Ponto de início.

A chuva caía incessante lá fora, grossas gotas martelando o casco metálico do navio. Do lado de dentro, o som chegava abafado, como se o mar sussurrasse ameaças esquecidas.

O Karyon — gigantesco, escuro, quase orgânico em sua aparência corroída — era um navio-laboratório da A.E., a Atividade Espectral. Seu propósito não precisava de decorações: navegar, estudar, experimentar.

Lote 7429-C. Um líquido âmbar era despejado através de tubos de aço, espesso como mel envelhecido, com um cheiro que misturava esgoto estagnado e ferrugem antiga. Corria pelas estruturas como sangue lento em veias mecânicas.

Nas paredes úmidas e amassadas, slogans pintados em tinta vermelha ainda fresca pareciam escorrer junto com o tempo: Evolução não pede permissão.

Entre os tripulantes — ou melhor, os funcionários de jaleco branco — uma única figura mantinha distância. Era Ishmael. Ou pelo menos era assim que se chamava.

Movia-se com precisão pela sala de dispersão, operando a bomba sozinha. Assim preferia: sem vozes, sem olhares, sem obrigações sociais. Só ela e o sistema. Ela anotava tudo em seu caderno sujo de óleo, com caligrafia firme, mas apática. Verificava válvulas, calibrava pressão, lia os níveis com olhos que não brilhavam há muito tempo.

Alguns diziam que aquilo era obsessão. Outros, fuga da realidade. Nenhum estava errado.

— Despejo concluído. Por favor, fechamento das comportas solicitado para imediato. — anunciou a voz robótica do navio, fria e sem identidade.

Ishmael ficou imóvel por um instante. Aquela era a última sessão do dia.

— Obrigado pelos seus serviços. A vida marinha agora dará um passo à evolução, visando a dominação dos espectros.

Ela soltou uma risada baixa, seca, na solidão da sala. O som morreu rápido entre os tubos abafados. A ideia de evolução da A.E. era transformar a fauna marinha em armas vivas — criaturas projetadas para devorar monstros que ameaçavam a humanidade.

Era como trocar um incêndio por um vulcão.

"Estão destruindo o planeta para salvá-lo", pensou.

A ironia não tinha mais graça, mas era o suficiente para fazê-la suportar mais um dia.

Ela já havia entregue seu pedido de desligamento. Quando o navio atracasse, ela estaria livre. A palavra “livre” não significava esperança. Era apenas uma possibilidade de ausência.

Com isso em mente, caminhou pelos corredores estreitos até seu quarto. O metal do chão gemeu sob seus pés. A lâmpada do teto piscava como se tivesse medo de apagar.

O quarto era um amontoado de fracassos: colchão mole e molhado, armário quebrado, o cheiro penetrante de peixe podre misturado com óleo queimado.

Quatro anos no mar. Já não notava mais a podridão. O cinza havia se infiltrado nela, nos olhos, nos pensamentos, nas unhas sujas.

Era só mais uma peça do Karyon. Mas diferente das outras, ela já planejava cair fora.

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O dia seguinte chegou sem avisar, como um golpe surdo na nuca. No Karyon, não existia amanhecer. Só o zumbido das máquinas e o estalar metálico do casco envelhecido pela pressão do mar. A lâmpada do quarto de Ishmael acendeu sozinha, lançando uma luz fria sobre sua pele pálida. Ela já estava acordada.

Vestiu o jaleco com mãos lentas, como se vestir significasse aceitar mais um dia naquele ventre de aço.

Enquanto caminhava pelos corredores claustrofóbicos, sentia o olhar invisível das câmeras e sensores que mapeavam cada passo. O navio parecia observar, e julgar.

No setor central, um aviso piscava em vermelho na tela principal: Comparecer à Sala de Comando 3B. Ordem de Prioridade.

Sala 3B. Um lugar onde as ordens vinham com gosto de ameaça.

Ao chegar, foi recebida pelo som constante dos ventiladores e por uma presença já desagradável — o Supervisor Varnes, um homem magro demais, olhos fundos e pele pálida como se já tivesse sido drenado por dentro. Estava ali há mais tempo do que qualquer um. Alguns diziam que nunca havia pisado em terra firme.

— Ishmael — disse ele, com a voz seca, como um pano sendo torcido. — Temos um desvio de tarefa hoje. Você irá para o setor de despacho.

Ela franziu o cenho, mas não falou de imediato.

— Isso não é minha função. Eu opero as bombas de dispersão.

— O nosso funcionário infelizmente sofreu um acidente e estamos sem ninguém para isso — Os olhos dele não piscavam. — O setor precisa de alguém que saiba obedecer sem fazer perguntas.

Ela hesitou. As engrenagens dentro dela giraram, pesadas. Algo estava errado, mas no Karyon, tudo sempre estava. Ela não tinha ouvido falar de nenhum acidente, claro, ela não ficava perto dos outros funcionários para saber e o navio raramente comunicava essas coisas.

— Entendido. — respondeu, por fim.

Desceu até os níveis inferiores do navio, onde o cheiro mudava. Não era mais o óleo e o sal que impregnava tudo. Era algo mais... estagnado. A umidade ali era espessa, e as luzes tremeluziam como se piscassem código Morse.

O setor de despacho parecia mais com um necrotério industrial: paredes escuras, maquinário antigo, um fosso largo no centro da sala. Era ali que lançavam o material “não-reaproveitável” ao mar.

Ishmael recebeu instruções num terminal: acionar o protocolo de despejo, verificar o nível dos cilindros e autorizar a abertura das comportas externas.

Fez o procedimento sem pensar demais. Era o que sempre fazia. Obediência mecânica. Mas quando desceu para o fosso de inspeção, algo mudou.

O chão tremeu sutilmente. Os cilindros de segurança não estavam travados.

Ela virou-se para subir pela escada lateral... mas a escotilha de acesso se fechou com um estalo.

— Erro de reconhecimento. Setor será despachado. Por favor, mantenha-se imóvel até o fim do processo.

A voz do navio era neutra, como sempre. Mas para Ishmael, soou como uma sentença.

— Não... não! Tem alguém aqui! Eu estou aqui! — gritou, socando a parede com os punhos. — Navio, me reconheça! Sou Ishmael! Código de funcionário 002-47-B! Me tire daqui!

Apenas silêncio.

A estrutura rangeu. O alçapão abaixo do fosso se abriu com um chiado cruel, e a água escura começou a subir. Ela gritou mais alto, os olhos arregalados, os punhos ensanguentados de tanto bater na escotilha fechada.

— VOCÊ DISSE QUE EU IA SAIR! EU IA SAIR! EU PEDI DEMISSÃO, MALDITO!

O navio não respondeu.

Era como gritar com um cadáver.

A água já lhe alcançava os joelhos.

Ela entendeu, enfim.

Não havia saída. Nunca houve. Sua fuga era uma ilusão, o Karyon não permitia deserções.

Ishmael seria dada como perdida e provavelmente morta em um acidente de trabalho. Provavelmente, o mesmo aconteceu com o antigo funcionário se aquela história foi mesmo verdade.

Enquanto o mar a puxava para o fundo, Ishmael não pensava em revolta, nem em vingança. Pensava no irônico riso da noite passada. Ela foi ingênua, de novo.

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O frio veio primeiro.

Não o frio da água — aquele já fazia parte dela agora — mas o frio da solidão.

Ishmael tossiu, engasgando em ar salgado, agarrada a um pedaço de metal curvado, talvez parte de uma comporta ou de algum cilindro deformado pela queda. Seu corpo doía, e o jaleco colava na pele como pele morta.

Ela ergueu o rosto e viu o Karyon ao longe, recortado contra uma cortina espessa de névoa. O navio diminuía lentamente no horizonte, sem se importar.

Nem uma sirene. Nem um aviso. Só o silêncio, um silêncio que parecia rir.

O mar ali era calmo. Calmo demais. Como se não soubesse o que carregar. A água era limpa, azul-acinzentada, sem o fedor do resíduo âmbar. Mas o ar estava errado. Uma névoa branca e densa cobria tudo ao redor. O céu? Nem céu havia. Nem sol, nem nuvens. Era uma massa pálida, opaca e eterna.

Horas passaram. Ou talvez foram minutos, ou dias.

O tempo ali era uma mentira.

E então, o som veio.

Um canto. Grave. Distorcido. Como se uma baleia estivesse chorando dentro de uma catedral submersa, ecoando através de mil paredes de carne.

A pele de Ishmael se arrepiou.

A névoa tremeu.

E então, ela viu.

Não com os olhos. Com algo mais profundo.

A mente se abriu — ou foi aberta.

— Ishmael...?

Era uma voz velha. Uma memória. Um pesadelo.

Ela estava de volta.

De volta ao pequeno apartamento que chamava de casa, onde o mofo subia pelas paredes como uma doença viva. O lugar era escuro, mesmo com as janelas abertas. O ar, espesso de cigarro e promessas quebradas.

Lembrava-se de cada detalhe.

Do sofá manchado com algo que nunca soube o que era.

Da mesa de madeira com uma das pernas quebradas.

Da porta do banheiro que nunca fechava direito.

E dos gritos. Sempre os gritos.

— Você estragou minha vida! — a mãe, segurando uma garrafa vazia, os olhos vermelhos não de choro, mas de cansaço e raiva mal digerida.

— Vai olhar pra mim com essa cara de nojo de novo? Hein? Responde, sua praga!

— Você não devia estar viva... devia ter morrido naquele parto maldito.

O pai era mais silencioso. O que tornava tudo pior.

Era nos silêncios que os piores castigos vinham.

Um tapa sem aviso. Um puxão de cabelo no corredor. Um banho forçado de água fria em pleno inverno, só porque ela derramou leite.

Ela cresceu assim.

Com medo de andar. Medo de falar. Medo de existir.

Aos sete, aprendeu a não chorar.

Aos oito, já sabia como esconder os hematomas.

Aos nove, parou de sonhar.

E agora, ali, flutuando num mar sem fim, tudo voltava como uma onda negra.

Os pais apareceram de novo. Mas estavam diferentes.

Eram altos. Muito altos. Altos demais.

As peles lisas, brancas como porcelana rachada.

Sem boca. Sem nariz.

Apenas um olho. Gigante.

Pulsante.

Aberto onde deveria estar o rosto.

Do fundo daquele olho, a voz saiu.

Mil vozes em uma.

Velhas. Antigas.

Conhecidas e desconhecidas.

— Ela está observando.

Ishmael gritou, mas nada saiu. A garganta seca e o peito esmagado.

Ela caiu. Caiu dentro do olho.

E viu tudo.

Seu corpo.

Sua infância.

O Karyon.

O lixo.

As palavras no casco vermelho:

"Evolução não pede permissão."

E então, acordou.

Tossindo areia e sal.

Estava deitada numa praia escura, feita de areia grossa e negra como carvão. O céu seguia branco e morto.

Mas havia terra. E havia algo mais.

Lá, no extremo da praia, envolto numa silhueta de árvores secas como ossos, havia um farol.

Alto. Torturado pelo tempo. A luz no topo apagada.

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