Eu já tinha visitado prisões antes. Lugar comum pra quem já esteve entre bandidos, cadáveres, psicopatas e gente que acha que “comer terra cura ansiedade”. Mas aquilo... aquilo era outra coisa.
A fachada da prisão não se contentava em ser feia — fazia questão de traumatizar. Um colosso de concreto bruto e aço negro, com torres de vigilância que lembravam os olhos de um corvo paranoico. Parecia uma fábrica de traumas, onde o produto final era silêncio, suor e desespero.
Os muros? Três camadas, com sensores térmicos, de movimento e algo que pareciam pequenas torres Tesla — um pombo que voava por perto tentou pousar ali e virou churrasquinho. As câmeras giravam como o pescoço da garota do Exorcista, e os guardas... bem, não eram guardas. Eram soldados. Armadura completa, olhos ocos atrás de viseiras negras — como se até o olhar tivesse sido considerado perigoso demais pra ser humano.
Na entrada, precisei deixar meus pertences num pequeno armário de ferro, o que incluía o pen drive de Pandora. Passei por sete portas automáticas, duas revistas corporais, um scanner ocular e um teste de empatia — falhei nesse último, mas aparentemente não era mandatório. As paredes internas eram acolhedoras como uma geladeira ligada no Ártico. O chão brilhava, não de limpeza, mas daquele brilho clínico de lugar onde já arrancaram unhas com alicate e depois esfregaram tudo com desinfetante.
As celas não eram celas. Eram cofres. Blocos de metal reforçado embutidos na estrutura do prédio, sem janelas, com portas blindadas que pareciam mais grossas que o ego de um deputado. Cada uma equipada com microfones, sensores cardíacos e sistemas automáticos de contenção — se o sujeito tossisse estranho, a cela se selava inteira. E, ainda assim, alguma coisa lá dentro parecia mais forte do que os muros. Algo vivo. Algo esperando.
Quando cheguei à sala de visitas monitoradas — aquela onde eu ia encontrar Sintia Bastien, a infame freira assassina —, senti que o ar mudou. Denso, elétrico. Como se o próprio edifício respirasse devagar, atento, julgando cada passo meu. Um segurança me lançou um olhar que dizia: “Se ela tentar te matar, vamos demorar pra socorrer, só pra ver o que acontece.”
Respirei fundo, puxei minha cadeira e sentei.
Fiquei ali parado, de frente para o vidro blindado, esperando como uma criança aguardando a sobremesa.
Sintia demorou, como se quisesse que eu sentisse a presença dela antes de vê-la. Quando finalmente entrou, parecia uma sombra vestida de branco: túnica simples cobrindo sua anatomia, cabelo notavelmente longo e preso com força num rabo de cavalo. Pele pálida. Os braços eram tão magros que pareciam os de um esqueleto vivo. As algemas grossas apertavam seus punhos, carregava um rosário enorme pendurado no pescoço, e os olhos... os olhos eram o sermão antes da execução.
Ela se sentou devagar. Cruzou as mãos sobre a mesa de concreto. Depois sorriu. Um sorriso doce demais pra ser sincero.
— Detetive Dude, certo? — perguntou com uma voz rouca e, ao mesmo tempo, suave.
— Parece que sou mais famoso do que pensei.
Sintia esboçou um sorriso sereno com os lábios, mas com uma frieza contínua no olhar.
— Já li matérias sobre você, detetive. Está investigando a morte de Sina?
— Mais ou menos isso.
O sorriso mudou. Seu olhar debochava de mim. Ousada demais para uma freira.
— Você tem um histórico curioso, detetive. Já solucionou cinco... não, seis casos. Mas tem uma coleção considerável de fracassos.
— É, meu placar não anda muito bom, mas não vim falar sobre mim...
— De David Santana para Dave the Dude... — ela me interrompeu. — Ganhou esse apelido após resolver aquele caso no Brooklyn, certo? Nível internacional... Deve ter ficado orgulhoso. O que explica ostentar esse apelido como troféu... ou como máscara?
— Não, só pensei no marketing da marca. Tem uma sonoridade bacana, e já tinha muito “detetive David” no Facebook. Mas prosseguindo...
— Trinta e sete políticos — me interrompeu novamente —, vinte e três empresários, dezoito policiais, quatorze traficantes, onze advogados, oito assistentes, sete assaltantes, quatro médicos, dois mecânicos, um hacker e um faxineiro. Todos condenados. Toda uma cadeia de corrupção revelada e destruída por Dave the Dude. E não podemos esquecer do ato principal: a morte do lendário Drake the Reaper — o maior traficante, estelionatário e assassino das Américas.
— Olha, eu achei que eu era o detetive aqui.
— A morte de Drake não resultou bem no que você esperava, não é, detetive? Você realmente achou que não haveria retaliação após a morte de um criminoso tão famoso?
Me pus em silêncio. Estava na cara que ela não iria parar de falar tão cedo.
— Aposto que se sentiu culpado depois que explodiram aquela escola, não é mesmo? Todas aquelas pobres crianças... Não ouve os gritos estridentes em seus sonhos?
— Meio difícil. Sofro bastante com insônia.
Sintia soltou uma risadinha abafada. Mas os olhos... não riam.
— Não te restou nada, não é? Apenas um “alter ego”. Um resquício de tudo que poderia ter se tornado. Mas é difícil remontar bloco por bloco depois que tudo desmorona, não é, detetive?
— Uma vez trabalhei de servente com meu avô numa obra. Ele costumava dizer que, como pedreiro, eu era um ótimo detetive. Então cá estou.
Sintia não riu. Apenas arqueou uma sobrancelha e lambeu os lábios secos como um predador faminto encarando a presa.
— Você bebe, detetive? Sempre que um homem carrega cinismo no bolso, imagino uma garrafa no outro. Ou... um trauma. Um bem enterrado. — Ela estalou a língua, divertida. — Mas não se preocupe. O fogo também é cura pra isso.
— Se já acabou... quero saber sobre sua irmã, Sina.
— Ah, sim, Sina... — sussurrou. — Ela sempre foi uma criança doce. Até os sete anos. Até o demônio plantar sementes e cultivar as trevas e o pecado dentro daquela pobre mente tão frágil e inocente.
— Você tem um talento poético. Já pensou em escrever livros de autoajuda para psicopatas?
Ela se inclinou pra frente, sorriso colado no rosto. Os olhos agora ternos, quase carinhosos.
— Às vezes, o mal vem disfarçado de beleza. Sina tinha isso. Ela era... sedutora. Quando pequena, fazia todos os adultos rirem, todos amavam a pequena Sina. Mas, quando ninguém via, ela quebrava coisas de propósito, roubava dinheiro dos nossos pais, batia na nossa gata. Um dia... afogou um pintinho só pra ver como era “ficar mole”. Eu vi. Mamãe viu também. Mas papai fingiu que estava tudo bem.
— E você? Preferiu virar a justiceira da vizinhança?
Ela fez um biquinho.
— “Justiça” é uma palavra feia. Eu prefiro “obediência”.
— A primeira vez que ouvi a voz d’Ele, eu tinha treze anos. Ele sussurrou: Salve-as. As almas estão podres.
— E você achou que o melhor método seria abrir elas com uma faca de pão?
— Não foram mortes, detetive. Foram curas. Eu limpava o pecado. As mulheres... me agradeceram. Uma segurou minha mão e disse que via uma luz.
— E você viu sangue.
Ela bateu levemente na mesa com os dedos, compassada, como quem reza.
— “Sem derramamento de sangue, não há remissão.” Hebreus 9:22.
— Impressionante. Você cita a Bíblia como se fosse um cardápio de assassinato.
— A Palavra é viva. E afiada. Como uma espada. E eu fui apenas o cavaleiro.
Havia método por trás da loucura. Dançava entre delírio e controle, entre santa e predadora. Um tipo de serpente que recita salmos.
— E Sina? Também precisava ser curada?
Ela abaixou a cabeça, e por um segundo pareceu que ia chorar. Mas, quando ergueu o rosto... estava sorrindo.
— Ela dizia que Deus era uma invenção pra controlar os burros. Que o inferno era mais interessante. Chamava padres de palhaços de saia. Fazia piadas com cruzes. Uma vez, desenhou um pentagrama com sangue de porco no chão do quarto.
— Bizarro, mas não posso dizer que discordo de tudo.
Ela rangeu os dentes. Depois... relaxou. A paz voltou como uma máscara cuidadosamente ajustada.
— Você tem um vazio dentro de si. Eu vejo — ela se inclinou, olhos penetrando como agulhas. — Você sonha com fogo, detetive?
— Normalmente sonho com boletos e ressaca.
Ela riu. Alto. Sincera demais. Riu como se eu tivesse contado a melhor piada da vida dela. E então, parou. Súbita. Olhar vazio.
— Você vai queimar, sabia?
— Eu sonhei com isso. Três noites atrás. Você diante de um espelho... e carne estalando como bacon.
— Espero estar com farofa. Detetive bem-passado pode ser uma delícia.
Ela respondeu meu deboche com um olhar de decepção. Se reconfortou na cadeira, estalou o pescoço e então prosseguiu:
— Sina saiu de casa. Tentou abrir um café esotérico. Lia cartas. Vendia incensos e artigos pagãos para satanistas e macumbeiros. Eu continuei ao lado de mamãe até o final. Papai também foi embora. Disse que a culpa era minha. Que eu e mamãe éramos fanáticas demais, que nós o assustávamos.
— E você provou que ele estava certo.
— Ele morreu afogado. Bêbado. Escorregou na banheira. Ou... foi empurrado. Quem sabe?
Ela sorriu. Um daqueles sorrisos que preferem a dúvida à resposta.
— Sina se mudou pra Santas Graças... e Deus cuidou do resto. O fogo veio. E, com ele, a purificação.
— Você acha mesmo que foi Deus que a queimou viva?
— Claro. Ele me mostrou. Em sonho. Ela de joelhos, implorando, e as chamas... lambendo o pecado. O Espírito Santo em forma de labaredas.
— Ou talvez alguém só tenha acendido um fósforo. A diferença entre milagre e assassinato, sabe, é só uma boa desculpa.
Ela inclinou a cabeça, fixou os olhos em mim e disse com doçura:
— Você também vai implorar. E eu vou rezar por você, detetive. Mas... Ele já escolheu. O fogo vem.
— Pois é. Espero que venha com cerveja gelada e pão de alho.
Levantei antes que ela começasse a falar em línguas ou cuspir lava. Agradeci pela conversa com um sorriso e me virei.
— Vá com Deus, detetive Dude! — Sintia gritou.
— Que Exu te acompanhe! — gritei de volta, acenando com a mão enquanto caminhava para a saída.
**
Mais tarde, já de volta à pensão, tomei um bom banho na esperança de que a água fria do chuveiro queimado lavasse a sujeira que aquela mulher deixou na minha mente. Inútil. Não conseguia parar de pensar em cada palavra que aquela doida disse. Havia somente uma coisa capaz de desviar meus pensamentos: o pen drive.
Apanhei meu notebook, me reconfortei naquela cama barulhenta com uma lata de cerveja barata, um saco de amendoim temperado e o pen drive. Pluguei o pequeno objeto no notebook e... lá estava: a caixa de Pandora aberta diante dos meus olhos.
Na memória do pequeno aparelho, havia uma surpresa verdadeiramente bizarra: fotos. Todas de Miriam. Miriam andando na rua. Miriam entrando em casa. Miriam almoçando com os filhos. Miriam no trabalho, na feira, no shopping. Aquilo definitivamente não era amizade. Era vigilância. Sina Bastien estava obcecada.
Mas o pior ainda estava por vir.
Dentro da pasta, também havia um vídeo. Quando cliquei no play, levei um susto — fiquei tão surpreso que engasguei com um amendoim, mas fui salvo por um gole considerável daquela cerveja ruim.
O conteúdo do tal vídeo? Nove minutos e trinta e três segundos de Sina e Juan Frontez... em um momento íntimo. Intenso. Nu. Escandalosamente recente. A data? 30 de março, das 5h47 às 5h56. O corpo de Sina foi encontrado em cinzas às 6h20... deveras curioso, não?
Juan mentiu. Claro que mentiu. Disse que nunca conheceu Sina direito. Disse que só a via de longe. Mas ali estava ele — o mais perto possível da nossa femme fatale. E agora, a teia ganhava um novo nó.
Que eu estava decidido a desatar.