Ilha dos corações partidos.

A brisa era fraca, fria, mal o suficiente para mover os cabelos molhados de Ishmael. O gosto salgado ainda repousava em sua língua, e cada passo sobre a areia deixava marcas fundas, apagadas lentamente por um mar que vinha e voltava sem pressa.

Não havia sol, apenas uma luz pálida filtrada pela neblina constante, como se o céu estivesse coberto por uma película espessa e opaca. À sua frente, distante, um farol abandonado se erguia como um monumento esquecido, imóvel e cego, rompendo a monotonia da paisagem com sua silhueta retorcida pelo tempo.

Tudo ao redor era dominado por tons acinzentados. Não havia cores. Não havia sons. Era como andar dentro de um sonho onde tudo estava suspenso, flutuando entre a vida e a morte.

Ela não sabia onde estava, e essa incerteza já deveria tê-la aterrorizado. Mas o que sentia era algo diferente — uma calma fria, como se, de algum modo, ela já soubesse que o pior não tinha passado. O vazio ao redor não era acolhedor nem hostil. Era apenas… presente. Como uma presença que não fala, mas observa.

Foi nesse silêncio esmagador que avistou a vila. Casas simples, muitas delas de madeira escura, cobertas por musgo e tempo, erguiam-se próximas umas das outras, encurvadas, como se buscassem calor no corpo da vizinha.

Não havia movimento. Nenhuma porta rangendo, nenhuma janela entreaberta. Apenas a sensação de que, em algum momento, alguém viveu ali — e partiu sem deixar sinais.

Ela atravessou o limite da vila com passos cautelosos. O ar parecia mais denso, mais úmido. Entrou na primeira casa que encontrou aberta. O cheiro era de madeira velha, poeira e sal. A sala de jantar estava intacta, como se um jantar tivesse sido interrompido pela ausência de fome. Pratos fundos, agora secos e rachados, ainda estavam sobre a mesa. Uma toalha de tecido grosso cobria metade da superfície, manchada por algo que o tempo tornara indistinto.

Sentiu os olhos pesarem quando os pousou sobre o corpo escorado no canto da parede. Um homem de meia idade, com a cabeça pendida para trás e a expressão tranquila demais para alguém morto. A pele, pálida e sem vida, contrastava com a posição quase natural em que havia caído. Nenhum sinal de luta. Nenhum sangue.

No colo do cadáver, um diário de capa de couro. Ela o pegou e o abriu com cuidado, como se tivesse medo de quebrar o som mudo da casa. As páginas estavam úmidas, mas legíveis. As anotações eram curtas, escritas com caligrafia firme.

Dia 2 — O som voltou hoje à noite. Foi mais grave do que na noite anterior.

Dia 4 — Minha esposa acordou gritando. Disse que algo a chamava da água.

Dia 6 — As crianças choram mesmo dormindo. Eu também ouvi o som, mas fingi que não.

Dia 7 — A vizinha desapareceu. A porta estava trancada por dentro, mas ninguém viu nada.

Dia 8 — Se isso continuar, ninguém vai restar pra manter o farol aceso.

Ishmael fechou o diário devagar, deixando-o onde estava. O ar parecia mais frio dentro daquela casa, mesmo sem vento. Havia algo naquelas palavras que permanecia nela como um eco. Saiu em silêncio, atravessando o centro da vila até outra construção, uma casa menor, com a porta entreaberta. O ranger leve quando empurrou foi o primeiro som que ouviu desde que acordara naquela ilha. O interior estava escuro, mas seus olhos já haviam se acostumado com a penumbra. Duas camas ocupavam o quarto principal. Uma delas manchada com sangue seco, a outra ainda arrumada. Sobre a cômoda, outro diário, esse mais fino. Ishmael o abriu.

“Não durmo faz três dias. A luz no céu não pisca mais. Meu pai chorou ao ouvir o som. Algo está vindo. Algo que ninguém vê. Apenas sonha. Apenas ouve.”

Ela sentiu um aperto no estômago. O tipo de medo que não vem do que se vê, mas do que se sente. Medo da repetição. Do eco. De estar trilhando os passos de alguém que não teve volta. O farol permanecia distante, mas agora, parecia chamá-la de forma sutil. Como um ímã invisível, atraindo-a sem violência, apenas insistência.

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Enquanto andava de volta à trilha que levava para a colina onde o farol se erguia, percebeu o peso da solidão finalmente tocando seus ombros. Não o tipo de solidão que ela buscava em seu trabalho, mas uma ausência real. O tipo que te faz duvidar da própria existência. Pela primeira vez em muito tempo, Ishmael desejou não estar sozinha. Nem para ser salva, nem para ser ouvida. Apenas... para que alguém estivesse ali e confirmasse que o mundo ainda existia em volta dela.

Subindo a colina, vendo as flores e árvores mortas, além de olhar em volta para o oceano e ver uma vastidão acinzentada. Ishmael estava triste.

Ao ver a porta de madeira ela tentou abrir, mas estava enterrada, mas não trancada. Então Ishmael tomou distância e bateu com seu ombro, a porta não se mexeu mas Ishmael soltou um gemido de dor…

— Tsc! Que inferno…

Ela respirou de novo, foi mais longe e correu de novo. Mais uma vez sem sucesso, mas ela não desistiu, tentou mais duas vezes, na terceira, a porta não apenas abriu, ela caiu no chão.

— Finalmente…

O cheiro que a recebeu era de madeira úmida, sal e poeira antiga. O interior era apertado e espiralado, com uma escada que se enroscava por dentro da torre, sumindo na escuridão acima. Ela hesitou por um instante, escutando — mas não havia nada além do som abafado de seu próprio coração.

Começou a subir.

A luz fraca que entrava por janelas minúsculas mal era suficiente para guiar seus passos, mas ela não parou. Quando finalmente alcançou o topo, o cenário não era muito diferente do que esperava: vidro sujo, estruturas metálicas corroídas, restos de ferramentas e mobília coberta de poeira. A cúpula do farol ainda estava intacta, mas claramente sem funcionar. Em uma das extremidades, havia uma cama pequena, encostada junto a uma parede manchada de umidade. Ao lado, uma mesa onde se acumulavam papéis amarelados, mapas enrugados e cadernos embolorados. Mas nada chamava a atenção imediatamente.

Ishmael se aproximou da cama, afastando o lençol encardido com as costas da mão. Era fina, quase frágil, como se pudesse desmanchar com um movimento mais brusco. Sem saber exatamente o porquê, ajoelhou-se e olhou debaixo dela. Por um instante, viu apenas o escuro. Mas ao tatear com cuidado, seus dedos tocaram algo firme, retangular e de couro áspero. Puxou com cuidado: outro diário.

Este estava mais deteriorado que os outros. A capa estava marcada por umidade e bordas descascadas, mas ainda era possível ler o conteúdo com algum esforço. As páginas estavam cobertas por uma caligrafia tensa, mais apertada e irregular conforme avançava.

“Dia 31 — A névoa não se dissipa. Olhei por horas e vi algo... movendo-se no horizonte. Algo grande. Era como uma sombra sob a água, com uma forma que não consigo descrever. Parecia algo errado.”

“Dia 34 — Às vezes, quando fecho os olhos, vejo olhos me olhando de volta. Não consigo descansar. As paredes rangem como se alguém respirasse dentro da torre. Tenho medo de ligar a luz à noite. E se ela iluminar algo que não devia ser visto?”

“Dia 37 — Sonhei que o mar sussurrava palavras em uma língua que não existe. Acordei chorando sem saber por quê. Acho que não estou mais sozinho aqui.”

Ishmael leu até a última linha com os olhos semicerrados, o ar agora preso em sua garganta. Havia algo naquelas palavras, principalmente na que se referia a olhos, ele teve aquele sonho esquisito que terminou com um olho enorme. A hipótese de ser os mesmos olhos não fugia de sua mente.

Lentamente, ela se levantou. O vento lá em cima soprava mais forte, batendo contra os vidros sujos com um lamento contínuo. O céu estava ficando ainda mais pálido, com a noite prestes a engolir o que restava do dia. Ela olhou ao redor. Não havia muito o que fazer. A vila era um lugar morto. O mar, um abismo. E agora o farol era o único ponto alto em meio a um mundo que parecia afundar em cinza.

Decidiu que ficaria ali. Pelo menos até o amanhecer — se ele viesse. Enrolou-se com o cobertor velho da cama e se deitou, com o diário ainda entre os dedos, apertando-o contra o peito como se fosse um talismã frágil. O vento zunia do lado de fora, e por um instante, ela acreditou ter escutado novamente aquele canto distorcido, distante, como o lamento de uma baleia ou o sussurro de algo... antigo.

Ela fechou os olhos. E então, quase como se seu corpo fosse puxado para fora da realidade, se viu em outro lugar.

O chão que pisava era frio e brilhante, os corredores se estendiam à sua frente como braços infindos, completamente brancos, silenciosos e assépticos. Não havia janelas, apenas a luz suave e artificial que emanava do teto — uma claridade quase azulada que dava a tudo um ar etéreo, vazio. Ishmael reconheceu aquele lugar de imediato, embora só tivesse estado ali por um dia.

Sua memória retornava como um sonho lúcido, revivendo cada passo com uma nitidez desconfortável. Era a primeira vez que pisava em uma das bases da A.E., pouco depois de ter sido aprovada para trabalhar na organização. Estava cercada de outros novatos, muitos com olhares curiosos, outros nervosos. Alguns usavam mantos, outros trajes formais. Ela, encolhida em seu próprio corpo, não se destacava. Sempre foi assim.

A estrutura gigantesca abrigava laboratórios, instalações de contenção e até mesmo prisioneiros espectrais. Mas ela não podia acessar nada disso. Só os autorizados. Ela era humana, afinal. Apenas humana.

— Vocês estão liberados por enquanto — dizia o homem à frente, uma muralha de músculos com voz firme. — Podem explorar as áreas livres, mas retornem à entrada no horário marcado.

Ele era seu instrutor naquele dia. Encarregado de guiar novos funcionários em sua introdução à base. Entre os novatos, alguns xamãs ainda jovens carregavam seus amuletos, orgulhosos e impacientes. Ishmael evitava contato, como sempre. Ela sabia o que era — e, mais importante, o que não era.

Ela entrou no elevador e subiu até o térreo. Lá de cima, podia ver o gigantesco porta-aviões ancorado nas águas próximas, o campo de treino ao longe, e, no horizonte, uma prisão isolada pela própria natureza — tudo pertencente à A.E. O som do motor do elevador ainda vibrava em seus ouvidos, mas ela estava absorta demais em seus pensamentos para notar o ambiente ao redor.

Apoiou as mãos sobre o corrimão de aço, os olhos se perdendo na vastidão cinza-azulada que a cercava. Vozes vinham em sussurros, fragmentos do passado ecoando em sua mente. Palavras desconexas, memórias difusas. Ela quase não percebeu a presença ao seu lado.

Quando olhou para a direita, levou um pequeno susto.

Um garoto estava ali.

Parecia ter não mais que quinze anos. Sua pele era pálida como marfim, o cabelo negro escorria até quase os ombros, um pouco desalinhado. Mas o que mais chamava atenção eram seus olhos: um verde profundo, frio, e no lugar de cada pupila, o desenho de uma balança minuciosa — um símbolo que parecia observar mais do que ser observado.

Ishmael engoliu em seco, tentando se afastar discretamente. Mas antes que pudesse, a voz dele rompeu o silêncio.

— Qual o seu nome?

Ela hesitou, surpresa, mas respondeu quase num sussurro.

— Ishmael…

Ele pareceu ouvir perfeitamente. Seus olhos se moveram lentamente, mas seu rosto manteve uma expressão neutra. Assentiu uma vez, como se processasse algo.

— Você tem medo de mim?

A pergunta foi direta, cortando o ar como um bisturi. Ishmael piscou, sem saber como responder de imediato. Mas então, de maneira quase automática, disse o que realmente sentia.

— Não… Eu não tenho.

O garoto sorriu. Foi um sorriso pequeno, quase imperceptível, mas havia algo sincero ali. Um traço humano inesperado em meio àquela figura incomum.

— Você é nova?

— Eu tenho 21 — respondeu, confusa pela pergunta.

— Não isso. Quis dizer... aqui.

— A-ah. Sim. Acabei de entrar. Vou trabalhar na área de pesquisa naval.

— Já ouvi que é um inferno. Você tem coragem — comentou, ainda observando o horizonte, como se falasse mais consigo mesmo do que com ela.

— E você...? É de qual setor?

— Sou um xamã.

Ishmael assentiu. Aquilo fazia sentido. Havia algo... além de humano nele. Mesmo entre os outros xamãs que vira naquele dia, nenhum tinha aquela aura estranha. Ele parecia não pertencer a nenhum lugar — e ao mesmo tempo, estar absolutamente em casa ali.

Conversaram por alguns minutos mais, pequenas palavras trocadas entre olhares furtivos. Nada profundo. Mas para Ishmael, foi talvez uma das poucas interações que não a deixou ansiosa. Quando ele se virou para ir embora, deixou uma última frase.

— Meu nome é Aylin. Eu espero brincarmos juntos algum dia, Ishmael.

E então sumiu, como se nunca tivesse estado ali. Restou apenas o som do vento.

— Brincar…? — ela repetiu, quase sem voz, sem entender o significado por trás daquelas palavras.

Mas antes que pudesse refletir mais, a realidade tremeu.

Flashes de luz surgiram ao seu redor, violentos e rápidos. E então, um único e imenso olho surgiu diante dela. Um olho que parecia fitar sua alma, seu passado, seu futuro — tudo de uma vez.

Ela acordou com um leve sobressalto, encarando o teto do farol.

A luz do dia escorria por entre os vidros embaçados. A noite havia passado.

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