A monstruosidade que outrora assumia a forma de uma baleia etérea cruzava o mar em velocidade sônica, rasgando a água como papel fino e reverberando o ar ao redor com um estrondo ensurdecedor. Aquilo não era apenas uma criatura — era uma força da natureza moldada em carne branca e olhos vazios. Vinda do horizonte como um furacão faminto, deixava atrás de si um rastro de vento partido e silêncio engolido.
Ishmael era apenas um ponto solitário no centro do oceano, diminuta diante da imensidão viva que se aproximava. O mar a rodeava em todas as direções, calmo demais — como se até a própria água aguardasse o impacto.
Era impossível fugir.
Mesmo se ela corresse com toda a velocidade que seu corpo permitisse não escaparia. Aquilo era inevitável. Um abismo com boca, vindo tragá-la.
Ela não correu.
Firmando os pés na superfície da água — sustentada apenas pela instabilidade do próprio milagre —, cravou o olhar na besta. As mãos apertaram o cabo do arpão com força, sentindo o metal contra sua pele suada. A ponta do arpão foi posicionada à sua frente, em defesa, como um último pilar contra o destino inevitável.
A boca da baleia se abriu em um arco grotesco, revelando fileiras de dentes brancos e limosos que se erguiam como lanças. Uma onda de água foi sugada junto, em um redemoinho horizontal que arrancava ondas do próprio mar. Mas Ishmael manteve-se firme, afundando os pés como se pudesse fincá-los no oceano.
O impacto foi como um trovão.
Os dentes da criatura colidiram com a lâmina do arpão, e Ishmael foi arremessada para trás, arrastada como uma folha ao vento. A pressão era absurda — como se o ar se tornasse concreto ao redor de seu corpo — mas ela não gritou pois não havia dor.
A baleia mergulhou novamente no mar, sumindo entre as ondas. Ela, porém, flutuava. O impulso cessou. O mundo pareceu desacelerar.
Ishmael pairava no ar.
Por um instante, só havia silêncio. O vento cessou, o som da água tornou-se distante, e tudo ao seu redor parecia suspenso — até o tempo.
Ela piscou, confusa.
— Eu consegui...? — murmurou.
Olhou para baixo. O mar se estendia como um lençol infinito sob seus pés, e as nuvens ao redor haviam se afastado, revelando um céu quase etéreo. Ela estava voando. Sozinha. Sem esforço.
Perdeu o equilíbrio brevemente, mas se ajustou instintivamente, impulsionando-se no ar com um leve movimento dos ombros. Ela não sabia o que estava acontecendo, mas algo mudou.
Seus cabelos brancos escorreram pelos ombros enquanto ela se olhava.
Não era mais a mesma.
Não sabia o que havia despertado… mas sentia, capaz, imensa, infinita.
Mas o instante de paz foi quebrado.
Da água abaixo, uma silhueta ascendeu — primeiro como um pilar, depois como um monstro.
A criatura chorava. Não lágrimas comuns, mas um líquido espesso, negro, que escorria como petróleo dos olhos ocos e gotejava sobre as ondas como veneno. Subia novamente, cortando o céu com fome.
Ishmael reagiu sem pensar. Chutou o ar abaixo de si com um estalo, como se o próprio espaço obedecesse à sua vontade. Voou para cima, em direção às nuvens, atravessando camadas de ar como um míssil.
O vento rasgava seu rosto, os cabelos dançavam como chamas prateadas, seus olhos brilhavam depois de tanto tempo.
A criatura a seguia.
Movia-se entre as nuvens como um predador.
Ela se virou, girando no ar com precisão e violência, e lançou o arpão.
A força foi brutal. O próprio ar se dobrou à passagem da arma. As nuvens ao redor se dividiram, abrindo corredores no céu. O arpão atingiu a cabeça da criatura com um som surdo, como uma bigorna afundando carne.
A criatura gritou. Um grito seco, desumano, que reverberou entre os céus. O líquido negro jorrou como sangue quente. Mas Ishmael sabia.
Aquilo não bastava.
A arma era pequena. Um dente contra uma montanha.
E então, como resposta ao seu desejo, algo se materializou.
Uma lança. Não — um colosso de metal sagrado, forjado pela vontade de vencer. A arma perfurou as nuvens como um raio invertido, cravando-se ao lado dela com um impacto que fez o ar vibrar. Ishmael a segurou.
Ela era maior do que tudo que havia empunhado.
Com um grito que mais parecia uma oração feroz, balançou a lança. A criatura desviou, mergulhando. Mas não importava mais.
A lança mudou.
Transformou-se diante de seus olhos. Tornou-se um arpão de quatro pontas, adornado com símbolos antigos, resplandecente de energia. E, com um movimento fluido, ela o lançou.
O arpão desceu como julgamento.
Rasgou os céus. Rompeu nuvens. Mergulhou no mar. E atravessou a baleia com um som de fim.
A criatura gritou. Uma vez. Duas. Mil vezes. Mas Ishmael já estava sobre ela.
Ela puxou o arpão. E o cravou de novo.
Puxou. E cravou. Puxou. E cravou.
De novo. E de novo. E de novo.
O ritmo era frenético, implacável, monstruoso. Seus movimentos ganhavam velocidade com cada golpe, como se estivesse alimentando uma máquina de morte. O sangue negro explodia como fumaça líquida ao redor.
"Vá embora.”
A palavra se repetia como uma batida dentro dela.
"Vá embora, vá embora, vá embora, vá embora."
A criatura se contorcia. O céu parecia ruir. Mas então...
Ela gritou.
Um rugido final, gutural, que não atravessava apenas os ouvidos, mas o espaço entre mundos. A realidade trincou.
E quebrou.
O céu estilhaçou-se como vidro, em pedaços translúcidos que flutuavam ao redor. Ishmael caiu — não em direção ao mar, mas ao vazio.
Um novo lugar.
Um cosmos escuro, onde estrelas distantes piscavam como olhos, e galáxias giravam como faróis esquecidos.
Ela ficou boquiaberta, incapaz de dizer uma palavra.
O arpão em sua mão se contraiu, como se sentisse o novo plano em que haviam caído.
Mas antes que pudesse entender onde estava, foi engolida.
Uma criatura branca, fina como um fio e maior do que tudo o que já vira, surgiu por baixo.
Silenciosa. Suave. Como um sussurro.
Devorou Ishmael como um buraco negro.
E o mundo ficou negro.
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Ishmael abriu os olhos com um suspiro contido.
Ao seu redor, não havia céu, chão, vento ou som — apenas um branco absoluto, infinito, onde tudo era claro apesar da ausência de luz. O tempo não existia ali. Não havia peso, nem pressa. Apenas a existência.
Ela se ergueu devagar.
O arpão ainda estava em sua mão, mas agora era leve como um pensamento. Seus pés não tocavam o solo, mas ela caminhava. E cada passo deixava um leve som atrás de si — como ondas quebrando suavemente nas pedras da memória.
A cada passo, o branco ao redor se partia como vidro fino, revelando pedaços de sua vida, como se o próprio tempo quisesse vê-la lembrar.
À esquerda, surgiu a primeira imagem: um bote de madeira balançando em águas calmas. Uma Eliah jovem, sorrindo, pescava sob o olhar paciente de um homem de barba espessa. A cena estava suspensa, como uma pintura viva sem som. Ela parou, olhando com ternura.
Seu peito doeu, mas era uma dor doce, como a saudade de algo bom que se perdeu.
Quando deu outro passo, a imagem se desfez.
Do outro lado, apareceu um beco escuro. Um grupo de homens e algumas garotas, gritando acusações. Seu eu mais jovem, ferida, com os braços erguidos em defesa enquanto era chutada por todos os lados, chorava.
Ishmael desviou o olhar. Mas não rejeitou a cena, apenas riu levemente.
— Eles realmente me quebraram naquele dia… — murmurou, não com rancor, mas com aceitação.
Ela caminhou mais.
E então, ela sentiu.
A criatura surgiu sem som. A antiga baleia — ou aquilo que restara dela — agora era uma sombra de luz, uma silhueta fantasmagórica que flutuava. Os olhos negros escorriam líquido escuro que não caía — apenas dançava no ar como tinta na água.
Sua boca se abriu. E o que saiu não eram palavras, mas murmúrios molhados, distorcidos, ecoando como vozes de almas esquecidas.
Mesmo assim, Ishmael entendeu.
“Você não morre.”
“Você não devia continuar.”
“Você perdeu tudo. Foi rejeitada, esmagada.”
“Por que ainda respira? Por que ainda caminha?”
“Por que não desiste?”
As palavras não feriam mais. Eram perguntas antigas, que já haviam queimado em seu peito antes — mas agora, ela já conhecia as respostas.
Ela parou de frente à criatura, respirando fundo. Sentiu o peso das cicatrizes invisíveis, das marcas que a alma carrega quando ninguém mais vê.
Olhou para as próprias mãos.
— Eu me fiz essas perguntas. Inúmeras vezes — sussurrou. — Quis sumir tantas vezes… Me perguntei por que ainda lutava… por quem.
Ergueu os olhos com firmeza.
— Mas hoje eu entendo. Não é vingança. Não é revolta. Eu existo porque escolhi continuar. Porque mereço continuar.
As imagens ao redor mudaram. Um mar agitado, estrelas refletidas na água, sorrisos esquecidos, mãos entrelaçadas por instantes, um abraço gentil. Tudo girava devagar, como um mundo em oração silenciosa.
— Eu não vou mais odiar. Não vou mais me perder tentando devolver a dor que me deram. Não vou me anestesiar para sobreviver. — Sua voz era baixa, mas cada palavra soava clara, sólida. — Eu vou viver. Por mim. Pela Eliah que sonhava com aventuras. Pelo Ishmael que se sacrificou por mim.
Ela estendeu a mão. E tocou a criatura gentilmente.
— Eu continuo… porque escolhi amar o que restou de mim. E transformar isso em algo bom.
O arpão em sua mão se transformou — agora uma lâmina prateada, serena. Com um único movimento suave, quase um gesto de misericórdia, ela partiu a criatura ao meio, como disse que faria.
A forma da baleia se desfez em milhares de fragmentos de luz. Como poeira estelar sendo levada por um vento invisível. E naquele fim, houve um som — um lamento suave, como o canto distante de uma baleia sob as águas profundas de um mundo que já não existe.
“Subestimei... sua humanidade…”
“Muito bem… Ishmael…”
“Você… venceu…”
Ela fechou os olhos, e respirou.
— Descanse em paz, deus de um olho. Que você também encontre um lar do outro lado.
E quando abriu os olhos novamente… ela já não estava mais naquele espaço branco.
Estava de pé, no meio do oceano.
A água lhe tocava as coxas. O mar era sereno, quase cristalino. Fragmentos de vidro caíam do céu como neve etérea, desaparecendo antes de tocar a superfície.
O céu estava limpo. Azul profundo. A brisa era gentil, e fazia seus cabelos longos — agora alaranjados como o pôr do sol — dançarem com leveza.
Seus olhos embranquecidos contemplavam o horizonte com paz. Pela primeira vez, verdadeira paz.
E então, como um eco gentil, o mundo sussurrou em sua mente:
“Você está no seu auge. Você renasceu. Faça bom proveito.”
Ela havia retornado. Não por milagre, nem por piedade — mas por sua própria força.
Nem mesmo os maiores horrores conseguiram silenciar seu coração.
Agora, ela via o mundo com olhos novos, da forma que deveria.
— … É tão bonito… — murmurou Ishmael, olhando para o céu, sentindo o mar.
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