Santas Graças, uma cidadezinha estranha, daquelas que parecem ter parado no tempo — não por charme, por pura preguiça, talvez por um certo conservadorismo. Entretanto, por trás de tanta monotonia, existia um passado denso e violento, um marco na história.
Foi aqui que se firmou a sede de uma organização ligada à Igreja Católica, dedicada ao extermínio sistemático de mulheres acusadas de bruxaria durante a Baixa Idade Média: a “Lux Dei Vindicta”. Estima-se que cerca de seis mil mulheres foram caçadas e assassinadas ou “purificadas” por outros meios — seis mil — em nome da fé, da “pureza” e da hipocrisia. A organização foi dissolvida após desentendimentos internos que culminaram no assassinato do próprio líder.
Hoje, essa mancha histórica não parece incomodar ninguém por aqui. A cidade respira religião. Há imagens de santos por todos os lados, enfeites religiosos nas portas, paredes, postes e até lixeiras. O número de igrejas ultrapassa, com folga, a soma das escolas e bibliotecas. Eu contei. Achei preocupante.
O que Santas Graças tem de mais interessante — além do passado medieval sangrento — é o alto índice de tráfico de drogas. Mas isso não é o motivo de eu estar aqui. O que me trouxe foi algo mais estranho. Algo que anda tirando o sono até dos mais devotos.
Chegamos à casa da família Frontez ao fim da tarde. Não era uma mansão, mas impressionava. Um sobrado de fachada ampla, arquitetura clássica, com colunas e janelas altas. A casa carregava um peso silencioso. Talvez fosse o luto, talvez fosse outra coisa.
Kenny nos esperava na porta. Um garoto de doze anos com postura de CEO e expressão de quem já leu três livros de autoajuda e não entendeu nenhum. Camisa alinhada, blazer azul-marinho, shorts acima do joelho, tênis caros, tudo de marca, cabelos com trancinhas milimetricamente calculadas. Ele olhou pra mim como quem avalia um produto antes de comprar.
— Você que é o detetive? — perguntou, sem esconder o desdém. — Achei que seria mais... profissional.
— E eu achei que você seria mais educado — respondi, já entrando.
Karen passou por ele sem dizer nada. Kenny fechou a porta com um baque seco.
A sala era ampla, paredes em tom bege-claro, móveis de madeira escura e uma estante com muitos livros, a maioria religiosos, mas nenhuma cruz ou imagem de santos — protestantes. Sentei no sofá. Kenny afundou em uma poltrona à minha direita com as pernas cruzadas, como se estivesse pronto para dar uma entrevista. Karen, com seu jeito tímido e delicado, sentou-se no sofá à minha frente. Aqueles malditos dedos continuavam a se mexer. Já estava me irritando.
— Então — comecei, casual, pegando um bloco de anotações apenas para intimidar. O garoto semicerrilhava os olhos e franziu as sobrancelhas ao ver meu instrumento de julgamento. — Pra começar, gostaria de saber por que justamente eu fui escolhido pra essa missão.
— Precisávamos de alguém de fora. Alguém que não tivesse ligação com a cidade — Karen respondeu, mexendo as mãos como se digitasse no ar. — Você tem uma certa fama, mesmo que meio duvidosa.
— E você é barato — completou Kenny. — E discreto. Não aparece na TV. Isso é bom. Meu pai não queria contratar ninguém. Mas a gente queria.
— “A gente”? — perguntei.
— Eu convenci ele — disse Karen. — Kenny me ajudou com a maior parte do dinheiro, mas também queria respostas.
— Óbvio! — afirmou Kenny. — Alguém fez aquilo com a minha mãe. Ninguém pega fogo do nada. Mas até agora ninguém explicou como.
O silêncio pesou por um segundo. Eu o quebrei com cuidado.
— Vocês lembram exatamente do que viram naquela noite?
— Eu ouvi minha mãe gritando — disse Kenny, de repente sério. — Estava no computador. Achei que fosse uma briga com o papai. Saí do quarto. Karen saiu também. Quando a gente chegou no quintal, ela já estava em chamas. Meu pai tentou apagar o fogo com a mangueira e toalhas. Mas só os bombeiros conseguiram conter.
— E você, Karen?
Ela assentiu, devagar.
— Eu já tava quase dormindo. Ouvi os gritos. Fui correndo. Vi tudo.
— E cinco dias antes, a mulher chamada Sina Bastien foi encontrada morta em circunstâncias... parecidas.
Kenny fez uma careta.
— Aquela mulher era esquisita. Assustadora. Não confio nela nem depois de morta. Pode ter feito alguma bruxaria.
— Você acredita nisso? — perguntei, testando a água.
— Eu não acredito em bruxas — disse, levantando o queixo —, mas também não acredito em combustão espontânea. Então alguém fez isso acontecer. E se não foi ela, foi o vizinho.
— O Sr. Walter? — Karen perguntou.
— Ele é estranho. Vive espiando da janela. Sério. Uma hora ele explode alguém também. A padeira da rua de trás também é suspeita. Ninguém pode ser tão feia e viver de boa. E tem os mendigos do lixão. Gente que mora no lixo? Eles não são normais.
Eu olhei pra Karen. Ela balançou a cabeça, exausta do irmão.
— Kenny tem... teorias — disse ela, delicadamente.
— Tenho olhos. Só isso.
— E na manhã da morte de Sina? Onde vocês estavam?
— Dormindo — Kenny respondeu. — Acordei só com a sirene. Vi tudo pela janela.
— E você não viu ninguém entrando ou saindo da casa dela?
— Eu estava com sono. Não consegui reparar em muita coisa, mas assim que desci vi as luzes da polícia e dos bombeiros. Vi eles levando um saco, acho que era o corpo dela, ou o que sobrou dele.
— Certo. E você, Karen?
— Eu acordei cedo. Ouvi alguém gritando, parecia uma mulher desesperada. Eu olhei pela janela pra verificar, mas a rua estava vazia. Desci pra cozinha, minha mãe e meu pai já tinham saído. Preparei meu café e fui assistir ao jornal da manhã. Foi quando ouvi as sirenes. Vi os caminhões de bombeiros e a ambulância chegando pela janela.
Eu anotava tudo com calma, mas Kenny percebeu.
— Isso aqui é um interrogatório, é?
— Não — disse, levantando as mãos. — É uma conversa. Uma conversa com quem viu o que aconteceu. Com quem quer saber a verdade.
— Você tá tentando arrancar confissão, é isso?
— Se eu estivesse, você já teria confessado o assassinato da padeira só pelo nível de preconceito.
Ele bufou, mas ficou calado. E Karen, pela primeira vez, riu. Um riso curto, quase imperceptível.
— Nós só queremos saber quem matou nossa mãe — ela disse. — E por quê. E se... vai acontecer de novo.
Houve silêncio. Então, ouvimos passos no corredor.
A porta da sala se abriu.
Ali estava ele.
Juan Frontez. Cara grande, fazia meus 1,80 parecerem 1,30. Terno amarrotado, barba malfeita, olhos fundos. O tipo de homem que já perdeu tudo e continua em pé apenas porque cair dá muito trabalho. Ele parou na porta, avaliando a cena. Nunca me considerei medroso, mas quando seus olhos pararam em mim, cheguei a sentir um frio na espinha. Ali eu soube: ou esse cara ia me ajudar a resolver esse caso, ou me enterrar junto com ele.