Meu nome é Lauren Edevane. Tenho 19 anos, sou loira e tenho olhos verde-esmeralda. Sei que isso pode fazer você me imaginar como uma princesinha mimada, mas está longe de ser verdade. Sim, eu venho da nobreza, mas jamais me encaixei naquele molde engomado de vestidos impecáveis e sorrisos ensaiados para agradar aristocratas esnobes. Sou uma guerreira.
Fugi de casa quando tinha apenas oito anos e, desde então, faço parte de um grupo de mercenários chamado O Sol. Somos uma família improvisada que vive numa casa modesta na capital do Reino Astríde, não temos muito, mas nos mantemos unidos, e seguimos nossas próprias regras. A mais importante delas? Não aceitamos trabalhos que envolvam assassinatos.
O nosso grupo é pequeno, mas diverso. Primeiro, tem a Arselles Relish. Ela é uma garota doce, de cabelos rosa e olhos azuis tão brilhantes quanto safiras. Ninguém acredita que uma garota como ela seja uma mercenária. Suas magias de ataque são um desastre completo, literalmente perigosas para todos ao redor. Por outro lado, sua magia de cura e defesa é tão poderosa que beira o impossível.
O líder do grupo é o Tsuki Yumi, ele parece ter uns 26 anos, com longos cabelos e olhos azuis, mas Arselles me contou que ele é muito mais velho. Dizem que ele foi amaldiçoado e, por isso, não envelhece. Sempre achei meio estranho, mas aceito isso como parte do mistério dele. O tapa-olho que cobre seu olho esquerdo só aumenta sua aura enigmática.
E, por fim, temos o Mirakon Blasmer. Ele é o mais forte de nós, com cabelos brancos e olhos castanhos. Diz ter 23 anos, mas parece um pouco mais velho, além disso, ele é um idiota completo, um tarado incorrigível, mas é confiável quando realmente importa.
E então, há eu.
Se você acha que esta é mais uma história sobre amigos enfrentando o mal, deixe-me cortar suas expectativas porque o mundo não funciona assim. Vou contar tudo, mas preciso avisar que esta não é uma história sobre mim, é sobre alguém que encontrei por acaso, alguém que mudaria nossas vidas para sempre.
Foi enquanto voltava de uma missão que o vi: um garoto caído na floresta e coberto de ferimentos. Ele estava desmaiado, a pele tão pálida quanto a luz da lua, seus cabelos e olhos eram negros como o céu sem estrelas. Seu estado era crítico, então fiz os primeiros socorros ali mesmo antes de levá-lo para casa.
— Preciso de ajuda, agora! — gritei assim que entrei em casa, carregando o garoto.
Arselles foi a primeira a se levantar, claramente preocupada.
— O que aconteceu, Lauren?
— Encontrei esse garoto desmaiado na floresta, não sei o que houve, mas ele precisa de ajuda urgente!
Coloquei-o sobre a mesa, empurrando pratos e decorações sem pensar duas vezes.
Tsuki ergueu uma sobrancelha.
— E por que não o levou ao hospital? Por acaso parecemos uma instituição de caridade?
— Claro, e você que iria pagar?! Até porque dinheiro cresce em árvores, né? — retruquei, exasperada.
— Nesse caso, deixe-me resolver a dor dele de forma rápida... — começou Tsuki, com um sorriso sinistro.
— O QUÊ?! — Arselles explodiu, cortando-o antes que ele pudesse continuar. — Pode deixar, eu curo ele!
Arselles colocou as mãos sobre o peito do garoto e murmurou:
— Sana Vulnus.
Suas mãos brilharam em um tom verde-esmeralda, e os ferimentos começaram a fechar, foi quando os olhos do garoto se abriram lentamente. Ele estava confuso, mas conseguiu se sentar com dificuldade.
— Você está bem? Como você se chama? — perguntei, tentando parecer mais tranquila do que realmente estava.
Ele parecia perdido enquanto olhava ao redor, como se o simples ato de estar acordado fosse confuso demais para lidar. Depois de alguns segundos em silêncio, tentou responder:
— Eu... não sei... Minha cabeça está confusa. Sinto como se partes importantes de quem eu sou tivessem sido arrancadas... — depois de uma pausa, ele arregalou os olhos em surpresa como se estivesse começando a se lembrar de algo. — Bell! Acho que meu nome é Bell.
Havia algo na voz dele que fez a sala toda silenciar. Mirakon, que normalmente teria feito algum comentário idiota, permaneceu quieto, e até Tsuki parecia avaliar cuidadosamente cada palavra do garoto.
— Bell... — Arselles começou, com a voz suave. — O que você consegue lembrar?
Bell franziu o cenho, como se a simples pergunta fosse um peso. Ele apertou a cabeça entre as mãos, os dedos tremendo.
— Eu... lembro de estar fugindo. Correndo de algo ou de alguém. Também me lembro de carregar uma mensagem, mas... não consigo lembrar o que era.
— Isso já é algo. Alguma coisa mais? — perguntei, tentando incentivá-lo.
Por um momento, parecia que ele ia negar. Então, os olhos dele se arregalaram e, com um tom quase sufocado, ele murmurou:
— Lúcifer...
Aquela única palavra caiu na sala como um trovão. Arselles prendeu a respiração, Mirakon inclinou-se para frente, e Tsuki congelou no lugar.
Bell continuou hesitante:
— Eu ouvi esse nome. Lúcifer, e... Sanctus Bellum. Alguém estava falando sobre... criar uma nova.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que parecia esmagar o ar. Tsuki e Mirakon trocaram olhares, um olhar carregado de um medo que eu nunca tinha visto neles antes. Por fim, quebrei o silêncio:
— Sanctus Bellum é só uma lenda, não é? Uma história sobre deuses e rivalidades. Bell, talvez você só esteja misturando memórias e histórias.
— Não acho que seja isso — disse Tsuki, sua voz baixa e séria. Ele inclinou-se para frente, os olhos fixos em Bell, como se estivesse tentando decifrá-lo. — Lauren, Arselles, existem coisas sobre a Sanctus Bellum que vocês precisam saber.
— Como assim, Tsuki? É só uma lenda, não é? — Arselles perguntou, visivelmente desconfortável.
Tsuki respirou fundo antes de começar.
— Não. A Sanctus Bellum foi real. Foi uma guerra que aconteceu há muito tempo, quando Lúcifer desafiou a supremacia do Pai. O conflito destruiu não apenas deuses, mas também civilizações inteiras. O que vocês ouviram como "lendas" é apenas uma sombra da verdade.
Mirakon interveio, sua expressão tão séria quanto a de Tsuki.
— E se o que Bell disse for verdade... se Lúcifer estiver realmente tentando provocar uma nova Sanctus Bellum, estamos falando de um desastre ainda maior do que o anterior.
Eu podia sentir meu coração acelerar, a ideia era absurda, quase ridícula, mas os rostos de Tsuki e Mirakon não deixavam espaço para dúvidas.
— Então... o que fazemos? Invadimos o Inferno e enfrentamos Lúcifer? — Arselles tentou brincar, mas sua voz tremia.
Tsuki e Mirakon se entreolharam, como se considerassem a ideia por um momento longo demais, até que eu explodi:
— EI! Vocês não podem estar falando sério! Lutar contra uma entidade como Lúcifer é suicídio!
Antes que alguém pudesse responder, Bell levantou a cabeça, sua expressão decidida pela primeira vez desde que havia acordado.
— Eu sei que não me lembro de tudo, mas... tenho um pressentimento. A mensagem que eu estava carregando, o motivo pelo qual estava fugindo... deve ser importante. Se existe uma chance de impedir essa guerra, eu preciso descobrir essa memória que perdi.
A convicção na voz dele foi suficiente para calar todos nós por um momento. Então Tsuki assentiu, cruzando os braços.
— Faz sentido. Se Bell estava no Inferno, e é provável que estivesse, considerando os ferimentos que tinha, então ele é um guerreiro. E, se queremos recuperar suas memórias, há apenas um lugar onde isso é possível: a Árvore do Conhecimento.
— Ár... Árvore do Conhecimento? — Arselles perguntou, curiosa.
— Sim. No início dos tempos, a Árvore fazia parte do Jardim do Éden. Mas, depois que os humanos provaram de seu fruto, o Pai a transferiu para o Inferno, onde ela se tornou inacessível aos mortais. A lenda diz que, ao comer do fruto, é possível recuperar qualquer conhecimento perdido.
— Certo, e como pretendemos chegar lá? — perguntei, tentando manter a calma.
Tsuki deu um sorriso irônico antes de responder:
— Existem duas formas. A primeira é a mais fácil: morrer.
— O QUÊ?! — gritamos todos em uníssono.
— Relaxem, crianças! — disse Mirakon, rindo alto. — Ele tá só brincando.
Tsuki continuou.
— A segunda opção é a única viável. Precisamos encontrar um portal para o submundo. Atravessaremos o Rio Aqueronte, passaremos pelo domínio de Hades e desceremos até o Inferno, onde encontraremos a Árvore.
Eu cruzei os braços, processando a informação.
— Então, o plano é: invadimos o domínio de Hades, atravessamos o território de Lúcifer e conseguimos o fruto da Árvore sem sermos notados? Parece fácil.
— Sarcasmo detectado — disse Mirakon, piscando para mim.
— Fácil não é, mas é nossa melhor chance — continuou Tsuki. Ele se virou para Bell, seu olhar sério novamente. — Mas, antes de começarmos, precisamos ter certeza de uma coisa: Bell, você é forte o suficiente para acompanhar essa jornada?
Bell assentiu, mas Tsuki ergueu a mão, interrompendo-o.
— Não basta dizer. Vamos testá-lo.
— Testá-lo? Como assim? — perguntei, incrédula.
— Um combate. Quero ver do que ele é capaz. Se ele não passar no desafio, não poderá sobreviver ao que nos espera no Inferno.
— Aceito — confirmou Bell.
Fomos para a floresta, onde ambos se posicionaram opostamente prontos para iniciar, Bell posicionou-se com determinação, ignorando alguns ferimentos que ainda o deixavam fraco. Tsuki, por outro lado, parecia relaxado, mas eu conhecia aquele olhar frio... Ele estava analisando cada movimento, cada respiração de Bell.
— As regras serão a seguinte — Tsuki disse, sério — você não precisa me derrotar. Apenas me derrube uma vez.
Bell apenas assentiu. O silêncio na clareira foi quebrado quando Tsuki fez o primeiro movimento, avançando com uma velocidade impressionante. O som de seus passos parecia ecoar pela floresta. Antes que Bell pudesse reagir, Tsuki já estava em sua frente, desferindo um soco rápido que acertou o estômago do garoto.
Bell voou para trás, colidindo com uma árvore com força suficiente para fazer as folhas tremerem.
Ele caiu no chão, cuspindo sangue. Arselles deu um passo à frente, instintivamente, mas Tsuki ergueu a mão, sinalizando para que ninguém interferisse.
Bell ficou de joelhos, tossindo sangue, mas, em vez de desmoronar, sorriu levemente.
— É tudo o que você tem?
Por um momento, algo mudou no rosto de Tsuki — uma mistura de surpresa e reconhecimento.
— Impressionante, garoto, mas isso não é o suficiente.
Antes que pudesse terminar a frase, Bell desapareceu. Não era apenas rápido — ele havia se movido com uma velocidade que desafiava os olhos humanos. Tsuki se quer o viu, apenas virou-se instintivamente, percebendo que Bell estava atrás dele, a mão já preparada para um golpe.
— Puranto Seigyo: Prisão de Plantas — Conjurou Tsuki.
Com um movimento, cipós emergiram do chão, envolvendo o corpo de Bell e imobilizando-o completamente. Tsuki, movido pelo calor da batalha não perdeu tempo e instintivamente utilizou uma habilidade que não gostaria de ter usado.
— Puranto Seigyo: Lança de Folhas.
Folhas afiadas como lâminas saíram das árvores próximas, unindo-se em uma lança que disparou diretamente contra o estômago de Bell.
— BELL! — gritei, correndo em direção a ele.
O golpe o atingiu com precisão mortal. O sangue escorria da ferida, tingindo o chão de vermelho. Tsuki imediatamente desfez sua magia percebendo o que erro que havia cometido. Arselles ofegou, horrorizada. Mas, para nossa surpresa, Bell não gritou. Não gemeu. Apenas respirou fundo e ergueu a cabeça.
— Lauren, está tudo bem. Não precisa se preocupar — disse ele, com um sorriso tranquilo.
— Tudo bem?! Bell, você foi perfurado! Isso não é normal!
Arselles caiu de joelhos, lágrimas escorrendo.
— Bell... você não sente dor?
Ele olhou para si mesmo, como se só então percebesse o estado do próprio corpo.
— Não... deveria sentir, certo? Eu sei que isso é grave, mas... não sinto nada.
Tsuki estreitou os olhos, suas suspeitas claramente crescendo.
— Isso não é normal. Mesmo os guerreiros mais treinados sentem dor. Se você não sente nada, é porque seu corpo foi condicionado a ignorá-la.
— Condicionado? O que isso quer dizer? — Bell perguntou, genuinamente confuso.
Mirakon cruzou os braços, a expressão sombria.
— É uma suposição, mas faz sentido. Bell, você perdeu a memória. Não sabe o que aconteceu com você antes de nos encontrar, certo?
— Certo.
Mirakon continuou:
— Então, considere isso: e se você foi mantido como prisioneiro? Torturado de forma tão brutal e constante que seu corpo se adaptou? Talvez a dor tenha se tornado tão comum que você simplesmente deixou de senti-la.
A clareira ficou em silêncio. Arselles engoliu em seco, cobrindo a boca com a mão, enquanto Bell encarava Mirakon, tentando processar o que ele dizia.
— Isso... é possível? — perguntou Bell, sua voz trêmula.
Tsuki suspirou, desfazendo os cipós.
— Possível, sim. Mas você não precisa se lembrar disso agora. O importante é: você quer continuar? Mesmo sabendo que suas memórias podem trazer verdades dolorosas?
Bell hesitou, mas logo assentiu.
— Sim. Preciso saber o que aconteceu comigo e por que tenho essas informações sobre Lúcifer e a Sanctus Bellum.
Tsuki deu um leve sorriso.
— Boa resposta. Mas a luta ainda não acabou.
Antes que eu pudesse protestar, Bell assentiu e usou o chão para se impulsionar para frente. Seu corpo pareceu desaparecer por um instante, como se o ar ao seu redor se dobrasse à sua vontade. Ele era um borrão negro, movendo-se com tamanha rapidez que os olhos não conseguiam acompanhá-lo.
— O quê?! — Tsuki murmurou, claramente pego de surpresa.
O próximo momento foi tão rápido quanto brutal. Bell surgiu bem diante de Tsuki, seu punho já preparado para o golpe. Tsuki tentou reagir, levantando o braço para bloquear, mas não foi rápido o suficiente. O impacto do golpe ressoou pela clareira como um trovão.
Tsuki foi lançado para trás, seu corpo colidindo com o solo. Ele rolou até parar alguns metros adiante, mas, para meu alívio, não parecia gravemente ferido. Ele não tentou se levantar imediatamente, apenas ficou ali, olhando para Bell com uma expressão de espanto e... admiração.
— Impressionante... — disse ele, um sorriso surgindo em seus lábios. — Você passou no teste, garoto. Bem-vindo ao time.
Bell cambaleou para trás, uma mão segurando o estômago, onde ainda sangrava do ferimento anterior. O sorriso no rosto dele era breve, pois a exaustão começava a dominá-lo. Arselles, que havia ficado paralisada durante o golpe final, correu até ele, o rosto pálido de preocupação.
— Bell, pare! Você está... você está morrendo!
Aquelas palavras fizeram meu coração parar. Só então percebi a gravidade da situação: o sangue escorria livremente pelo ferimento no estômago de Bell, manchando sua roupa e pingando no chão. O esforço de usar tanta energia em tão pouco tempo havia drenado o que restava de suas forças.
Bell tentou responder, mas caiu de joelhos, e depois para frente, inconsciente. Arselles agiu rapidamente.
— Sana Vulnus! — ela gritou, as mãos brilhando com uma luz verde-esmeralda tão intensa que parecia iluminar toda a clareira.
Ela pressionou as mãos contra o ferimento de Bell, canalizando toda sua magia de cura para estabilizá-lo. Mas havia algo diferente: o corpo dele parecia resistir, como se sua energia estivesse em conflito com a dela.
— Por que não está funcionando?! — Arselles choramingou, lágrimas escorrendo enquanto continuava a murmurar o encantamento. — Bell, por favor, não morra!
Tsuki se aproximou, ainda um pouco atordoado, mas claramente preocupado. Ele colocou a mão no ombro de Arselles.
— Ele vai conseguir. Seu corpo é... especial. Você viu como ele reagiu antes, apenas continue, Arselles.
Ela assentiu, mas seus olhos estavam cheios de medo. O brilho da magia começou a ficar mais intenso, e o ferimento finalmente começou a fechar. O sangue parou de escorrer, e a respiração de Bell tornou-se mais regular. Arselles caiu de joelhos, exausta, mas aliviada.
— Ele está estável... mas não sei como ele sobreviveu a isso — sussurrou ela, ainda ofegante.
Bell abriu os olhos lentamente, piscando contra a luz do sol que passava pelas árvores. Ele tentou se sentar, mas Arselles colocou uma mão em seu peito, forçando-o a ficar deitado.
— Não se mexa! Você já fez o suficiente por hoje.
— Desculpa... preocupei vocês — Bell murmurou, com um sorriso fraco.
— Preocupar?! — Arselles gritou, mas sua voz tremia tanto de alívio quanto de irritação. — Você quase morreu! Isso é mais que preocupação, Bell!
Tsuki cruzou os braços, observando a cena com atenção.
— Aquele golpe foi impressionante, mas você claramente não conhece seus próprios limites. Isso pode custar a sua vida um dia, garoto.
— Eu vou aprender. Prometo. — Bell sorriu, mas o cansaço em sua voz era evidente.
Eu me aproximei e me ajoelhei ao lado dele.
— Você nos deu um baita susto, Bell. Mas está claro que você merece estar conosco. Só... tenta não se matar da próxima vez, ok?
Ele riu suavemente, fechando os olhos por um momento.
— Obrigado... a todos vocês.
Enquanto Bell finalmente descansava, Tsuki se virou para Arselles.
— Bom trabalho, Arselles. Sem você, ele não teria sobrevivido.
Arselles apenas assentiu, limpando as lágrimas do rosto.
A luta havia terminado, mas o que aconteceu naquela clareira deixou algo claro: Bell era mais do que apenas um garoto com amnésia. Ele era uma força latente, algo que nem ele mesmo compreendia.
Na manhã seguinte, Bell parecia muito melhor. Eu me levantei cedo para verificar como ele estava, mas o encontrei já de pé, observando o nascer do sol pela janela da casa.
— Bom dia, Bell. Está se sentindo bem? — perguntei.
Ele se virou, um sorriso tranquilo no rosto.
— Sim, muito melhor. Obrigado por me salvar e me trazer para cá ontem, devo tudo a você.
Balancei a cabeça, um pouco corada.
— Foi por pouco, sabe? Você precisa aprender a se cuidar melhor.
— Vou tentar, prometo. — Ele riu suavemente, mas havia algo em seus olhos — um peso, como se estivesse refletindo sobre algo maior.
Logo, o resto do grupo se reuniu na sala de jantar para discutir os próximos passos. Mirakon, como sempre, fez questão de entrar dramaticamente, jogando-se em uma das cadeiras.
— Bom dia, meus queridos! Espero que todos estejam prontos, porque hoje temos um plano genial para colocar em prática.
— Genial é uma palavra forte vindo de você, Mirakon — respondi, com um sorriso sarcástico.
Ele deu de ombros.
— Ei, estou apenas ajudando a salvar o mundo. Ou pelo menos, tentando não morrer no processo.
Tsuki, já sentado na ponta da mesa, ignorou a troca de provocações. Ele colocou um mapa antigo sobre a superfície de madeira, alisando-o com cuidado.
— Vamos começar. Nosso objetivo é chegar à Montanha dos Sussurros, dizem que lá existe uma entrada para o submundo.
Arselles franziu a testa.
— Dizem? Isso significa que não temos certeza?
— Exatamente — respondeu Tsuki, calmamente. — Não temos garantias mas a montanha é nossa melhor chance. De acordo com os relatos, é um lugar onde as barreiras entre os reinos da vida e da morte se tornam mais finas, permitindo o acesso ao submundo.
— Certo. E depois? — perguntei, cruzando os braços.
— Depois, precisaremos atravessar o domínio de Hades. Isso significa passar pelo Rio Aqueronte e continuar descendo até o Inferno, onde procuraremos a Árvore do Conhecimento.
— Parece fácil — disse Mirakon, rindo.
— Nada disso será fácil, Mirakon — disse Tsuki, com seriedade. — Se Bell realmente estiver sendo procurado pelos demônios, nossa presença no submundo não passará despercebida. E, se formos descobertos...
Ele não precisou terminar a frase. O peso de suas palavras era claro.
Bell, que havia ficado quieto até então, levantou a cabeça.
— Sei que é arriscado, mas... se há uma chance de recuperar minhas memórias e impedir que essa tal de Sanctus Bellum aconteça, eu preciso tentar.
Todos ficaram em silêncio por um momento, até que Arselles suspirou e sorriu levemente.
— Estamos todos juntos nessa, Bell.
— Isso mesmo! — concordou Mirakon, batendo na mesa. — E quem sabe, talvez eu consiga impressionar alguma succubus gostosa no caminho.
— Mirakon, por favor, controle-se — disse Tsuki, exasperado.
— Não prometo nada!
Apesar da leveza momentânea, a tensão no grupo era palpável. Cada um sabia que estava se preparando para algo muito maior do que qualquer missão anterior, e então, partimos.
A jornada até a Montanha dos Sussurros começou com um silêncio incomum. O caminho era ladeado por florestas densas, onde a luz do sol mal penetrava. O vento que soprava entre as árvores parecia murmurar segredos antigos, e o ar tinha um peso diferente, como se o próprio mundo estivesse observando nossos passos.
Bell caminhava ao meu lado, seus olhos varrendo o horizonte com uma intensidade silenciosa. Ele parecia perdido em pensamentos, mas, a cada som estranho ou movimento nas sombras, seus sentidos ficavam em alerta.
— Está tudo bem? — perguntei, tentando aliviar o clima.
Ele hesitou antes de responder.
— Estou pensando... sobre o que você e os outros disseram ontem. Sobre o que pode ter acontecido comigo.
— Não precisa se forçar a lembrar de tudo agora. O importante é que você está aqui, e estamos com você.
Ele sorriu, mas não disse nada.
No meio da tarde, começamos a subir os primeiros trechos da montanha, as pedras eram escorregadias, e o ar, cada vez mais rarefeito. Arselles escorregou uma vez, quase caindo em um desfiladeiro, mas Bell foi rápido o suficiente para segurá-la.
— Obrigada, Bell. Você está se saindo melhor que o esperado como novato no grupo — disse ela, com um sorriso brincalhão.
— Estou tentando me encaixar — ele respondeu, com um sorriso tímido.
Ao anoitecer, acampamos em uma pequena clareira. A montanha parecia viva, emitindo ruídos profundos que ecoavam ao longe. Mirakon fez a primeira vigília, enquanto os outros tentavam descansar.
Eu estava prestes a fechar os olhos quando ouvi Tsuki conversando em voz baixa com Mirakon.
— Se a Sanctus Bellum realmente está se formando, não temos muito tempo. Lúcifer não é conhecido por esperar pacientemente.
— Eu sei — respondeu Mirakon, sua voz incomumente séria. — E tenho a sensação de que Bell seja a chave para resolvermos isso.
Eles estavam certos, é claro. Bell não era apenas um garoto perdido, ele era uma peça importante em algo muito maior.
E, no fundo, eu temia que, quando tudo fosse revelado, já fosse tarde demais.
A fogueira crepitava suavemente no centro do acampamento, lançando sombras dançantes nas rochas ao redor. Apesar da tranquilidade aparente, ninguém conseguia relaxar completamente e com exceção de Arcelles ninguém conseguiu dormir a noite inteira. O ar da Montanha dos Sussurros era estranho, pesado, quase opressor, como se a própria montanha observasse cada movimento nosso.
Tsuki permaneceu acordado por boa parte da noite, os olhos fixos no mapa que havia trazido. Ele o estudava como se fosse uma questão de vida ou morte, buscando cada detalhe que pudesse nos dar vantagem. Mirakon, por outro lado, estava sentado de costas para a fogueira, afiando sua espada longa com movimentos metódicos.
Eu me aproximei de Bell, que estava sentado em silêncio, observando o céu escuro.
— Não consegue dormir? — perguntei, tentando puxar conversa.
Ele assentiu com a cabeça.
— Acho que não. Este lugar... não me parece certo. É como se algo estivesse nos observando o tempo todo.
— Bem, você não está sozinho nisso. — Abaixei-me ao lado dele, envolvendo meus braços ao redor dos joelhos. — Essa montanha tem uma reputação sombria. Se realmente estamos perto de um portal para o submundo, faz sentido que a energia aqui seja... estranha.
Bell franziu a testa, como se tentasse lembrar de algo.
— Talvez... eu já tenha estado em um lugar assim antes. Não sei explicar, mas essa sensação não é nova para mim.
Continuamos conversando pelo resto da noite até que me rendi novamente ao sono e caí com a cabeça em seus ombros.
A noite passou mas ainda estávamos exaustos, porém não podíamos parar. Tsuki insistiu que continuássemos avançando pela montanha, e ele estava certo: a Montanha dos Sussurros não era um lugar para descansos prolongados.
À medida que subíamos, o ambiente ao nosso redor começou a mudar. A vegetação rareava, substituída por rochas escuras e terrenos áridos. O vento, antes suave, tornou-se cortante, carregando um cheiro metálico que parecia grudar na garganta.
— Estamos chegando perto, não estamos? — perguntei, olhando para Tsuki.
Ele assentiu, mas seu semblante continuava preocupado.
— Sim. Estamos no ponto onde o ar entre os mundos começa a se tornar instável.
— E isso é bom ou ruim? — Arselles perguntou, tentando aliviar o clima.
— Depende. Se a entrada do submundo estiverem de fato próximos, isso significa que as criaturas de lá também podem alcançar este lado com mais facilidade.
Um silêncio pesado recaiu sobre o grupo. Bell olhou ao redor, os olhos sempre atentos ao menor movimento.
— Vocês sentem isso? — ele perguntou de repente.
— Sentir o quê? — perguntou Mirakon, girando a espada em suas mãos.
— Algo... nos observando — Bell disse, franzindo a testa. — Como antes, na clareira. Só que mais... intenso.
Todos paramos por um momento, os olhos vasculhando o ambiente. Não havia nada além do vento e das pedras escuras, mas a sensação de estarmos sendo vigiados era inegável.
— Continuem andando — ordenou Tsuki, sua voz baixa. — Seja lá o que for, enfrentaremos quando for necessário.
Enquanto caminhávamos pela Montanha dos Sussurros, uma cena diferente se desenrolava no inferno.
Um vasto lago de sangue fluía lentamente por um vale cercado de rochas vulcânicas. A superfície do lago brilhava com um vermelho escuro, refletindo a luz sobrenatural que emanava de um imenso castelo. Suas torres eram feitas de obsidiana, seus contornos pareciam cortar o céu vermelho em lâminas afiadas.
Dentro do castelo, no sexto andar de uma interminável escadaria, estava a Árvore do Conhecimento em um salão supreendentemente iluminado e com um jardim em contraste total do que se enxergava no lado de fora. Seu tronco era negro como carvão, mas seus frutos brilhavam como esmeraldas, irradiando uma luz hipnotizante. Em frente da árvore, um trono esculpido em obsidiana ocupava o centro do salão. Sentado nele, um dos 7 Príncipes do Inferno, Beelzebub, observava o nada com desdém.
De cabelos negros como o abismo, pele acinzentada e olhos da cor do sangue, Beelzebub emanava uma aura de gula insaciável, como se cada fibra de seu ser desejasse consumir tudo ao seu redor. Ele tamborilava os dedos no braço do trono quando Fleurety, seu fiel servo, entrou na sala.
— Mestre, soube que humanos percorrem um caminho em direção à entrada do submundo! — Fleurety disse, curvando-se profundamente.
Beelzebub mal moveu a cabeça para olhar para ele.
— E no que isso me importa? — perguntou, a voz gotejando tédio.
— Mestre, não há nada que possa atrair humanos ao submundo, mas aqui no inferno há uma coisa: sua Árvore do Conhecimento. É provável que eles estejam atrás dela. Eles ousam desejar algo que pertence ao senhor.
Beelzebub sorriu, mas o gesto foi frio, sem qualquer traço de bondade.
— Humanos são criaturas insolentes. Fleurety, você sempre foi um servo fiel. O que sugere que façamos com esses intrusos?
Fleurety endireitou-se, com um brilho maligno nos olhos.
— Sugiro caçá-los, meu senhor. Providenciarei um espetáculo digno de sua apreciação.
Beelzebub inclinou-se levemente para frente, seu interesse finalmente despertado.
— Muito bem, faça isso. Mas quero algo extraordinário. Quem você usará para esse trabalho?
— Eligos, meu senhor — respondeu Fleurety prontamente. — Um arquiduque do inferno, especialista em batalhas e comandante de 60 legiões de demônios. Ele certamente proporcionará um massacre digno de sua atenção.
Beelzebub sorriu novamente, desta vez com uma pitada de animação.
— Sim, me lembro de Eligos, um dos anjos caídos que Lúcifer trouxe consigo. Que assim seja. Traga-me o espetáculo que desejo, Fleurety. Agora vá.
— Sim, meu senhor. É um prazer servi-lo.
Fleurety saiu imediatamente, dirigindo-se aos aposentos de Eligos. O arquiduque, com longos cabelos loiros e olhos azuis tão frios quanto o gelo, estava de pé, observando o inferno abaixo. Sua armadura de cobre enferrujada brilhava fracamente, como se portasse o peso de eras de batalhas.
— Senhor Fleurety, que honra tê-lo aqui. O que deseja de mim? — perguntou Eligos, com um sorriso afiado.
— Humanos estão se aproximando da entrada do submundo, e eles buscam o fruto da Árvore do Conhecimento. O Príncipe Beelzebub ordenou que os cace e transforme suas mortes em um espetáculo digno de sua atenção.
Eligos riu suavemente, a mão descansando sobre o cabo de sua espada.
— Se é isso que Beelzebub deseja, eu darei a ele um espetáculo inesquecível.
Enquanto o arquiduque começava a reunir suas forças, nós continuávamos subindo pela montanha, sem ideia do perigo que estava nos esperando.