preto e branco, mostrando um orfanato humilde, quase esquecido pelo tempo. Entre as crianças, ele viu o rosto da menina que havia marcado sua vida.
— Era você... — murmurou, passando a ponta do dedo pela foto. — Nunca esqueci.
Nos anos em que passou naquela instituição, era apenas um garoto tentando entender o próprio lugar no mundo sombrio da família. A menina de olhos grandes e melancólicos parecia carregar a mesma luta silenciosa que ele sentia, mesmo que não a conhecesse.
Naquela noite, após a festa da máfia, em meio ao luxo e ao excesso de mulheres e álcool, Rafael não conseguia tirar Anna da cabeça. Entregou-se aos prazeres da carne com uma mulher qualquer, uma convidada da festa, mas sua mente vagava para ela, para o mistério que ela representava.
— Por que você? — sussurrava entre beijos e toques, enquanto seu corpo se movia, mas seu coração parecia distante.
Depois, sozinho no quarto escuro, ele tirou a camisa dela que havia pego na festa, a mesma que usava para dormir, e levou até o rosto. O cheiro doce, quase sagrado para ele, invadiu suas narinas.
Impulsivamente, dirigiu-se ao bairro onde Anna morava, sentindo que precisava vê-la, mesmo que fosse só de longe.
Com a chave que tinha para emergências, entrou silencioso na casa simples. Cada detalhe era uma descoberta — a luz fraca da mesa de cabeceira, o cheiro de lavanda misturado ao perfume suave dela.
Pegou a camisa de dormir que estava no chão e segurou contra o rosto, fechando os olhos e deixando que o momento consumisse sua sanidade.
— Eu te encontrei — disse baixinho, como um mantra.
Mas por trás daquela obsessão, havia também um peso. O passado, as memórias daquelas crianças no orfanato, a promessa não dita de que ele cuidaria dela, mesmo que nunca tivesse revelado isso.
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De volta à casa de Anna, exausta e perturbada, ela se jogou na cama, mas o sono continuava negado. A sensação de ser vigiada a fazia sentir vulnerável, como se algo estivesse prestes a acontecer.
Ela virou para o lado, fechando os olhos, tentando afastar a imagem daquele estranho olhar que sentia sobre si.
Mas lá fora, alguém a observava, escondido nas sombras da noite, um sorriso sutil nos lábios, com a certeza de que sua vida estava prestes a mudar para sempre.
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Anna permaneceu deitada, olhos fixos no teto. O silêncio ao redor parecia carregado, pesado. Era como se o ar em seu quarto tivesse densidade, impedindo sua respiração de fluir naturalmente. Cada som parecia amplificado — o leve rangido da madeira da cama, o zunido distante do trânsito, o leve soprar do vento pela fresta da janela.
Seu corpo, cansado após o dia inteiro de trabalho, parecia não querer descansar. A mente rodava, repetindo uma e outra vez a sensação de que algo não estava certo. “Será que realmente alguém está me observando?”, pensava, uma mistura de medo e incredulidade se misturando em seu peito.
Tentou puxar o cobertor para cima, abraçando-se, buscando algum conforto naquela solidão que apertava como uma mão invisível. Mas mesmo ali, sentiu um arrepio que começou na nuca e percorreu a espinha, fazendo seus pelos se arrepiarem.
No escuro do quarto, sombras dançavam, projetadas pela luz trêmula que vinha da rua. Cada movimento parecia ganhar vida própria, e Anna sentiu o coração acelerar de novo. Quis se levantar, acender a luz, mas uma voz interior a segurou — o medo de descobrir o que poderia haver na escuridão.
Ela fechou os olhos e tentou repetir para si mesma que tudo não passava de imaginação, mas o medo não cedia.
— Vai passar, Anna... vai passar — sussurrou, quase como um pedido.
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Lá fora, a noite fria contrastava com o calor que crescia no peito de Rafael. Sentado no banco de couro macio de seu apartamento, ele ainda segurava a camisa dela, sentindo o tecido entre os dedos como se fosse a própria presença de Anna.
Seus pensamentos o torturavam. Havia algo naquela jovem mulher que o desarmava, mesmo sabendo que ele não deveria se deixar envolver. A vida que levava, cheia de segredos e perigos, não tinha espaço para fraquezas.
Mas a obsessão só crescia, invadindo cada canto da sua mente. Ele lembrava da menina no orfanato, daquela época em que, sem saber, já a vigiava. A sensação de posse misturava-se com uma estranha ternura, um desejo que não era apenas carnal, mas algo muito mais profundo.
Na festa da noite anterior, Rafael não conseguia disfarçar o desconforto enquanto se entregava àquela mulher desconhecida. Seus movimentos eram mecânicos, o olhar distante, a mente vagando para Anna, para o mistério que ela representava.
Depois, no quarto, enquanto ela dormia, ele se levantou silenciosamente. Pegou a camisa que ela havia deixado para trás, envolveu-a entre os dedos, fechou os olhos e sentiu o cheiro dela como se fosse um vício.
Naquele instante, o mundo dele parecia se reduzir àquela peça de tecido, ao cheiro e à lembrança de um rosto que não saía da cabeça.
— Eu não devia estar aqui... — murmurou, num misto de culpa e desejo.
Mas ele continuou, impulsivo, seguindo até o bairro onde ela morava. A chave na mão girou na porta da casa simples, e ele entrou sem fazer barulho.
Cada detalhe era uma descoberta: o aroma sutil de lavanda, o leve cheiro doce que vinha das roupas dela, o silêncio pesado que preenchia o espaço. Rafael se moveu com cuidado, como se não pudesse quebrar aquele momento sagrado.
Segurou a camisa contra o rosto e, por um instante, fechou os olhos para se entregar àquela obsessão silenciosa, à sensação de que, finalmente, tinha encontrado algo seu.
Mas mesmo assim, um nó apertava seu peito. Havia sombras no passado que ele não conseguia apagar, um segredo que poderia destruir tudo se viesse à tona.
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Enquanto isso, Anna finalmente adormeceu, mas foi um sono agitado, cheio de sonhos fragmentados e imagens desconexas. Quando despertou, o sol já começava a infiltrar-se pela janela.
Ao abrir os olhos, a primeira coisa que veio foi a lembrança daquela sensação estranha — de ser observada, seguida, invadida. Levantou-se devagar, passando as mãos pelo rosto, tentando afastar o medo que ainda grudava na pele.
Na cozinha, encontrou Léo já preparando o café, e não resistiu a dividir a angústia.
— Léo... eu sei que pareço louca, mas não consigo tirar essa sensação da cabeça. Como se alguém estivesse... perto demais.
Ele olhou para ela, sério.
— Anna, eu tô falando sério, essa sensação não é bobeira. Se você sente isso, tem um motivo. A gente tem que tomar cuidado, nem sempre as coisas são só coincidência.
Anna sentiu a voz dele carregada de preocupação, e uma pontada de medo cresceu dentro dela.
— O que eu faço?
— Fica atenta, tenta não andar sozinha à noite e, se precisar, me chama. A gente tá junto nessa — ele disse, colocando a mão no ombro dela com firmeza.
Naquele instante, Anna percebeu que não estava sozinha — mesmo que o perigo estivesse mais próximo do que ela imaginava.
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Na mesma hora, do lado de fora, uma sombra se movimentava na rua. Um homem encapuzado observava a janela do quarto dela, os olhos fixos como duas chamas na penumbra.
O silêncio era seu aliado, e a noite guardava seus segredos.
Ele sabia que Anna estava vulnerável, e que aquela vulnerabilidade poderia ser a chave para o que ele queria.
Mas quem era aquele homem? E o que buscava naquele bairro modesto, tão distante do brilho e da escuridão do mundo de Rafael?
O mistério só aumentava, e a vida de Anna estava prestes a se transformar para sempre.