O impacto não veio.
Nem frio, nem escuridão.
Apenas um salto, e então... o rangido de madeira e o cheiro salgado do mar.
Ishmael ofegou.
Estava deitada sobre um convés úmido, o cabelo grudado no rosto e as roupas coladas ao corpo. O barco balançava suavemente, cortando um oceano parado demais. Sem vento, sem onda, sem som.
Ela se levantou em choque, os olhos trêmulos varrendo o horizonte.
Ishmael cambaleou, o corpo tenso, os olhos percorrendo cada canto com medo de que... aquilo tivesse vindo atrás. A baleia. O olho que não piscava.
Ela recuou até a amurada, respirando rápido, o coração latejando no pescoço.
— Sai... sai... SAI! — gritou.
Mas não havia ninguém. Nenhum som além do eco da própria voz batendo de volta.
E então ela gritou de novo, dessa vez mais forte. Um urro rasgado, um sopro vindo de dentro da garganta, que sacudiu seus ossos. Como se quisesse deixar tudo sair.
E o céu respondeu.
Mas não com som. Com uma presença.
Ela apareceu — desafiando lógica, silêncio e razão.
A Baleia pálida.
Imensa, pairando acima do mar como um eclipse vivo. Seu corpo curvava-se entre nuvens imóveis, e seus olhos... vermelhos.
Ishmael congelou.
Não houve fala. Nenhuma voz soou.
Mas ao encarar aqueles olhos, algo se abriu dentro dela — como se uma lembrança estivesse voltado.
Um nome ecoou sem som, direto em seu peito.
Eliah.
Ela recuou um passo, o coração disparado.
— Não. Eu... eu não sou... — murmurou, o nome queimando em sua mente.
Eliah.
A baleia não se moveu, apenas observou.
E então, como um suspiro, evaporou do céu, levando consigo o peso do momento.
O barco desacelerou, cortando as águas calmas com um som arrastado, quase ritualístico.
Diante dela, erguia-se terra firme.
Mas não qualquer terra — uma cidade feita inteiramente de vidro.
Prédios translúcidos, avenidas que pareciam suspensas no vazio, e um céu que espelhava tudo abaixo, como se o mundo tivesse se virado do avesso.
Ishmael se abraçou.
O nome... ainda ecoava em sua mente como um sussurro que não queria aceitar.
Eliah.
Mas ela resistia com todo o seu ser.
— Meu nome é Ishmael. Só isso…
Sussurrou para si, como uma criança que repete uma mentira para não chorar.
E então, desceu do barco.
Sem saber para onde ir.
Sem entender onde estava.
Mas os pés... já afundavam na segunda mentira.
Ela caminhou por uma avenida larga, onde os reflexos dançavam em cada superfície.
Mulheres sorriam com os lábios, mas não com os olhos.
Homens andavam com pressa, carregando pastas vazias, celulares que não brilhavam.
Crianças apontavam para vitrines com brinquedos feitos de luz, mas não havia som, nem calor, nem toque. Tudo era... cenográfico.
Ishmael se aproximou de uma moça de vestido azul claro, de sorriso fixo, e tentou puxar conversa.
— Com licença...
Mas foi ignorada.
Nada mudou. Nem um piscar. Nem um olhar.
Como se ela não existisse.
Não era assim...
A cidade de vidro não escondia nada — ao contrário, mostrava tudo com brutal honestidade.
A verdade em sua mais pura forma.
As pessoas não vivem. Elas atuam.
— Falsa…
Sussurrou ao olhar para o chão, onde seu reflexo tremia com o peso da palavra.
E caminhou,cada passo ecoava como um grito abafado naquele mundo de espelhos.
Mais rostos, mais fachadas, prédios de vidro, casas de vidro, até mesmo árvores feitas de finos cristais, imóveis demais para serem reais.
Seus olhos começaram a doer.
Você deixou o que é para trás e agora vive de forma...
— Vazia.
Vazia.
Ela olhou para cima.
O céu também era vidro. Ali, flutuando no alto, seu reflexo a fitava — sereno, mas acusador.
— Era isso que você queria me mostrar?
Silêncio.
Mas um silêncio que falava alto, dentro dele, Ishmael sentiu o ar vibrar, se quebrar, se deslocar...
E então tudo tremeu.
Em um piscar de olhos, ela estava em outro lugar.
Areia.
Cheiro de maresia e o som distante de gaivotas e ondas quebrando — como um sussurro vindo de um tempo que já não existe.
Ela reconheceu o lugar.
Sua antiga casa. Pequena, pintada de branco, janelas azuis desbotadas pelo sal do mar.
E lá estava ela, uma criança brincando sozinha na areia. Montando algo que parecia um castelo. Pequeno demais para resistir às ondas.
O céu acima era cinzento.
Uma tempestade se aproximava.
Ishmael — ou Eliah — caminhou, engolindo o nó na garganta.
Cada passo era mais pesado que o anterior.
Seus pais estavam lá dentro.
A luz da sala acesa, sombras passando diante da janela.
Ela correu até a porta.
— Mãe?
— Pai?
Bateu.
Silêncio.
Tentou abrir. A maçaneta girou… mas a porta estava trancada.
— Por favor… sou eu… eu estou aqui fora!
A voz falhou.
Ela olhou para si mesma — a criança desistindo de chamar seus pais, voltou a olhar para o castelinho que acabara de montar.
Ishmael estava começando a ter flashes de memória, ela ainda não tinha tanto medo dos seus pais naquela época.
— Pobrezinha… — disse uma voz suave, quase um lamento. — Você não faz ideia do futuro que te espera.
Ishmael virou o rosto.
A criança parada diante dela — pequena, inocente, com os olhos ainda cheios de esperança — a encarava com curiosidade.
— É tão ruim assim? — perguntou, com aquela voz leve de quem ainda acredita que tudo pode melhorar.
Ela não se permitia mais sentir nada. Estava exausta de tudo. Até mesmo da raiva. Respondeu sem emoção, com frieza quase automática:
— Sim. Não consegue ver? Olhe bem pra mim.
A criança a observou de cima a baixo.
Depois, virou o rosto.
Como se não quisesse ver.
— Então… Eliah vai se tornar você?
— Isso. Você vai.
— Então você admite… você não é Ishmael.
Ela hesitou.
Seu nome. Aquele nome… uma mentira que usou por tanto tempo, tentando sufocar a dor original.
A criança esperou a resposta, mas ela não veio de imediato.
Quando Eliah se tornou adolescente, passou a se chamar Ishmael. As pessoas aceitaram o novo nome sem fazer muitas perguntas. Era mais fácil assim.
Era uma tentativa desesperada. Uma fantasia.
Talvez se mudasse de nome, o mundo deixasse de tratá-la como lixo. Talvez, se fosse outra pessoa, pudesse respirar.
Ser outra coisa.
Ser… qualquer coisa que não fosse ela.
Ela caiu de joelhos diante da criança, os ombros arqueando como se carregassem uma vida inteira de entulho.
— Eu… não sou.
Silêncio.
A criança a olhou nos olhos, e perguntou com doçura, mas também com uma firmeza incomum para sua idade:
— Então… quem é você?
— … O que quer dizer com isso?
— Eu nunca seria como você. Por isso, você não pode ser eu.
Ela piscou, como se tivesse levado um tapa.
— Eu ainda quero ver o mundo. Quero conhecer lugares, tocar o céu, correr até o mar e gritar sem ninguém me calar. Quero sonhar… quero amar alguém… Eu ainda quero ser feliz.
A dor apertou no peito dela. Um gosto amargo subiu até a garganta.
— Não é tão simples assim.
— Então o que você quer?
— Eu… não sei.
— Quer morrer? É isso? Essa é a sua resposta para tudo? Para os dias em que ninguém te ouviu? Para os gritos que você guardou? Para as cicatrizes que você escondeu?
Ishmael não conseguia falar.
A garganta secou. O coração batia devagar demais.
— Porque, se quisesse mesmo, teria ficado na ilha. Igual os outros. Teria deixado a corrente te levar. Mas você correu. Você lutou. Você chegou até aqui. Então, o que você quer?
— Eu… eu só queria ser livre.
A criança sorriu. Mas era um sorriso triste. Um sorriso de quem entende uma mentira.
— Mentirosa.
O silêncio que se seguiu parecia pesar toneladas. A palavra ecoou em sua mente como um martelo partindo um espelho ao meio.
— Você não quer liberdade. Você quer vencer.
Você quer esmagar tudo que tentou te destruir.
Você quer vencer… e continuar vencendo.
E isso não é liberdade, isso é um inferno.
A criança cresceu. A luz em seus olhos diminuiu, e sua pele perdeu a cor. Os olhos deixaram de ser olhos.
Cresceu mais, os traços suavizaram, sumiram.
Até que se tornou uma criatura imensa. Branca, lisa, flutuando no céu escuro, como uma baleia feita de ausência, nadando num vazio de nuvens quebradas.
A baleia não falava, mas seus pensamentos surgiam como inscrições cintilantes no próprio espaço, vibrando entre elas:
Mulher que sabe tudo… mas não sabe quem é.
Diga-me. Como ousa continuar viva?
O chão desapareceu.
O mundo ao redor se desfez.
Tudo se descolou da realidade.
Então, vieram as lembranças.
Flashes, como estilhaços incandescentes cortando sua mente.
Ela nascia. Crescia. Fazia escolhas. Morria.
E repetia.
Crescia. Corria. Era machucada. Morria.
E repetia.
Vidas paralelas. Possibilidades. Dimensões sobrepostas como camadas finas de vidro quebrando uma a uma.
Ela sentia tudo.
Todos os fracassos.
Todas as palavras que não disse. Todos os insultos, olhares, punhos, abandonos. Tudo de uma só vez.
As vozes a invadiam por todos os lados.
Você nunca foi suficiente.
Você sempre falhou.
Você nunca foi amada.
Você não é ninguém.
Ela gritou. Mas ninguém ouviu.
Ela chorou. Mas não havia lágrimas.
Estava se desfazendo.
Seu corpo encolheu. Ela se abraçou, curvada, afundando em si mesma, como se pudesse se esconder da própria existência.
Ela começou a ser puxada para baixo, como se estivesse sendo afogada em lamentos. A grande baleia a observava sucumbindo, se perdendo completamente, com um olhar apático.
E então, quando tudo era só escuridão…
…veio a luz de um farol…
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O grupo estava comemorando. A pescaria tinha sido um sucesso, e os pescadores daquele barco riam alto, celebrando a bolada que haviam conseguido.
Mas, afastada do burburinho, uma jovem de cabelos castanhos permanecia sozinha na sala de direção, lápis na mão, concentrada em seu caderno de desenho. Ela gostava de desenhar. Mais do que isso, precisava desenhar — como se cada traço a mantivesse viva.
O capitão do barco notou sua ausência e foi até ela. Era algo que fazia com frequência, como quem sentia que ela precisava ser lembrada de que não estava sozinha.
— O que você está desenhando agora?
— …A paisagem. — respondeu sem tirar os olhos do papel.
O desenho era absurdamente detalhado. Real demais. O capitão se surpreendia sempre, embora tentasse esconder.
— Você com certeza sabe das suas coisas, Eliah.
Ela esboçou um sorriso tímido. Aquele homem se chamava Ishmael. Aos 13 anos, Eliah havia conseguido um lugar na tripulação dele, auxiliando em pequenas tarefas da pesca. Era um ambiente barulhento, cansativo… mas gentil. Pela primeira vez, alguém a olhava com bondade. E ela se permitia retribuir.
Ali, mesmo em silêncio, ela se sentia feliz.
— Ishmael?
— O que foi?
— Tem como eu ficar com você? Nunca mais voltar pra terra?
Ele ficou em silêncio. Pensou com cuidado, como sempre fazia. Era esse tipo de homem — o tipo que nunca dava uma resposta vazia.
— Teria sim. Só se eu te adotasse… mas o problema é que seus pais ainda estão vivos. E aí complica.
— …Você pode matar eles?
Ele deu uma gargalhada rouca, entre o espanto e a ternura.
— Claro que não. Você é terrível, menina. Não tem outro jeito?
— Se você oferecer dinheiro pra eles… bastante dinheiro. Mas acho que eu não valho tanto assim. — murmurou, com os olhos baixos. — Mesmo que eles vendam, vão pedir muito.
— Eu acho que você vale mais do que pensa. — disse ele, com uma firmeza que fez seus olhos tremerem. — Mas se é isso que você quer… saiba que Ishmael não foge. Ishmael não desiste.
Ela o olhou por um tempo. Um sorriso pequeno e contido escapou. Aquele homem rude e bondoso era o mais próximo de um pai que ela teve. E mesmo sem dizer, ela o amava como tal.
Foram os melhores dias de sua vida. Os risos no convés, as brincadeiras, o som do mar… Ela era alguém ali. Ela pertencia àquele lugar.
"Nós somos livres como piratas."
Era o que Ishmael dizia. E ela acreditava.
Mas então, o mar rugiu. E os céus caíram.
Uma tempestade. Um ataque. Saqueadores surgiram entre as ondas, e o barco, já instável, virou um campo de guerra. Eles não estavam preparados.
Um por um, seus companheiros tombaram.
E então, um arpão veio na direção de Eliah.
Por um segundo, ela congelou. Tudo dentro dela parou. Seus pensamentos começaram a fugir: flashes da infância, do abandono, dos dias em que desenhava para esquecer a dor, dos sorrisos recentes. Um segundo que durou uma vida.
Ela aceitou.
Achou que era isso. Que o sofrimento finalmente acabaria. Que talvez fosse até melhor.
Mas então… ela viu.
Não havia paz naquilo.
Nenhuma libertação.
Só medo.
Medo do fim. Medo do esquecimento.
Medo de nunca mais ver Ishmael, de nunca ter dito o que sentia.
Ela não queria morrer. Não assim. Não agora.
Ela sentiu arrependimento. Um desespero sufocante.
"Eu não quero morrer."
Mas era tarde demais.
Ou… deveria ter sido.
O som do impacto veio, mas não em seu corpo.
Ela abriu os olhos, surpresa e o que viu foi um pesadelo.
Ishmael. Com o arpão cravado fundo em seu estômago, de braços abertos como uma cruz.
Diante dela.
— …o… o que você está fazendo?! Ishmael! — gritou, com a voz tremendo, como se gritar fosse arrancar aquele arpão dali.
Ele não respondeu. Não podia. Mas também… não precisava.
Os olhos dele diziam tudo.
Alívio.
Ele conseguiu.
Ela estava viva.
E Eliah sentiu seu peito quebrar.
Porque agora sabia o que sentia.
Sabia o que perderia.
Sabia que nunca mais ouviria aquela voz zombando, aquele riso rouco, aquela promessa simples:
"Ishmael não foge."
Mas ele estava partindo. E ela não podia fazer nada.
Com as pernas fracas e a visão turva, Eliah cambaleou. Se arrastou e caiu no mar.
Por algum milagre, sobreviveu.
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Novamente, Eliah abriu os olhos. Ela estava em pé sobre a água cristalina.
Diante dela, Ishmael. Alto, cabelos ruivos e o mesmo olhar de deboche de sempre.
Eliah olhou para baixo. O mar se movia sob seus pés, mas ela não afundava. Mais uma vez, caiu de joelhos. Dessa vez, em completo silêncio.
— Eliah. Está tudo bem em desistir — disse aquele Ishmael, com a voz suave.
Ela olhou para suas mãos abertas e as fechou com força.
— … É… é mesmo?
Vidas inteiras correram por dentro dela em um segundo. Sofrimentos que pareciam durar séculos. Dias sem ar, sem pausa, sem saída. Mas no meio de tudo aquilo… ela viu algo. Uma luz. Um farol. Algo que não gritava ou implorava, apenas brilhava. Ela chorou quando ele se apagou. Mas agora, pela primeira vez, ela conseguia vê-lo de outro jeito.
O rosto de Ishmael, o verdadeiro, preencheu sua mente. Ela lembrou de tudo — dos gestos simples, das palavras, dos momentos em que ele a olhou como ninguém mais jamais olhou.
Aqueles dias com ele tinham apagado o resto. Como se todo o ódio, toda a dor, todo o vazio… não fossem mais tão importantes.
— Meu pai… nunca me diria pra desistir…
O falso Ishmael ficou em silêncio por um instante e então estendeu a mão novamente.
— O que está dizendo? Seu pai nunca se importou com você. O que mais pode fazer agora? Não acha que está na hora de parar? Pegue minha mão.
Francamente… quanto tempo mais eu iria demorar pra entender?
Ela se levantou e, com a mão direita, socou o rosto daquela figura à sua frente. A ilusão se desfez. O rosto virou uma máscara branca com um único olho. Sangue negro escorreu. A criatura caiu no mar.
O oceano tremeu. Ondas gigantescas se ergueram. Do céu, um arpão caiu como uma sentença. Eliah o segurou. Era o mesmo que havia perfurado Ishmael naquele dia.
Seus cabelos castanhos começaram a embranquecer. O vento a envolveu, e, lentamente, ela se sentiu muito leve.
— Não pense que acabou. Eu aceito que fracassei, que errei, aceito minha dor e tudo que sou… mas não pense que você vai me quebrar. Meu nome é Ishmael.
Do horizonte, a baleia branca emergiu. Deformada. Uma massa de carne partida, olhos em chamas, um sorriso rasgado e grotesco sob um único olho vermelho que chorava um líquido escuro.
Eliah a encarou sem vacilar. Pela primeira vez, não fugiu do terror.
— Como eu ouso sobreviver? — ela sussurrou, encarando o monstro. — É simples. Ele se sacrificou por mim. Ele me ensinou a não fugir. Meu pai morreu por mim… e eu carrego o nome dele. Ishmael não foge. Ishmael não desiste.
A baleia gritou em fúria e avançou para devorá-la, movida por puro ódio pela humana que escolheu se levantar apesar de tudo.
Mas Eliah não recuou.
Ela cravou os pés na água, ergueu o arpão com ambas as mãos, e gritou de volta.
— Se o caminho que vou trilhar é um inferno. Que seja! Vou partir ele e você no meio!
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