O cheiro de ferrugem ainda impregnava o ar quando Ishmael abriu os olhos. O som monótono das ondas quebrando contra as pedras abaixo do farol era a única constante naquele mundo que parecia em ruínas. Por um instante, ficou deitada ali, encarando o teto desgastado, tentando agarrar as últimas imagens do sonho que a acordara.
Mas tudo se desfez tão rápido quanto veio.
Ela se sentou devagar, esfregando os olhos. Seu estômago roncou de maneira dolorosa. Fazia um tempo que ela não comia nada, nem uma migalha. O mundo não oferecia mais luxo — às vezes, nem mesmo migalhas.
Com passos lentos, ela desceu a escadaria do farol. Cada degrau rangia sob seu peso, e o ar parecia ficar mais frio conforme se aproximava da base. Ao sair, os olhos buscaram instintivamente o céu. Nenhuma nuvem. Nenhuma ave. Nenhuma esperança.
Ela seguiu pela trilha que serpenteava entre rochas e arbustos secos, voltando em direção à vila esquecida. O local ainda tinha estruturas de pé, ainda era o lugar mais próximo de alguma chance de encontrar comida.
O caminho era longo e silencioso. Ishmael passou por uma ponte improvisada feita com pedaços de metal e madeira velha, que balançava perigosamente a cada passo. O sol mal aquecia, e a fome já embaralhava seus pensamentos. Ela falava sozinha às vezes, baixinho, como se ouvisse alguém caminhando ao seu lado.
— Só mais um pouco. Talvez hoje eu ache alguma coisa... Só algo que não esteja podre.
Mas o mundo não era gentil. E ela já sabia disso, tudo estaria podre.
Chegando à vila, encontrou os restos do que um dia foi um lar. Casas viradas em escombros, janelas quebradas, a madeira apodrecendo com o tempo.
Ela tentou três casas que não havia entrado antes.
Nada. Nada além de poeira, teias de aranha e móveis derrubados. Em uma delas, viu arranhões no chão... ou talvez fosse só paranoia. Não queria saber.
Na quarta casa, finalmente encontrou algo: uma tigela caída no chão com frutas que um dia foram vermelhas e vivas. Agora estavam enrugadas, escuras, cobertas por uma camada viscosa de bolor. Ela hesitou.
— Isso vai me matar...
Mas a fome não dava escolha.
Levou uma das frutas até a boca. O gosto era horrível. Um misto de vinagre estragado com terra. Ainda assim, ela engoliu. Sentiu a garganta arder, mas não parou. Comeu mais duas.
Sentou-se no chão, o corpo curvado, os olhos vazios.
— Vai me manter viva mais um dia... — murmurou, com um sorriso amargo.
E naquele mundo, um dia a mais era tudo o que se podia pedir.
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Ao sair para fora com a mão em sua barriga, Ishmael decide andar mais hoje, após caminhar pela ilha que não era exatamente muito pequena, ela achou algo que chamou sua atenção.
Tinha uma casa maior, bem maior que as outras, em uma região mais afastada. Pela primeira vista parecia um tipo de igreja.
A porta não estava fechada, um pouco de força e a grande porta de madeira se abriu, revelando um tipo de altar de adoração, junto de cadeiras de madeira em volta.
A imagem era um enorme olho com asas em volta. Ela estava na capela, mas parecia ter feito por cima de uma outra imagem. Não tinha muita coisa para ajudar naquele andar.
Tudo que Ishmael deduziu foi que aparentemente, aquela ilha adorava uma divindade e a trocou por outra.
— Talvez o olho que estavam vendo…?
Ela se lembrou dos diários, esses olhos estavam bastante presentes em sonhos. Aconteceu com ela mesma.
Ela viu uma outra porta atrás do altar, onde levava a um andar superior, de novo, um pouco de força e a porta se abriu, revelando uma escadaria.
A madeira da escada rangia sob os pés de Ishmael enquanto ela subia. O cheiro de poeira antiga e ferrugem flutuava no ar, misturado com algo levemente doce — talvez flores secas, ou apenas o tempo. Os degraus estavam cobertos de cinza e lascas de tinta.
O andar superior não era tão grande quanto ela esperava. Três quartos estreitos se alinhavam, todos com portas entreabertas, e mais adiante havia um pequeno salão com uma mesa baixa e uma prateleira inclinada, coberta de livros embolorados e papéis soltos.
Ela entrou devagar no primeiro quarto.
Havia desenhos nas paredes. Muitos. Todos feitos à mão, com carvão, caneta ou sangue — era impossível saber. Repetiam-se os mesmos símbolos: o olho com asas, às vezes lacrimejando, às vezes rachado no centro. Em outros, havia figuras humanas ajoelhadas, cobrindo os olhos, enquanto uma sombra indistinta pairava sobre elas. Em um dos cantos do quarto, havia uma escrita tremida:
"Tiramos o nome dele do altar, mas os sonhos não pararam."
Ishmael sentiu um arrepio subir pelas costas. Foi até o segundo quarto. Lá, encontrou uma cama quebrada, um crucifixo caído e vários papéis empilhados em um canto. Pegou um dos cadernos. A capa estava mofada, mas dentro, a caligrafia era nítida o suficiente para ser lida:
“Não era um deus cruel… não no início. Era só o mar. E nós rezávamos para o mar. Para as ondas. Para os ventos. Mas então, quando eles pararam de responder e começaram a desaparecer, algo atendeu no lugar deles.”
“O olho veio primeiro em sonhos. Depois nas águas. Depois nas paredes. Depois… dentro de nós.”
“As crianças nasciam com os olhos brancos por dias. Algumas nunca voltaram a ver.”
Ishmael fechou o caderno. A palma da sua mão estava suada. Ela se sentia observada, agora pela primeira vez ela estava começando a entender melhor esse sentimento.
No último quarto, havia um espelho quebrado e um diário com a capa de couro. Ela o abriu e viu rabiscos — mapas, possíveis trajetos marítimos, nomes de navios riscados. Um dos trechos chamava atenção:
“Viemos de todos os cantos. Náufragos. Desviados. Perdidos. Ninguém nasce aqui, todos chegam. Essa ilha nos escolhe. Ou nos prende.”
“Acreditávamos que havíamos encontrado salvação. Mas talvez nunca saímos da tempestade.”
“ELA NÃO NOS DEIXA SAIR”
Ela se apoiou na parede. A conexão era óbvia agora. O povo daquela ilha era feito de restos: sobreviventes do mar, perdidos de outros mundos, reunidos por algo além do acaso.
E esse algo… talvez não fosse um deus.
Ela voltou ao salão central. A prateleira ainda pendia para um lado, como se prestes a desabar sob o peso dos anos. Com cuidado, deslizou os dedos sobre os livros ressecados, puxando um deles quase ao acaso. Assim que o fez, uma folha se desprendeu de dentro, flutuando suavemente até o chão. Ishmael a apanhou.
Era um mapa.
Feito à mão, em traços irregulares, mas ainda legível. Entre as anotações, um "X" se destacava, marcado com força sobre uma porção de areia na costa sul da ilha — um lugar onde ela ainda não tinha estado. Ao lado do X, uma anotação em letras pequenas: “escondido entre as pedras”.
Mesmo sem saber o que esperava, ela partiu. O mapa balançava em sua mão enquanto atravessava o terreno irregular da ilha, desviando de raízes grossas e troncos retorcidos.
Entre duas grandes formações rochosas, ela encontrou uma abertura parcialmente coberta por musgo e areia. Um cheiro salgado e metálico escapava dali.
Dentro da gruta, o ar era pesado e úmido. As paredes estavam cobertas de limo, e a única luz vinha por uma abertura no teto, fina como uma lâmina. À medida que descia, o som dos próprios passos reverberava nos corredores estreitos até que se deparou com o que parecia ser um antigo espaço subterrâneo — não construído, mas esculpido pela água e tempo.
E no centro… estava ela.
Uma poça de água perfeitamente parada, como um espelho, com uma placa de madeira cravada no chão ao lado. A madeira estava escura, como se encharcada de algo muito além da água. Escrito em letras tortas, quase rasgadas, em um vermelho que Ishmael não queria confirmar se era tinta:
“Tem um monstro ali embaixo.”
Ela ficou ali, parada. O som de gotas ecoava pelas paredes. Seu coração batia forte demais. A boca seca. O ar parecia mais frio, como se o chão ali embaixo respirasse com ela.
Hesitante, Ishmael se aproximou. Ela se inclinou devagar, o cabelo castanho caindo ao lado do rosto, e fitou a poça.
Nada se movia.
Então, a superfície vibrou sutilmente com sua presença.
E ela viu. Ela mesma.
O reflexo era o seu. Mas... algo nele parecia errado. A água mostrava sua face exata, mas com os olhos um pouco fundos demais, os traços sutilmente desfocados — como se fosse ela mesma em um pesadelo. O reflexo piscou ao mesmo tempo. Respirou ao mesmo tempo. Mas havia uma ausência de alma naquela imagem. Uma quietude artificial.
— Essa sou eu…? — ela não acreditava, quando foi que ela ficou assim?
Ishmael franziu o cenho. Por um instante, esperou ver dentes, tentáculos, alguma forma disforme emergindo dali.
Mas tudo que havia era ela mesma. Uma pessoa solitária, acabada… sem alma. Qualquer um que olhasse para ela iria deduzir que ela já havia desistido de viver há muito tempo.
O peso da placa escrita em sangue se intensificou.
“Tem um monstro ali embaixo.”
— …
Seu rosto se contorceu em tristeza. Não havia segredo. Não havia revelação mística. Nenhuma entidade oculta ou resposta milagrosa. Apenas um reflexo. E talvez fosse esse o verdadeiro terror da mensagem: o monstro que todos temiam... era o que eles viam quando olhavam para si mesmos.
— Então… era isso…? Só isso?
As palavras saíram num sussurro vazio.
O povo daquela ilha havia enlouquecido. Com medo, fome, isolamento. Passaram a ver monstros nas sombras, nos céus, nas águas — e por fim, dentro de si. E foi isso que deixaram para trás.
Ishmael se afastou devagar, o som dos próprios passos ecoando em seu peito como marteladas. Seus olhos estavam vazios, secos, e dentro de si, o silêncio parecia gritar. Ela saiu da gruta sem dizer nada, como se algo tivesse se quebrado por dentro — mais uma vez.
O céu lá fora continuava nublado, mas havia uma nova sensação no ar. Um peso. Um aviso.
Ela parou.
Algo a fez olhar para o mar.
Seu estômago revirou. Os pelos do corpo se arrepiaram. No horizonte — onde antes só havia o vazio do oceano — havia agora uma silhueta colossal. Uma... montanha?
Não. Não era uma montanha. Ishmael tinha certeza absoluta de que aquilo não estava lá antes. Ela começou a andar na direção da água, com passos trêmulos, como se seu corpo estivesse agindo por conta própria.
A neblina, espessa e imóvel até então, começou a se dissolver como fumaça diante de um incêndio invisível. O mar, que até poucos segundos atrás estava imóvel, se agitou de forma abrupta. Ondas violentas começaram a se formar, rasgando a superfície azul com fúria.
Então, algo emergiu.
Uma calda subiu ao céu, gigantesca, descomunal, quebrando as nuvens como se não fossem nada. Era branca como neve, translúcida em partes, e os veios vermelhos que a cortavam pulsavam como se vivessem por si. A calda subiu e — com uma lentidão implacável — desceu. Quando tocou o mar, o impacto foi ensurdecedor. A onda que se formou atingiu a praia com uma força bruta, lançando chuva salgada contra o corpo de Ishmael.
Ela cambaleou. O mundo parecia estar desabando.
E então…
Um olho se abriu na “montanha”.
Enorme, profundo, vermelho como sangue coagulado. Olhou para ela. Não para a ilha. Não para o oceano. Diretamente para ela.
Ishmael sentiu como se tivesse sido perfurada. Aquilo não era um olhar — era um mergulho direto em sua alma. Ela ficou imóvel. Sem respirar. Sem piscar.
E então... aquilo mergulhou.
As águas se ergueram.
Um som impossível atravessou o ar, agudo e profundo ao mesmo tempo, fazendo a terra estremecer sob seus pés.
E do horizonte… surgiu o tsunami.
Alto como o céu. Um muro de água e morte vindo direto para a ilha.
Mas o terror não estava só na água.
Estava dentro dela.
A criatura nadava dentro da onda — a baleia, se é que ainda se podia chamar de baleia — mais pálida do que qualquer coisa viva, como um fantasma esculpido em neblina. Era maior do que qualquer estrutura que Ishmael já vira, maior que o farol, maior que qualquer montanha.
Sua boca se abriu. Lentamente. Dentes brancos como ossos, afiados, alinhados como muralhas, revelando um vazio escuro que parecia não ter fim. Era como se a própria morte tivesse dentes.
Ishmael caiu de joelhos. O som de seus próprios pensamentos desapareceu. Não havia lógica. Não havia ciência. Aquilo era um erro no mundo. Um abismo com carne.
O farol... não resistiria. Nada ali resistiria.
Ela cambaleou de pé, girando o corpo com dificuldade. Seus músculos não respondiam direito, mas o instinto tomou o controle. Correu.
Correu como se sua alma estivesse prestes a ser arrancada do corpo.
O rugido da água crescendo atrás dela. O som de destruição iminente. Seus pés deslizavam na areia molhada. Entrou na gruta como um raio, escorregando nas pedras molhadas, batendo o ombro, ofegante, enlouquecida de medo ela não estava sentindo dor.
A poça estava ali.
Imóvel. Calma.
Como se zombasse de tudo.
Ela hesitou. Um único segundo.
E então — sem pensar, saltou.
Seus pés tocaram a água. E num instante, ela desapareceu.
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