Viagem ao Inferno

Alcancei Karen ainda na calçada em frente ao prédio, antes que ela entrasse no carro. O veículo era preto, longo e silencioso como um segredo caro. O tipo de carro que parece deslizar sobre o asfalto em vez de tocá-lo.

Karen estava na companhia de um armário humano de terno. A garota fez questão de me apresentar antes de partirmos.

— Esse é o Mathias, ele é nosso segurança. Aquele é o Nicolas — apontou para o rapaz magro, baixo, de bigode fino e luvas brancas que descia do carro — ele é nosso motorista.

Cumprimentei as duas figuras com um aceno de cabeça. Eles apenas olharam um para o outro e me ignoraram.

Duplinha estranha.

O motorista abriu a porta de trás para que eu e Karen entrássemos, enquanto o segurança foi na frente.

Entramos. A porta fechou. Colocamos o cinto e partimos.

Destino: Santas Graças. Uma cidade esquecida no interior do estado.

Estava sentado ao lado da garota no banco traseiro. Ela permanecia em silêncio, com os olhos grudados na janela, como se temesse perder algo importante se piscasse. Os dedos se mexiam em padrões quase hipnóticos no colo, denunciando a ansiedade que ela tentava esconder com a postura ereta e o rosto impassível.

No caminho, repassei mentalmente tudo o que ela me contara.

Na noite de 4 de abril de 2015, às 23h50, Miriam Frontez, 36 anos, coordenadora de uma recém-criada empresa de robótica, mãe de Karen e Kenny Frontez e esposa de Juan Frontez — pastor de uma igreja grande em Santas Graças e dono de uma loja de conveniência — foi encontrada em chamas no quintal da própria casa, se debatendo e gritando até que seu corpo virou carvão humano. Juan, o marido, estava por perto no momento e correu até ela, tentando apagar o fogo com o que pôde. Mas já era tarde. Karen também viu. Acordou com os gritos da mãe. Viu tudo. Sentiu tudo. Kenny, o irmão mais novo, também despertou com o caos. Ambos presenciaram o tipo de imagem que gruda na mente e nunca mais sai.

A perícia concluiu: combustão humana espontânea.

Soa como fantasia, não? Mas Santas Graças tem um histórico estranho. Aquela não foi a primeira morte por combustão.

Em 30 de março, cinco dias antes da tragédia de Miriam, as cinzas de Sina Bastien foram encontradas no banheiro de sua casa, espalhadas como se ela tivesse simplesmente explodido por dentro. Nada de velas, nada de fogão, nada de aquecedor. Apenas uma mulher transformada em pó sem motivo aparente.

A polícia engasgou com a investigação. A cidade engoliu seco. E a família rica, poderosa e desesperada decidiu procurar outro tipo de resposta.

Foi então que ela me procurou. Karen. Sozinha. Uma garota quebrada de maneiras que o dinheiro não conserta. E eu, bom... eu precisava pagar o aluguel.

Três horas se passaram. O caminho era longo, mas estávamos finalmente nos aproximando. A estrada serpenteava entre colinas sombrias, e uma neblina espessa começou a se formar, como se o próprio mundo quisesse esconder Santas Graças de nós. Foi então que Karen quebrou o silêncio pela primeira vez desde que entramos no carro.

— Quando a gente chegar... você vai sentir. — disse ela, sem olhar pra mim. — A cidade tem um cheiro estranho.

E naquele instante, juro por tudo que me é mais valioso: o aroma de lavanda que ainda grudava na minha roupa foi engolido por algo novo. Um cheiro seco. Queimado. Como madeira antiga... ou carne.

Pela janela, avistei a placa enferrujada que dizia “Bem-vindo a Santas Graças”. Pude notar os pelos nos braços e na nuca da garota se arrepiando. Seu tique nas mãos ficou mais frenético, os dedos inquietos como se quisessem fugir do próprio corpo. Até mesmo os punhos do brutamonte se cerraram, e percebi quando ele engoliu seco. O chofer, que dirigiu com maestria por todo o percurso, obedecendo leis de trânsito que eu nem sabia que existiam, ao ver o nome da cidade, esqueceu de dar a seta quando dobrou à esquerda.