PRÓLOGO

Os mortais chamam de Sanctus Bellum. Foi mais do que uma guerra; foi uma ferida aberta nos céus, um abismo na história da criação. Um conflito que rasgou as estrelas como véus de papel e manchou a terra com sangue — sangue de humanos, deuses e de tudo o que ousasse existir entre eles.

Povos inteiros foram aniquilados. Culturas que outrora brilharam como constelações agora jazem no esquecimento, apagadas tão completamente que até mesmo os ecos de suas canções se perderam. Até os próprios deuses, que acreditavam ser imortais, descobriram que nem mesmo sua eternidade era segura.

E as cicatrizes… elas permanecem. Não apenas nas ruínas de mundos destruídos, mas na memória dos que sobrevivem. Sobrevivem, mas não vivem. Não sob a sombra do que foi perdido.

Tudo começou com uma pergunta.

Lúcifer, um dos sete príncipes do Inferno, ergueu a voz para questionar aquilo que ninguém jamais ousara: a supremacia do Pai. Como podia uma única entidade, ainda que onipotente, se declarar soberana sobre todas as coisas — sobre todas as divindades? Sua rebeldia, como uma pedra jogada em águas calmas, provocou ondas de discórdia que se espalharam pelos Governantes Celestiais, rachando alianças antigas, quebrando silêncios confortáveis e semeando uma dúvida perigosa: qual deus deveria reinar supremo?

E foi assim que o cosmos desabou sobre si mesmo.

A Sanctus Bellum nasceu dessa dúvida como um incêndio em uma floresta seca, consumindo tudo. Linhagens inteiras de deuses foram apagadas da existência, suas histórias reduzidas a poeira e seus seguidores condenados ao esquecimento.

As civilizações humanas, frágeis demais para resistir ao embate dos deuses, foram esmagadas como insetos sob botas divinas. Reinos que haviam prosperado por séculos arderam em dias. Milhões de vidas foram ceifadas, e os sobreviventes… Bem, quem sobrevive a algo assim nunca permanece inteiro.

Enquanto o conflito devorava tudo em seu caminho, uma figura observava em silêncio: Ísis, a deusa egípcia da magia e da maternidade. Ela assistia à guerra não apenas com os olhos de uma divindade, mas com o coração de uma mãe. E foi com o peso desse coração que ela percebeu a verdade amarga que ninguém mais queria admitir: a Sanctus Bellum não destruiria apenas os humanos. Não destruiria apenas a terra. Ela consumiria os próprios deuses.

Algo precisava ser feito.

E então Ísis tomou a decisão que selaria seu destino — e o de todos os outros. Em um ato de desespero, ela libertou Apófis, a serpente primordial, o inimigo natural de toda divindade. Apófis não era apenas uma criatura. Era um conceito, uma força tão antiga e terrível que até mesmo o tempo temia pronunciá-la. A devoradora de deuses.

O mundo tremeu quando Apófis despertou. Seu grito cortou os céus como uma lâmina de pura escuridão, e até os Governantes mais poderosos, sentiram medo pela primeira vez em eras incontáveis. Unidos pelo terror, eles não tiveram escolha a não ser formar uma aliança para enfrentá-la.

O confronto que se seguiu não foi apenas uma batalha. Foi a destruição em estado puro. Montanhas colapsaram, mares se partiram ao meio, e até mesmo as estrelas pareciam apagar sua luz em reverência à calamidade.

Apófis rugia como o fim dos tempos. Cada investida sua reescrevia o mundo em dor. Deuses caíam um a um — não como guerreiros, mas como crianças diante do abismo. O céu gritava, e a terra chorava.

No centro do caos, Ísis observava.

E ali, cercada pelos destroços da divindade, ela compreendeu.

A guerra não teria fim. A guerra era o fim.

Ísis caiu de joelhos entre os escombros da esperança. Lágrimas se misturaram ao sangue e à poeira cósmica, mas não chorava por si. Chorava porque finalmente via: nem todos os deuses unidos eram suficientes. Nem a fé, nem o poder, nem os pactos milenares. Nada seria suficiente para conter aquilo que ela havia libertado.

E foi nesse instante — no auge da rendição — que o firmamento se partiu.

O trovão rugiu. Não como som, mas como uma força que rasgava as camadas da realidade.

Luz e eletricidade explodiram do alto, criando uma fenda que expôs algo que jamais deveria ter cruzado para este plano.

Algo que, mesmo para os deuses, não passava de uma lenda esquecida.

Seu corpo colossal desceu em meio à tempestade, pulsando em tons de azul e dourado, como se a própria eletricidade cósmica circulasse por suas veias. Sua pele vibrava incessante, como o núcleo instável de uma tormenta prestes a se libertar.

Seus olhos, vermelhos como sangue, com um raio vivo na pupila, fizeram até Apófis — a própria calamidade — recuar.

Zeraora, o Deus dos Dragões.

Uma entidade cósmica de poder tão incomparável que até mesmo os deuses — os que ainda permaneciam — não ousaram manter-se de pé diante de sua presença.

Apófis hesitou. Sua vastidão serpentina, antes inabalável, agora encolhia diante daquela força impossível.

O dragão colossal, faiscando como o nascimento de uma estrela, rugiu disparando contra Apófis, uma rajada absurda de energia... 

Foi o fim de uma era.

Apófis não gritou.

Não se debatia.

Apenas caiu.

Vencida não pela força de exércitos divinos, mas por algo que escapava da compreensão de todas as criaturas vivas — e até das mortas.

Os céus se acalmaram. O trovão cessou.

Zeraora simplesmente se virou e foi embora.

Sem dizer uma palavra.

Sem olhar para trás.

Como se sua presença ali tivesse sido um acidente... ou um lembrete.

As correntes divinas envolveram Apófis mais uma vez, selando-a nas profundezas onde mesmo o vazio hesita em existir.

Os deuses que restaram ficaram imóveis.

Não falaram entre si.

Não se olharam.

Sentiam algo dentro de si que não sabiam nomear. Um silêncio diferente. Um peso antigo. Como se a presença de Zeraora tivesse reescrito algo em suas almas.

Nenhum deles soube dizer o quê. Mas sabiam, no mais íntimo de sua essência, que não eram mais os mesmos.

A Sanctus Bellum então teve seu fim, não por vitória, mas por exaustão. Não houve celebração, apenas o silêncio. Um silêncio pesado, carregado de perda e arrependimento, que ecoa até hoje, nos corações dos deuses e nos ossos dos mortais que caminham sobre as cinzas de um antigo mundo.