Naquela casa, o tempo parecia sempre mais frio do que o necessário. Mesmo quando o sol tocava as janelas com gentileza, tentando — em vão aquecer os corações que ali viviam, tudo permanecia envolto por uma névoa invisível: densa, silenciosa, sufocante.
À noite, os gritos de Han Jiwon cortavam o silêncio como facas afiadas. Eram pesadelos — frequentes, intensos —, como ecos de um passado que ela não conseguia lembrar, mas que seu corpo insistia em reviver. Diziam ser o trauma do acidente que levou seus pais, a tragédia que a deixou órfã e sem memória.
Mas Jiwon não tinha certeza se era só isso.
Aqueles sonhos esquecidos pareciam fragmentos. Como se algo dentro dela quisesse gritar uma verdade esquecida, enterrada sob anos de silêncio.
E, mesmo sem sentido, ela sabia: seus gritos não eram somente fruto de saudade ou medo. Eram lembranças. Ou talvez... avisos.
Han Jiwon cresceu acreditando que seus pais haviam falecido num acidente de carro. Era o que todos diziam.
— Você teve sorte de sobreviver — diziam. — Seu tio foi generoso em acolher você.
Aos dezoito anos, Han Jiwon vivia em busca de respostas. Era estranho — dolorosamente estranho — como ninguém parecia se aproximar dela. As pessoas simplesmente se afastavam, como se algo nela causasse desconforto. A única exceção era Lee Soyeon, sua melhor — e única — amiga desde os primeiros anos de escola. Agora, estavam juntas no último ano, apoiando-se uma na outra como duas sobreviventes num mar de indiferença.
Seo Minjae, seu primo, também era uma presença constante. Filho do tio que a acolhera após a tragédia, ele sempre agia como um amigo leal — gentil, protetor, quase devoto. Em meio ao vazio daquela casa e às sombras que ela carregava, Minjae e Soyeon eram os dois únicos pontos de luz que ainda a mantinham de pé.
— Você se atrasou de novo, Han Jiwon — disse tia Kang Mira ao entrar na sala. A voz era cortante, ainda que envolta em uma elegância fria.
Jiwon curvou-se levemente, como fazia desde que aprendera que qualquer resposta podia se tornar motivo para mais uma repreensão.
— Desculpe.
Seo Kyungwoo, o homem a quem ela chamava de "tio", chegou alguns minutos depois. Afrouxou a gravata com um gesto habitual e sorriu — apenas para ela.
— Boa noite, Jiwon. Venha para o jantar! — disse com gentileza ensaiada, o sorriso não chegando aos olhos.
— Sim, senhor — respondeu ela, esforçando-se para manter o tom neutro enquanto se sentava à mesa.
Já estava acomodada quando Seo Minjae entrou na sala. Os cabelos escuros estavam levemente bagunçados, e o uniforme escolar mal havia sido trocado, ainda pendendo de forma desleixada sobre o corpo. Com passos calmos, ele caminhou até a mesa e puxou a cadeira ao lado dela, o som das pernas raspando no chão preenchendo o silêncio desconfortável.
— Olá, papai. Olá, mamãe — disse com naturalidade, sem vestígios de sono na voz, apenas a informalidade de quem está em casa.
Os pais apenas assentiram, concentrados em suas refeições — como sempre.
Minjae sempre foi diferente. Ele a chamava de “irmã” e parecia realmente acreditar nisso. Era gentil, protetor, às vezes até carinhoso demais. E, por mais confuso que aquilo fosse, era também o que mantinha o coração de Jiwon mais tranquilo. Ele estava sempre lá para protegê-la — até mesmo da própria mãe.
Naquela noite, depois do jantar, Jiwon foi até a cozinha tomar água quando ouviu vozes na sala ao lado.
— Aquela menina... ela não é da nossa família, Kyungwoo. Nunca foi — disse tia Kang Mira, em tom baixo, mas carregado de veneno.
— Já conversamos sobre isso — respondeu o tio, em voz firme. — Ela é minha responsabilidade.
Jiwon parou de respirar por um instante.
“Não é da nossa família.”“Minha responsabilidade.”
As palavras ecoaram como trovões dentro de seu peito.
Ela sempre sentiu que sua presença ali nunca fora bem-vinda. Desde o início, era apenas uma responsabilidade que seus tios assumiram, não uma verdadeira parte da família. Era um pensamento doloroso, mas também libertador, pois agora ela entendia o que sempre sentira, mas nunca soube como explicar.
Naquela noite, Jiwon permaneceu em silêncio, olhando pela janela do quarto, abraçando a si mesma, enquanto a lua cheia iluminava o jardim da casa
“Quem sou eu, afinal?” — pensou, com o peito apertado, sentindo-se como uma sombra vagando silenciosamente pelos cômodos, invisível até para si mesma. Embora o tio e o primo a tratassem com gentileza, o que mais marcava sua existência era o sofrimento causado pela tia. Eles diziam tê-la acolhido, mas, muitas vezes, ela se perguntava se, na verdade, não estava apenas aprisionada sob o peso daquela tortura silenciosa. Esquecer os pais e o passado era um castigo — ou uma maldição.
O silêncio da casa era calmo, mas carregado — como se cada parede soubesse demais. Lá fora, a lua pairava suave no céu, lançando um brilho distante sobre o quintal adornado. Jiwon fechou os olhos devagar, tentando conter as lágrimas que ardiam quietas.
O som da porta se abrindo a fez saltar, o coração disparado no peito. Mas era somente Minjae. Ele parou na entrada por um segundo, observando-a com um olhar atento, antes de entrar no quarto. Um sorriso leve e preocupado surgiu em seus lábios — aquele tipo de sorriso que parecia ver além do que ela deixava transparecer.
— Está tudo bem? — ele disse, a voz baixa, gentil.
Jiwon hesitou por um momento antes de assentir com um leve movimento de cabeça. Minjae não insistiu. Apenas se moveu um pouco mais, respeitando o espaço que ela mantinha ao redor de si como um escudo.
— Sei que você não fala muito sobre o que sente... — disse, num tom suave. — Mas quero que saiba que estou aqui. Vou sempre está.
Ela arqueou ligeiramente as sobrancelhas, surpresa com a sinceridade na voz dele. Por um segundo, pensou em dizer algo. Mas as palavras ficaram presas na garganta.
— Você não precisa fingir que está tudo bem quando não está — ele continuou, dando um passo para trás, como se temesse invadir mais do que confortar. — Quando quiser falar, mesmo que seja só uma palavra... eu vou ouvir.
Ele então virou-se, pronto para sair, mas hesitou na porta.
— Às vezes, a gente só precisa de alguém que fique. Mesmo em silêncio. — Olhou-a de novo, de um jeito que não exigia nada dela. — Boa noite, Jiwon.
E saiu, fechando a porta com cuidado.
Jiwon deitou-se lentamente, ainda sentindo o eco das palavras de Minjae ressoando em sua mente. A presença dele parecia ter deixado um calor discreto no ar — como se, por um instante, o quarto tivesse se tornado menos frio.
Ela fechou os olhos, permitindo-se um suspiro. Pela primeira vez em muito tempo, não resistiu ao cansaço. Deixou-se afundar no colchão gasto, como se o sono pudesse oferecer algum tipo de abrigo.
Mas a paz não durou.
As sombras começaram a se formar por trás de suas pálpebras cerradas. Primeiro, eram apenas vultos — distorcidos, indefinidos. Depois, vieram as vozes que ela não conseguiu entender. E não a chamavam pelo mesmo nome.
De repente, estava em um quarto escuro. Os quadros nas paredes estavam cobertos por panos pretos, e o som de passos ecoava atrás dela. Ela queria correr, mas seus pés eram pesados, como se o chão a engolisse.
Acordou com um sobressalto, o coração disparado, o suor frio colando os fios de cabelo à testa. A respiração vinha curta, como se tivesse corrido por quilômetros.
Sentou-se na cama, abraçando os joelhos contra o peito. Sentia que havia algo no passado chamando por ela. Algo que não permaneceu enterrado por muito tempo.
E, no fundo, Jiwon sabia: aquela não seria a última vez que sonharia com aquele quarto.
Na manhã seguinte, havia dormido um pouco — se é que aquele torpor inquieto podia ser chamado de sono. Levantou-se devagar, com os membros pesados, e se vestiu mecanicamente, tentando afastar as imagens do pesadelo que ainda pairavam sob seus olhos cansados.
Desceu as escadas em silêncio, como fazia todas as manhãs, esperando passar despercebida. Mas Kang Mira já estava à mesa, perfeitamente arrumada, com os cabelos presos em um coque impecável e uma xícara de chá nas mãos.
— Finalmente resolveu acordar — disse, sem desviar o olhar da tela do tablet. A voz era doce, mas gélida.
Jiwon curvou levemente a cabeça, evitando qualquer resposta. Sentou-se à mesa, limitando-se a pegar um copo de suco.
— Não é a primeira vez que você se atrasa para o café. Ou acha que viver de favor inclui desrespeitar regras básicas?
A frase cortou o ar como uma lâmina. Jiwon manteve o olhar baixo.
— Desculpe — murmurou.
A tia soltou um suspiro longo e impaciente.
— Não adianta pedir desculpas. Já tem dezoito anos. Devia ter aprendido alguma coisa. Ou talvez tenha herdado o mesmo descontrole dos pais.
Jiwon parou, congelada. As mãos apertaram o copo com força, mas ela não disse nada. Não podia. Ainda assim, aquela frase feriu mais do que qualquer pesadelo.
Minjae entrou na cozinha naquele momento, interrompendo o clima denso, com os fones pendurados no pescoço.
— Bom dia — disse, lançando um olhar rápido para a mãe e depois para Jiwon, juntando-se à mesa. — Aconteceu alguma coisa?
Kang Mira respondeu com desdém:
— Nada que já não esteja virando rotina.
E saiu, deixando um silêncio sufocante no ar e o peso de palavras que Jiwon ainda não sabia como enfrentar.
Minjae olhou para ela com um sorriso tímido, enquanto mexia no chá.
— Você dormiu bem? — perguntou, em voz baixa, quase um sussurro.
Ela hesitou antes de responder. O olhar dele era quente demais para aquele começo de dia.
— Dormi... o suficiente — respondeu, desviando os olhos.
Minjae a observou por um momento, apoiando o queixo sobre a mão, sem tirar os olhos dela.
— Eu sempre noto quando você pensa. Mesmo que seja só com os olhos.
Jiwon mordeu os lábios, desconcertada, mas não respondeu.
Ele se inclinou um pouco mais, como se aproximar fosse instintivo, necessário.
— Um dia... vai me deixar cuidar de você de verdade, Jiwon?
O coração dela deu um salto. Por um instante, tudo ficou em silêncio — até o próprio ar. Ela não respondeu. Apenas abaixou os olhos, sentindo o peso daquela pergunta não dita no peito.
E Minjae sorriu com sinceridade — como se a ausência de resposta já fosse o suficiente.