Rato Perfumado

Se você está lendo isso, é porque eu provavelmente aceitei publicar essas memórias. Ou morri. Ou fui preso. Ou, pior, me apaixonei e precisei provar que eu tinha um lado sensível. Seja como for, aqui estamos. E tudo começou com um cheiro estranho.

Naquela tarde, meu escritório — um caixote mofado no quarto andar de um prédio que desafiava as leis da física e do bom senso — estava especialmente insuportável. Eu tinha acendido um incenso de lavanda para disfarçar o cheiro de rato morto que vinha da tubulação. Não funcionou. Em vez disso, o ambiente ficou com um aroma de rato perfumado. Ainda assim, era melhor que o cheiro de fritura e desespero do andar de baixo, onde Dona Cremilda mantinha um bufê a quilo suspeitíssimo.

A cereja do bolo era o aviso de desligamento da luz colado na porta. Eu estava com três meses de aluguel atrasado, dois de internet e um bilhete do zelador rabiscado em letras vermelhas: “Último aviso, Dude. Último mesmo.”

Foi nesse cenário aromático e decadente que ela entrou.

A princípio, não reparei. Só percebi que alguém havia entrado quando o som dos sapatos parou diante da minha mesa — baixos, escuros, discretos. Levantei os olhos e vi uma garota franzina, cabelos curtos e desalinhados, óculos grandes e redondos emoldurando olhos com uma melancolia impossível de se ignorar. Usava roupas escuras, nada de marca, mas bem cuidadas. As olheiras denunciavam noites em claro, e as unhas roídas revelavam mais do que qualquer palavra. Suas mãos tremiam levemente, com tiques nervosos nos dedos, e mesmo assim ela sustentava o olhar. Era o tipo de presença que te deixava em silêncio por um segundo a mais. Não pude deixar de notar o perfume que usava — algo caro, denso, quase hipnótico. Do tipo que compra silêncio por onde passa.

— O senhor é o Detetive Dude? — ela perguntou, com uma voz baixa, mas firme.

Assenti, ajeitando a camisa amarrotada.

— A quem devo o prazer?

— Karen Frontez — disse ela, deixando um envelope pardo sobre a mesa como quem coloca um bisturi num centro cirúrgico. — Preciso dos seus serviços.

Eu abri o envelope por puro instinto. Dinheiro. Um bolo grosso de notas, capaz de fazer meu fígado dançar salsa e meu estômago esquecer que só tinha café e bolacha passada desde ontem.

— Sou todo ouvidos — murmurei, afastando a caneca de ferrugem líquida.

Ela se sentou, cruzou as pernas e começou a falar. O tom era contido, quase técnico, mas em certos momentos a voz vacilava — como se o corpo insistisse em sentir o que a mente tentava ignorar. Não chorei — não sou pago pra isso. Mas ouvi. Ouvi com a atenção que só se presta quando há muito dinheiro na mesa... ou algo realmente fora da curva.

E o relato dela era exatamente isso: fora da curva, fora da lógica, fora do que eu estava disposto a acreditar naquela terça-feira miserável.

Quando ela terminou, fiz o que qualquer detetive quebrado e cético faria.

Balancei a cabeça.

— Karen... olha, sinto muito pela sua mãe. Sinto mesmo. Mas você está dizendo que ela... pegou fogo sozinha? No quintal? Sem fósforo, sem gasolina ou qualquer coisa do tipo?

Ela assentiu. Silenciosa.

— Garota, eu sou detetive, não um Winchester. Não caço fantasmas, nem investigo maldições ancestrais. Meu negócio é adultério, fraude de seguro, gato no relógio da luz. Esse tipo de coisa.

Ela se inclinou na cadeira. Os olhos, até então nublados, endureceram.

— Não é maldição. E não é imaginação. Tem alguma coisa acontecendo. A polícia não faz nada. Meu pai... — ela hesitou, respirou fundo — meu pai só quer enterrar tudo. E meu irmão tá bem estranho. Só me resta isso. O senhor.

— Tem gente mais especializada por aí. Paranormais, caçadores, terapeutas, sei lá. Eu sou só... eu.

Ela apertou os punhos, quase desesperada.

— Eu pesquisei o senhor. Você já resolveu casos que ninguém mais quis pegar. Soube que o senhor não recusa trabalho.

— Eu recuso quando o trabalho me parece impossível. Ou suicida. Ou quando envolve combustão humana espontânea no quintal de uma casa de família.

Ela me encarou por mais alguns segundos, esperando que eu cedesse.

Não cedi.

Karen então se levantou devagar, pegou o envelope de volta e ajeitou os óculos.

— Obrigada pelo seu tempo e me desculpe pelo incômodo — disse, seca. — Achei que o senhor fosse diferente.

Caminhou até a porta, abriu, saiu e a fechou com cuidado. Sem drama. Só decepção.

Fiquei ali um instante, encarando a porta fechada. Depois encostei as costas na cadeira, suspirei e liguei o notebook.

Nada novo na caixa de entrada. Exceto uma notificação com um ícone vermelho que piscava no canto:

“Notificação de Despejo: Unidade 402 – Prazo final: 7 dias.”

Sete dias.

Olhei para o espaço vazio na mesa onde estava o envelope. Para o teto embolorado. Para minha conta bancária com menos dígitos que uma senha de celular.

Fiquei pensando no caso da garota. Lembrei daquele filme: “Invocação do Mal”. Pensei no casal Warren. Eles tinham fé, equipamentos sobrenaturais e a cara de quem já enfrentou o demônio no café da manhã. Eu tinha olheiras, dívidas, uma cafeteira que fazia barulhos de agonia. E meu maior desafio no café da manhã era mastigar pão velho e duro torcendo pra não perder um dente.

Me levantei. Peguei o casaco. Fui até a janela.

Contra a lógica. Contra o bom senso.

Avistei a garota e gritei:

— Ei, menina!

Karen olhou para cima.

— Pode preparar o crucifixo e as velas. Vou pegar teu caso.