O despertador tocava às 5h45 da manhã, como sempre. João acordou antes. Ele já tinha o costume de abrir os olhos minutos antes do alarme. Tinha algo em si que odiava ser surpreendido. Um sexto sentido? Talvez. Ou só o costume de quem sempre teve que se virar sozinho.
Vestiu a camisa gasta, calçou os tênis de solado torto e pegou o crachá. Trabalhava como estoquista num centro de distribuição no subúrbio de Lisboa, onde a luz fluorescente era mais constante que o sol lá fora.
No ônibus lotado, era invisível. Ninguém dava bom dia. E ele também não fazia questão. Observava.
Observava tudo.
O casal brigando ao fundo. O senhor de gravata que segurava o celular com a senha da conta aberta. A mulher que sorriu para o motorista, mas escondia o nervosismo no canto da boca. João não só via. Ele entendia. Cada gesto, cada desvio de olhar, cada microexpressão.
— Vai morrer cedo com esse olhar tão pesado — disse uma senhora ao lado, com voz trêmula.
João virou o rosto, surpreso. Ninguém falava com ele.
— Como é?
— Seus olhos, menino... eles enxergam demais.
Antes que ele pudesse responder, ela desceu. João ficou parado.
"Eles enxergam demais."
Como ela sabia?
Ao chegar ao trabalho, uma viatura estacionada o fez parar. Dois homens de terno estavam de pé, observando o prédio. Um deles, alto e pálido, encarou João por mais de 5 segundos. Sorriram de canto. E entraram sem dizer uma palavra.
Durante o turno, enquanto empilhava caixas, João ouviu algo.
— ...confirmado. Ele está aqui. Mas ainda não sabe o que é.
— Vamos observar mais. Ainda é cedo. Se ele despertar agora, ninguém vai conseguir contê-lo.
A voz vinha de um dos rádios no andar de cima, mas não era frequência de rádio comum. Era algo mais criptografado.
E mesmo assim… João entendeu cada palavra.
À noite, deitado na cama, olhou para o teto. A mente dele começou a trabalhar sozinha.
Três homens o observaram hoje. Um deles suava frio, mesmo em clima ameno. O outro sorria como quem já sabia o fim. E o terceiro… o terceiro tremia a mão direita, exatamente como o homem que matou seu pai há 17 anos.
João se levantou.
— Não era paranoia.
— Eles estão voltando.