É Só o que Sobrou

Devido ao incêndio — e a todo o mistério e anomalia que o cercavam —, os olhos do país inteiro se voltaram para Santas Graças. Repórteres de emissoras de todos os cantos chegavam com suas vans, câmeras, microfones e curiosidade. O que fez a polícia da cidade começar a agir. Ou pelo menos fingir. O que se tornaria uma pedra no meu caminho.

Depois do inferno em chamas, com quase todas as minhas coisas queimadas, os sapatos chamuscados e a cabeça fervendo, encontrei abrigo no que parecia ser o único hotel não carbonizado por perto: Hotel Las Palmeras.

Infelizmente, não queimado não significa habitável.

O novo hotel era ainda mais deprimente que o anterior — o que parecia um feito digno de aplausos. Ou lágrimas. A recepção estava deserta, coberta de poeira, e o recepcionista, que mais parecia um cadáver mal disfarçado de gente, apenas me entregou a chave com um grunhido.

Subi com minha mochila, onde estavam minha única troca de roupa sobrevivente, meu pequeno caderno de anotações, uma caneta, meu notebook e o pen drive destruidor de lares.

O quarto era simples: uma cama com lençóis de manchas suspeitas, um ventilador no teto que girava como se tivesse desistido da vida, uma mesa velha no canto com um punhado de papéis em cima, uma cadeira dobrável de ferro — que, com toda certeza, foi roubada de algum barzinho próximo — e uma janela que oferecia vista direta para um muro pichado com uma frase enigmática: “Deus saiu, volte mais tarde.”

Larguei a mochila em cima da mesa e me joguei na cama. Estava exausto. Por dentro e por fora.

O incêndio ainda ardia na minha cabeça. As chamas, os gritos, o cheiro de carne e plástico queimado...

E agora eu estava aqui, tentando reconstruir um quebra-cabeça com peças derretidas.

Entre um pensamento e outro, o cansaço venceu, e peguei no sono.

Despertei quando ouvi batidas na porta. Vieram secas, urgentes.

Três toques curtos e precisos.

Parecia ter sido um cochilo bem breve, mas o brilho do sol já ardia na parede em frente à janela e invadia o quarto.

As batidas insistiam.

Lutei para levantar. Consegui após muito esforço. Abri a porta.

Eram Karen e Kenny.

— A dona do outro hotel disse que você tava aqui — Kenny anunciou, já entrando como se estivesse fiscalizando a cena de um crime.

— Boa tarde pra você também, Kenny. Que prazer enorme em vê-los. Entrem, fiquem à vontade, desconsiderem a bagunça... — murmurei, afundando de novo na cama como um náufrago voltando pro mar.

Karen entrou devagar e fechou a porta. Os olhos estavam avermelhados. Não era só pela poeira.

— A gente precisa conversar — ela disse, sentando-se à beira da cama com o corpo curvado, como quem carrega um mundo pequeno, mas pesado.

Kenny ficou de pé, entre a porta e a mesa onde eu tinha largado minha mochila junto ao punhado de papéis velhos. Um deles escorregou com a brisa tímida da janela entreaberta.

Ele o recolheu e passou os olhos distraidamente.

— O que tá acontecendo, cara? Já se passaram dois dias. Você já tem alguma pista de quem matou minha mãe? E esse incêndio agora?! A cidade tá pegando fogo e você tá... aqui, trancado nesse... nesse buraco!

— É, moleque. Que bom que você percebeu que é um buraco. Agora imagina como é estar aqui dentro.

— Não é hora de piada — ele rebateu, irritado.

— Não é piada. É só o que sobrou — disse, sem tirar os olhos do teto manchado.

Karen se encolheu na cama, os braços cruzados sobre o corpo, como se estivesse com frio. Ou medo. Ou os dois.

— Eu sonhei com o fogo essa noite — falou de repente, num tom quase infantil. — Sonhei que você... estava preso lá. No meio das chamas. E... não saiu. As chamas falavam. Chamavam seu nome. Mas você só olhava, parado.

A imagem cortou o ar do quarto. Não havia mais nada além daquele som silencioso, que ecoava dentro de cada um.

Kenny tentou disfarçar o desconforto, pegando um papel que estava sobre a mesa e dobrando mecanicamente.

— A gente só quer saber se você ainda tem controle disso tudo. Porque parece que tá fugindo das suas mãos — Karen prosseguiu, me encarando com um olhar de misericórdia.

— Ainda tô aqui — respondi. — Isso conta por alguma coisa.

Karen respirou fundo, depois se adiantou:

— Eu... estive pensando em algo. Não sei se tem a ver, mas... tem uma mulher que mora meio afastada da cidade, no meio do mato. Ninguém fala muito dela. Só chamam de “a Cientista”.

— Cientista? — levantei uma sobrancelha.

— É. Dra. Laila Krauss. Li uma matéria sobre ela. Parece ser bem inteligente. Já ganhou uns prêmios, mas inventava umas coisas malucas.

— Coisas malucas? — perguntei, confuso.

— Os moleques da escola dizem que ela já criou um soro de invisibilidade e brincos que viram espadas — Kenny respondeu.

— A gente achava que era só lenda, coisa de criança — Karen completou. — Mas meu pai uma vez falou dela. Disse que era perigosa. Que mexia com coisas que não devia.

Desacreditei até a parte dos brincos que viram espadas, mas estava curioso.

— Mexia com o quê, exatamente?

— Coisas que desafiam... o que é natural. Eu não entendi direito. Mas meu pai parecia ter medo dela.

Anotei o nome.

— Você já viu essa mulher?

— Só de longe. Uma vez, vi a sombra dela se movendo no telhado de uma casa antiga, na estrada sul, quando viajamos para Mirlen. Mas a filha dela estuda na minha escola. Se chama Lilith.

— Uma cientista maluca com uma filha de nome demoníaco. Curioso. Você é próxima dessa garota?

— Não. A escola toda conhece ela, mas ela não fala com muita gente.

— Ah, para, Karen! — Kenny interrompeu. — Se for pra apontar alguém, devia ser o Sr. Walter, nosso vizinho. Tem um boato que ele foi espião, sabia? Tipo... assassino do governo. Dizem que ele teve acesso a armas secretas, experimentais. Um velho daqueles... não é à toa que anda sempre de luvas. Obviamente esconde alguma coisa!

— Luvas porque ele tem reumatismo, Kenny!

— É o que eles querem que a gente pense.

Suspirei fundo. A cabeça já estava cheia demais pra mais teorias esquisitas. Mas guardei as duas. Porque, às vezes, os delírios mais absurdos escondem uma fagulha de verdade.

Karen me olhou com olhos de preocupação sincera.

— Você tá... bem?

— Meu cabelo tá intacto. Isso é um bom sinal.

Ela forçou um sorriso, mas não durou. Os olhos marejaram. Ela se virou para o irmão, depois voltou pra mim.

— Se você quiser parar, a gente entende.

— Que?! — Kenny gritou. — Você tá doida, Karen?

— Ninguém esperava por tudo isso, Kenny. A cidade, o incêndio... — a garota se voltou novamente pra mim. — Você tá sozinho aqui. Eu só... queria saber se você ainda quer continuar.

Levantei devagar. Fui até a janela. Olhei o muro pichado.

— Continuar dá menos trabalho que desistir — falei, tentando parecer descolado. — E se eu sair agora, essa cidade vence. E eu não gosto de perder.

Karen assentiu com um pequeno e breve sorriso.

— Precisamos ir — Kenny disse, enquanto já abria a porta, distraído.

Os dois começaram a sair. Antes de ir, Kenny largou os papéis dobrados sobre a mesa.

— Acho que isso aqui é seu. Tava espalhado.

— Não é, mas pode deixar. Obrigado.

Karen olhou mais uma vez para mim. Uma expressão indefinida entre gratidão, tristeza e alguma culpa.

A porta fechou.

O silêncio voltou.

Fiquei alguns segundos parado, olhando para o nada. Até o fedor de queimado das minhas roupas começar a me incomodar.

Levantei. Fui pro banheiro. Tomei um bom banho gelado. Voltei para o quarto para me trocar.

Apanhei a mochila que estava em cima da mesa. Tirei tudo que estava dentro dela: minha única troca de roupa, meu notebook, meu caderno, minha caneta e o...

O pen drive.

Não estava lá.

Revirei os papéis. Olhei embaixo da mesa. No bolso da minha camisa. No chão.

Nada.

Sentei. Encostei na cabeceira da cama. Fiquei olhando para onde ele devia estar, como se ele pudesse reaparecer por teimosia.

Mas não reapareceu.

Fechei os olhos. Respirei fundo.

A lembrança voltou como uma faca girando no estômago.

Kenny. Mexendo nos papéis. Dobrou tudo rápido. Pôs de volta na mesa.

Demais pra um garoto impaciente.

Nunca senti tanta vontade de enforcar uma criança.

— Moleque maldito...