O Inferno Ataca!

Não sei se foi por causa de toda a trama em que estava metido ou consequência do meu encontro perturbador com Sintia e das palavras que ela fincou na minha mente, mas, naquela noite, sonhei com o maldito fogo.

Caminhava sob um campo seco, dourado, estalando sob meus passos como se cada palha carregasse séculos de silêncio. No centro, havia uma gaiola. E, dentro dela, um cisne de origami - delicado, branco, imóvel. Só que ele queimava. As chamas não o destruíam, apenas dançavam ao seu redor, como se fossem parte dele. De repente, os olhos do cisne se abriram. Eram vermelhos. E me encaravam. Eu tentava correr, mas o campo pegava fogo junto com meus pés. O céu estava cheio de fumaça e sussurros. E então ele falou. Com a voz de uma mulher. Com a voz de Sintia Bastien:

- Você vai queimar, sabia?

Acordei engasgando com o ar pesado. Meus pulmões pareciam ter inalado o currículo de um político brasileiro: denso, sujo e tóxico. Por um segundo, pensei que ainda estivesse sonhando. Mas aí a porta do quarto se escancarou.

- INCÊNDIO! - gritou a recepcionista-cartomante-faxineira, já coberta de cinzas. - PEGA SUAS COISAS E CORRE, HOMEM DE DEUS!

Não sou de correr. Mas também não sou de virar churrasco. Enfiei meu caderno, meu pen drive e minha dignidade numa mochila e desci as escadas pulando três degraus por vez.

A pensão ardia como se tivesse sido abençoada por um sopro do capeta. O forro do teto caía em pedaços flamejantes. O carpete - que já era uma tragédia estética - agora era literalmente um tapete do inferno.

O caos era absoluto. Gente gritando, correndo, tossindo, desmaiando. Uma senhora tentava salvar um tapete de crochê. Um pastor berrava sobre o apocalipse. Um jovem filmava tudo pro TikTok.

Consegui alcançar a rua. Achei que já estava a salvo. Foi quando olhei para cima.

O céu estava tingido de vermelho. Um vermelho tão profundo que faria inveja a qualquer inferno ilustrado em livros de padre. O fogo engolia tudo que meus olhos podiam alcançar: casas, lojas, barracos, carros, plantas...

As pessoas corriam em pânico, carregando o pouco que podiam ou possuíam.

Então ouvi o som das sirenes. Três caminhões do Corpo de Bombeiros se aproximavam rapidamente, abrindo espaço entre a multidão.

Os bombeiros saltavam dos veículos como se fossem uma equipe de super-heróis, com seus grandes casacos amarelos, luvas, botas pretas e máscaras de fuga.

De forma rápida e eficiente, com movimentos claramente coreografados, eles destravavam e esticavam as mangueiras dos caminhões, mirando suas pontas para as chamas.

- Liga! - gritou o bombeiro mais à frente.

A válvula da bomba acoplada ao caminhão foi girada. A água percorreu todo o corpo da mangueira até sair com uma pressão tão forte que pude notar o bombeiro da ponta firmando os pés e, ainda assim, sendo impulsionado para trás.

Foi então que o inesperado aconteceu.

Assim que a água tocou as chamas que cobriam a pensão, o fogo aumentou, engoliu a água e percorreu a trajetória do jato até chegar à mangueira, como se estivesse sendo alimentado com álcool. Os bombeiros se afastaram, e o fogo continuou o percurso, queimando a mangueira até chegar ao caminhão, causando uma imensa explosão.

BOOM!

O caos tomou conta.

Os bombeiros tentavam acalmar e guiar a multidão, mas sem sucesso. O desespero já havia se instalado.

Eu não podia fugir. Precisava entender o que estava acontecendo, mas fui levado pela correnteza de pessoas desesperadas.

Consegui me abrigar em uma viela estreita, escura e fedorenta, onde permaneci por algumas horas, até perceber que a multidão e as chamas já estavam começando a ser controladas. Então saí do meu abrigo fedido e corri para o ponto de onde havia sido arrastado, na tentativa de encontrar alguém que pudesse explicar a origem de todo aquele caos.

A fumaça ainda era densa; conseguia sentir o peso chegando aos meus pulmões. Cobri o nariz com a gola da camisa e continuei percorrendo o cenário tomado por fumaça e cinzas. Foi quando avistei uma criança deitada no chão: um pequeno garoto gordinho. Achei que estivesse morto, mas então vi seu braço se erguendo, e o som de sua voz falha e cansada chegou aos meus ouvidos com um pedido de socorro.

Parei.

Me aproximei do garoto, o segurei em meus braços e fiz algumas perguntas idiotas como: "Você tá bem, garoto?", "Onde estão seus pais, garoto?" Mas tudo que consegui foi um breve olhar exausto e encharcado por lágrimas antes de ele apagar.

Gritei por ajuda, mas sem respostas. Não conseguia avistar ninguém.

Senti meu coração acelerando.

Tentei levantar e caminhar com o garoto, mas ele era mais pesado do que parecia. Malditos fast foods e pais que colaboram com a obesidade infantil.

Juntei todas as poucas forças que tinha para conseguir levantar aquela pobre criança grande e levá-la para um lugar seguro.

Conseguia sentir os batimentos do garoto diminuindo.

Continuei gritando por ajuda enquanto caminhava com dificuldade pelo cenário devorado pelo fogo, mantendo os olhos atentos, procurando alguém que pudesse ajudar. Mas a fumaça densa e tóxica no ar dificultava.

Meu coração acelerava cada vez mais. O suor frio corria pelo meu rosto. Minhas pernas bambeavam como bambus na ventania; meus braços adormeciam. Mas continuei gritando e caminhando. Não iria deixar aquele pequeno menininho pesado morrer em meus braços.

Quando estava no auge do meu desespero, senti uma mão em meu ombro.

Me virei bruscamente, num susto.

Era um bombeiro. O encarei como uma idosa sendo salva pelo Homem-Aranha após ser arremessada desnecessariamente do topo de algum arranha-céu.

- Você tá bem? - ele perguntou.

- O garoto... - falei ofegante, com a boca e a garganta secas. - Ajuda... o garoto.

Entreguei a criança nos braços do bombeiro.

Respirei o mais fundo que pude - má ideia. Engasguei com a fumaça e tossi feito um fumante. Me recompus e então tentei me comunicar novamente.

- Sou detetive. Detetive Dude. Estou investigando o caso das duas mulheres que pegaram fogo. Acho que tudo isso pode ter a ver. Notei a dificuldade em apagar o fogo. Se encaixa com o que me relataram sobre o caso delas.

Ele hesitou em me responder, me olhou de cima a baixo e então apontou para o fim da rua, pedindo para que eu falasse com o comandante e me alertando para ficar longe das chamas.

Concordei com um balançar de cabeça e voltei a correr na direção indicada pelo homem.

Encontrei o comandante dos bombeiros no meio da fumaça, gesticulando ordens e cuspindo fuligem. Era um homem grande, com os braços cobertos de sujeira e olheiras que denunciavam a guerra que travara contra as chamas. Quando me aproximei, ele olhou pra mim como se eu fosse mais um problema pegando fogo.

- Quem é você?

- Detetive Dude. Estou investigando os casos de "autocombustão" que ocorreram na cidade.

O comandante revirou os olhos.

- Sabe como o incêndio começou? - perguntei.

- Começou perto do lixão, por volta das 20h30.

Abri a mochila e apanhei meu caderno para anotar.

- Água piorava o fogo - disse ele, antes mesmo que eu perguntasse. - Igual jogar gasolina. Só conseguimos conter quando usamos CO₂. Foi químico. Ou coisa pior.

- Pior que químico? Tipo o quê? Maldição ancestral? Experimento militar? - perguntei, ainda com dificuldades para respirar.

Ele me lançou um olhar cansado, mas não riu. Bombeiros não têm muito senso de humor quando um bairro inteiro derreteu.

O homem se virou, apanhou uma máscara de oxigênio e me entregou.

Me senti muito melhor depois que coloquei aquilo no rosto.

- Teve um morador de rua... - voltou a falar. - Um dos poucos que escapou daquela área. Disse que uma mulher que estava com eles revirando o lixo, de repente, passou mal e... começou a pegar fogo. Assim, do nada. Disse que parecia o Tocha Humana. Só que sem os superpoderes. Mas não posso alegar que a informação é confiável. O rapaz também era usuário de drogas. Parece que a mulher que "pegou fogo" também era.

Congelei por um segundo. Senti minha mão tremer e o frio na espinha voltou. Aquilo estava começando a mexer comigo.

- Nomes? - perguntei.

- O rapaz se chama Francisco. Disse que chamavam a mulher que "pegou fogo" de "Chuchu", mas nada de um nome real.

- Posso falar com esse rapaz?

- Ele fugiu, estava em choque.

- E o corpo da mulher?

- Cinzas. Literalmente. E nem era no meio do incêndio geral. Era num canto, separado. Como se o fogo tivesse realmente começado nela.

- Vocês conseguiram alguma amostra? Algum resquício que preste?

- Nada ainda.

Olhei em volta. O ar ainda tremia de calor. A cidade parecia ter sido arranhada por garras invisíveis. As sirenes eram como sinos de uma missa para os mortos. Mas minha mente estava presa na imagem: uma mulher virando cinzas por combustão espontânea. De novo.

- Mais uma vez... - murmurei.

- Então você acredita nisso, detetive?

- Eu acredito em tudo que não faz sentido. Porque, no fim, é sempre o que mais se repete.

Ele me encarou por um segundo, como se esperasse mais. Mas o rádio em seu ombro chiou com outro pedido de socorro, e ele saiu correndo como um soldado no meio do apocalipse.

Fiquei ali. Entre ruínas. Entre mortos. Entre perguntas. Respirei fundo. Mais uma combustão. Mais uma mulher. Mais uma peça no quebra-cabeça que, cada vez mais, parecia montado por um psicopata fã de ironia.

E então vi algo que cortou o som das sirenes.

Havia uma mulher no meio da rua. Parecia humilde. Estava em prantos, chorava como se fosse a última vez que pudesse chorar. Em seus braços havia um emaranhado de cobertores. Dentro do emaranhado, uma criança. Não dava pra ver direito. A única coisa à mostra era aquele pequeno braço totalmente carbonizado. Aquilo me incomodou de um jeito estranho. Mexeu com algo em mim. Memórias... Esse tipo de coisa perturba a cabeça de qualquer um - até de um zé-ninguém como eu.

Pela primeira vez desde que cheguei a Santas Graças, a cidade parecia despida de suas máscaras. Sem maquiagem. Sem pose. Só dor. E fumaça.

Eu precisava entender. Porque aquilo não era só tragédia. Era uma declaração de guerra do inferno.

Descobrir o que estava acontecendo naquela cidade deixava de ser apenas meu objetivo. Agora era uma necessidade.